cabecalho-natureza-morta-tiradentes

Abismo fugaz

Em um plano abertíssimo uma mulher finca-se, de pé, sobre um banco. Um homem, forte, descamisado, dotado de uma masculinidade proeminente, abraça-a em um gesto similar ao do enamorado Pigmalião, que envolve Galatéia, sua escultura-musa em um enlevo tão romântico que transforma pedra em vida. É nessa atmosfera inebriante, mas austera, que se passa o longa-metragem Natureza Morta, de Clarissa Ramalho.

O filme completa, com uma diretora mulher, uma trilogia iniciada por Djalioh (2011) e Paixão e Virtude (2014), ambos de Ricardo Miranda – o último já contando com Ramalho como roteirista. Realizado após a morte de Ricardo, o longa evoca a dualidade entre vida e morte desde sua alcunha. Opondo “natureza” e “morte” em seu título, além de aludir ao gênero das artes plásticas, é também uma mímese do processo de nascimento do filme a partir da morte do realizador.

O filme é baseado no texto A Carne, de Júlio Ribeiro, que retrata a paixão entre Lenita (Mariana Fausto), a protagonista, e Barbosa (Rômulo Braga), filho do coronel que a acolhe quando seu pai morre. O ano é 1887 e estamos em um casarão burguês, interiorano, revestido de jardins e campos fecundos e parnasianos. Construído a partir de planos pétreos e uma atuação de resquícios brechtianos, o longa deixa-se contaminar pelo fluxo das palavras, pelo encadeamento literário do texto, sobreposto a imagens que funcionam como um amparo para a produção mental daquilo que é descrito. Portador de uma rigidez ímpar, Natureza Morta é uma sucessão de planos fixos e centralizados, nos quais as passagens de um para outro jamais são precedidas ou sucedidas de movimentação das personagens.

Ambientados em uma fazenda abundante, somos inundados por bem compostas e cândidas imagens, iluminadas por um sol brando, que acabam por serem atropeladas pelo texto visceral e densamente sexual de Júlio Ribeiro. Optando por elidir as imagens que A Carne propõe e evitando a transposição literal de uma adaptação literária, Natureza Morta parece ansiar um exercício cerebral do espectador maior do que consegue articular entre as imagens bonitas, mas que se repetem e pouco se complementam, e o texto, também belo, mas pouco conectado com a vontade do filme de abordar a potência sexual feminina. As metáforas visuais ainda são um pouco ingênuas, como a cena de Lenita amassando uvas com o pé e depois banhando-se nelas enquanto, em off, narra a cena de sexo com Barbosa. Ao aludir ao sexo, o esmagar de frutas beira o pastiche. Essa ambivalência entre a narração e a frigidez das cenas, apesar de ser uma proposta cativante, não se resolve plenamente. A tensão parece não se esgarçar o suficiente para que o abismo entre esses dois elementos fílmicos seja suficientemente interessante.

Sempre muito distante, o espectador é testemunha de um encontro que, de fato, é muito pouco visto em cena. A história do filme é primordialmente edificada a partir de narrações que recuperam o próprio livro no qual é baseado. Intercalada entre a figura de Helena Ignez, uma entidade mascarada da tragédia grega, e as personagens femininas da história, essa narração perpassa todo o filme, conduzindo o espectador de forma cerebral perante cenas que não retratam completamente aquilo que está sendo dito, instigando a produção de imagens num plano abstrato de concepção.

A premissa fílmica é boa, mas é assoreada pela pedantismo das imagens clichês. Como em um book fotográfico que sempre busca a melhor iluminação, o melhor enquadramento e a melhor pose dos modelos, as imagens nada têm de inquietante ou minimamente excitante quando justapostas ao texto. Sem produzir nem um choque completo nem uma rima, elas flutuam pelo espaço morno da “bela fotografia”.

Distendendo excessivamente seus tempos, Natureza Morta constitui-se a partir daquilo que não está ali, do vazio permanente. Etéreas e simbólicas, as cenas emolduradas tanto pela natureza quanto pelo casarão colonial se assemelham ao palco de teatro, em um jogo no qual a mise-en-scène, quase sempre centralizada, é sempre muito contida, mas por vezes é atravessada por ações bruscas que irrompem fugazmente, como se escapassem à imobilidade tão cara ao filme, como se as emoções por vezes não se contivessem dentro desses rígidos quadros. Os pulos fulminantes de Lenita no colo de seus pares cênicos, que aparecem como refrão durante o filme, são um bom exemplo desse irromper da contenção fílmica.

Ao usufruir de um ótimo texto, descritivo e romântico, guiando o espectador por entre essas câmaras mentais, capaz de produzir imagens para além daquilo posto em tela, Natureza Morta não entrega totalmente aquilo que deseja. Se por um lado o artifício da construção imagética metafísica é, de fato, interessante, é também notável que a temática da vivência sexual de uma mulher do século XIX fica aquém. Existia uma vontade do filme de retroagir dois séculos em busca de compreender como essas mulheres, geralmente taxadas de “histéricas”, agiam em relação aos seus desejos. A impossibilidade de ação das mulheres na sociedade fin-de-siècle em conflito com suas vontades tão agudas quanto as de seus pares masculinos é mimetizada pelo filme, que vislumbra justamente essa oposição entre um real refreado e um mental fervilhante. Mas é nas metáforas clichês, nas atuações brechtianas sem concisão e nas intervenções pouco articuladas que o filme evapora.

Erguido sobre matéria frágil, o longa tem aspecto desbotado. Se em alguns momentos ele nos mostra as tatuagens dos atores em um gesto arrojado, em outros ele retroage e executa uma caricatura no mínimo ultrapassada da criada negra da casa. Não há constância sobre o que o filme quer ser, e querendo ser de tudo um pouco, ele se anula. Carente de ousadia, Natureza Morta parece mais recatado do que essa mulher desejante que pretende retratar. Nem abraçando completamente seu anacronismo e nem se jogando completamente ao abissal entre texto-imagem, o filme se prostra num medroso passo atrás daquilo que tencionava se tornar.


Leia também: