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Disjunção larvar

A sinopse deste filme cearense-carioca diz: “Duas amigas monstras decidem seguir rumos diferentes. Décadas depois da despedida, Naiana (Rosalina Tamiza) é professora do ensino médio em uma pequena cidade litorânea, onde um hotel em reforma emana estranha presença. A três mil quilômetros dali, a noite devoradora envolve Diego (Maricota)”. Aí já está colocado o jogo de distâncias e paralelismo que compõe o filme. Começamos com o passado das amigas, depois a história se bifurca e se une no encontro final, nesta espécie de “romance de deformação” que parece tratar, além do fato da migração por trabalho, de uma questão de amadurecimento, de procurar uma forma de seguir em frente. Não por acaso, a educação é um tema, materializada na escola pra onde Naiana migrou pra trabalhar e que o grupo econômico dono do hotel quer privatizar. A maior parte da ação do filme diz respeito a Naiana e suas alunas, desdobrando os mistérios que começam ali a suceder. Educação evoca formação, e essa parece ser a grande questão do filme: Como se formar? Como tomar forma? Uma narração muito singular pontua de maneira decisiva: “Andar para frente é encarar a noite”. Encarar a noite é ter a coragem de entrar no desconhecido. A noite, a sombra, são deformativas e metamorfoseantes, afinal.

Canto dos Ossos se estrutura em vários níveis sobre uma duplicidade. Não só geográfica, entre o Canindé (CE) e Búzios (RJ), mas também entre um certo investimento icônico e outra tendência mais narrativa, entre um retrato geracional mais direto e uma especulação histórica, enfim: a unidade não é aqui uma questão. “A gente aprende a ir de um lado pra o outro”, a protagonista Naiana diz. E emenda: “o foda é começar tudo de novo”. Para caminhar com o filme é preciso aceitar o que ele apresenta com menos de dez minutos: uma lanterna ilumina um chão escuro que não deixa identificar nada, seguida de uma série de imagens disformes que formam eventualmente mãos, braços, sangue, que vão se tornar mais cores que coisas. É preciso, portanto, ficar de boas com o enigma.

A mesma duplicidade geográfica que formou exatamente há dez anos Estrada para Ythaca (2010) compõe Canto dos Ossos, na mesma Mostra de Tiradentes: Rio de Janeiro e Ceará. Uma década após, é nítido que o que se introduzia ali era tanto (ou até mais) um marco ético do que estético – uma imbricação de ambos afinal. O legado da Alumbramento não é nítido somente na formação da Filmes de Plástico (MG)– pra citar um exemplo mais consolidado –, mas inclusive no dado curioso de nomes de outras produtoras que se baseiam no seu nome para contrariá-lo ou fazer troça. O gesto do it yourself fora dos centros geográficos, ligando o atrás e o à frente das câmeras de maneira crucial, além de um movimento deliberado de intervenção sobre a história do cinema brasileiro, ganha aqui, em Canto dos Ossos, uma viva – ou morta-viva – reencarnação. O ímpeto de pensar o cinema, radicalmente, da cena ao modo de produção, complexificando as barreiras entre ambos, é um esforço que ainda precisa ser devidamente demarcado historicamente.

As diferenças entre um e outro elucidam questões férteis. Canto dos Ossos reconduz certo potencial narcísico da empreitada de 2010 em direção a uma busca mais opaca, abismática, onde o gesto dos cineastas corre menos riscos de glorificação ou autoindulgência. O rodízio de funções nessa fita mais atual não é só um gesto de produção, mas a experiência do filme coloca diante de nós um certo rodízio de personagens, onde facilmente confundimos um no outro, corroborando com um ambiente mutante e instável. Canto não quer mostrar nada a ninguém, não precisa produzir visibilidade, muito pelo contrário. Em 2010, e nos anos anteriores, aqui nas bandas sudestinas, havia um certo clima de exotismo boçal em “ver os cineastas cearenses e seus hábitos curiosos”, com a chegada de um vivaz grupo de artistas que começava a exibir trabalhos aqui pelo Sul – uma certa “visibilidade inaugural” – vindo especialmente da Escola de Audiovisual da Vila das Artes de Fortaleza, onde algumas pessoas do filme atual também se formaram.

Em 2020, a questão se inverte: “como então desaparecer”? Como decidir ser nada, nem vivo nem morto, nem horror nem embaço, nem século XXI nem século XIX, nem gótico, nem queer? A resposta é simples: sendo. Pela prática. Na medida em que o filme é também registro desta ação, deste rodízio de funções, de uma vivência em instituições educacionais, de uma experiência de viver junto, sua variação interna é também um índice opaco desses fazeres. Mas o clique político decisivo é trocar o “precisamos de um lugar” pela afirmação “somos – pelo que fazemos – um não-lugar”.

As movimentações políticas que revolvem radicalmente as pedras estanques do pensamento, que atravessam todo o ambiente artístico e político do ocidente nos últimos anos encontraram um limite no modelo de “mais visibilidade”, no modelo da inclusão. Os vampiros como protagonistas são o mote perfeito deste estado intersticial, que não acredita na vida, isto é, na continuidade, mas sim na morte, isto é, na transformação radical. E assim o filme segue, construindo e destruindo. O set-up “garoto-encontra-garota” é dissolvido, abandonado e retomado, criando uma forma estranhamente redonda, cuja circularidade percorre estranhos caminhos. O filme opta por uma estrutura, uma carne, que é definida numa latência, numa aparência de embrionário que é em si uma afirmação do informe. Tem uma face larvar, no sentido de algo que parece ao mesmo tempo uma matéria mole, ainda não totalmente definida e é, ao mesmo tempo, assustadora, fantasmática, como a palavra evoca.

Compõem o caldeirão de Canto dos Ossos duas figuras centrais da literatura brasileira que, não por acaso, são negras: Maria Firmina Reis e Machado de Assis. O filme é atravessado por leituras, que vão compondo uma atmosfera e uma genealogia do horror brasileiro. A educação não é só um elemento narrativo, com a privatização da escola, e do grupo econômico meio gore-maçom, mas é uma ideia que é praticada nessa maneira de distribuir os signos sem fazer anúncio. O projeto da escola, meio Lehmann, meio Illuminati, quer o “viável, o mensurável, o definidor e prioritário”, como diz uma das funcionárias do grupo econômico, antagonista da narrativa. As formas de expressão política não podem mais ignorar a ameaça desta gramática, à qual Cantos dos Ossos, pela sua postura, está certamente atento. O verdadeiro “laboratório do demônio” não dá textão: faz.

No mesmo festival, ano passado, comentando o filme Vaga Carne (2019), arrisquei uma intuição do que chamei de “necropoética”. Não há exatamente novidade nisso, na medida em que o gênero horror trabalha sobre os fenômenos da morte desde que o mundo nem era mundo, mas é notável um certo adensamento de explorações interessadas numa perspectiva onde o espaço da vida, do corpo orgânico em pleno funcionamento, não é mais o lugar privilegiado da atividade dramática, nem de investimento simbólico. Talvez seja uma hipótese razoável que a maior abertura recente de um público “não especializado” a um repertório ligado ao cinema de horror acompanhe uma exacerbação do capitalismo gore hoje vigente.

Canto dos Ossos tem em seu momento histórico um par – que soa apolíneo por comparação –que é A Noite Amarela (2019). Em ambos, o horror é também a matéria de um vigoroso exercício conceitual onde o corpo do filme é explorado assim como o corpo dos personagens, fazendo assim justiça a uma linhagem frequentemente ignorada na história do cinema que desde sempre teve um pendor experimental. Se a palavra “corpos” ocupa o debate público intensamente nos últimos anos, o horror esteve sempre falando disso, entendendo que ali estava o lócus principal dos problemas vindouros, que ali é que estaria o problema. E é louvável que neste curto espaço de tempo haja dois filmes tão conscientes e ativadores desta anti-tradição. O corpo e o desconhecido, questões políticas decisivas para o ambiente atual, tornam, por exemplo, ainda mais urgente a revisão da linhagem do cinema brasileiro que tem no trabalho de José Mojica Marins seu marco incontornável.

O tempo do “nós” acabou. A fissura está escancarada. A narração diz “o que nós, ex-nós, sabemos?”. Não cola mais, não junta. Disjunta. Entretanto, há filme. Quando a aluna lê o conto A vida eterna de Machado de Assis, a professora (vampira) diz: “a sensação das imagens que você trouxe tem tudo a ver com o que estamos estudando”. A sensação das imagens. O filme é um estudo, não no sentido teleológico, que pressupõe um acabamento subsequente, mas um estudo como afirmação política, de um discurso, de um ambiente, de uma lombra, que não vai virar algoritmia, nem cartilha educacional, nem regra de fiscal de gênero cinematográfico. Canto dos Ossos é a própria prática de uma forma de estar, de trabalhar e de compor, a partir da heterogeneidade. Um certo “estar system” que pode parecer monótono a quem veio de casa procurando o que já sabia. Não é simples aprender a curtir ser mordido. É preciso se colocar não em sobreaviso, mas em certo subaviso, um relaxamento receptivo que acolha a estrutura sem grandes curvas que filme propõe (porque quando não há reta, a curva se mascara).

O filme dirigido por Jorge Polo e Petrus de Bairros se distingue em seu tempo por não produzir leituras literais de distopia, sugerindo uma espécie de pós-distópico, onde o tempo já passou, o mundo já passou, e ninguém tá mais tão preocupado com isso. Seu arsenal de poses e contraposes se combina com as paisagens produzindo blocos visuais e sonoros para essa espécie de contramundo onde se vive sob um estranho relaxamento grave. Aí talvez esteja um sinal de um cinema brasileiro que parou de se importar em parecer adulto e afinal, pela exploração do corpo (dos personagens e espectadores), resolveu ficar de boa em ter prazer. Provavelmente, esta é uma das bases do preconceito e incompreensão da crítica e do pensamento de cinema em relação ao campo do horror: o problema do prazer. Essa parece ser a diferença entre os heróis e vilões do filme, e talvez justifique a facilidade com que o grande vilão morre: tem mais força quem curte. Mais fortes são os poderes do corpo, ouçamos bem a mudez de sua voz, o timbre dos ossos.


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