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Organizando na desordem

É curioso notar como Cabeça de Nêgo articula elementos que orbitaram algumas conversas recorrentes desde o início da Mostra. A começar pela pedagogia que cada obra propõe quando lida com os temas políticos, tocando os nervos de um momento em que o Estado brasileiro se retira de seu papel educacional e promete perseguição aos que insistirem, seja na arte ou na sala de aula. Também o exercício de retrabalhar inventivamente os gêneros cinematográficos existentes, nesse caso o do filme teen, enquanto um espaço criativo, mas também superestimado pela eficácia de seu alcance. Por fim, a busca por um jogo dialético entre sujeito e coletividade que se revele capaz de desencadear a desejada intervenção política na esfera comum. Tais referenciais balizaram algumas reflexões em torno das forças e fraquezas dos filmes vistos e encontram linhas interessantes de tratamento em Cabeça de Nêgo.

O primeiro longa-metragem de Déo Cardoso nos reconecta a uma consciência histórica da luta do povo preto a partir dos vestígios do passado que o filme visita ao acompanhar a trajetória de Saulo, um garoto secundarista que decide permanecer nas dependências da escola após passar por insultos raciais dentro da sala de aula. Ao ocupar esse ato a princípio solitário, Saulo afeta o resto do corpo estudantil que paulatinamente adere à sua iniciativa formando um motim em frente à escola – a partir de agora decididos manter a ocupação até que a instituição aprove mudanças estruturais. Uma vocação pedagógica do filme acontece na relação entre os enunciados – uma miscelânea literária que passa da cartilha dos Panteras Negras até a ressignificação das palavra de ordem escolares – e a postura corporal do protagonista, com a qual a câmera se filia, ativando nas imagens uma incitação contínua e disciplinada à política de ação direta. No primeiro plano do filme, uma câmera na mão aguarda serena aquele Saulo inquieto colar os lambes nas paredes da cidade de Fortaleza enquanto lemos nas costas do seu uniforme: “a disciplina é a fonte para o futuro”.

A adesão à narrativa clássica torna Cabeça de Nêgo um dos filmes menos opacos do conjunto da Mostra Aurora deste ano. Desenha para si uma estrutura associada a filmes de ação adolescente, cujo enredo se desenvolve na intensificação da trajetória do herói e de seu conflito com figuras que encarnam arquétipos bem definidos dos agentes da ordem: o diretor da escola, o secretário de educação, a repórter da emissora de televisão. As molduras para esses personagens vão se incrustando à trama, a ponto de eles adquirirem cada vez mais temperos de personas terríveis à medida que a tensão do enredo cresce. Apesar de partir dessa espécie de bom-mocismo, Saulo está sempre às voltas com os tropeços e confusões que seu percurso o traz, não eximindo as ações de serem postas em questão, como quando seu ímpeto de liderança se interpõe à decisão da assembleia quanto às reinvindicações finais do movimento.

O carisma que nos toca em Cabeça de Nêgo parece não se explicar pela simples adesão às formas de linguagem do pop, massivo ou popular (como sugerem algumas defesas), mas pela maneira particular em que o filme arquiteta a criatividade de sua adesão a partir do compromisso com um projeto político muito bem definido. A inserção das câmeras de celulares na matéria do filme, por exemplo, instiga por não se resolver no fetiche pelo registro precário da imagem, mas permitir aos que acionam o botão do REC um acesso renovado à realidade material da escola e de sua própria manifestação política. Como na cena em que, dentro da sala de aula, Saulo inicia o vídeo para denunciar o abuso do inspetor e imediatamente a gravação desperta sua atenção para narrar as rachaduras nas paredes desse projeto escolar que se arruína.

O ritmo paciente da montagem consegue alternar-se entre os ambientes sem se afobar com a tensão que se acentua na trama. Essa condução faz-se necessária ao entendimento que o filme traz de si próprio como transmissor de uma mensagem a ser compartilhada. Se essa mensagem ainda impacta é por relacionar a pedagogia vista no filme com aquela que ele exerce. Cabeça de nêgo invoca o caráter desobediente das formas de luta reverenciadas – o motim e as histórias passadas dos sujeitos que se rebelaram – a partir de caminhos entusiastas do rigor com os métodos.

Como uma espécie de militante em pleno exercício de educação popular, em Cabeça de Nêgo o ethos educador é o ponto de resistência que impede a formação de um envelope de “revolução por delivery” com o qual a estética juvenil poderia empacotar o filme. Por mais definidas que sejam certas molduras – a fluidez dos movimentos laterais de câmera, a atuação dos personagens que se opõem à ocupação, o protagonismo inegociável de Saulo –, o filme ainda se salta delas quando traz à tona inscrições de uma memória do mundo que se inventam para se mostrar. Para serem assimiladas, não cessam de diferir suas formas de manifestação ao longo do filme. Como não se afetar pela cena silenciosa em que os rostos de ícones negros são projetados na parede por detrás de Saulo, como se estivéssemos num sonho?

O cuidado com a necessidade de transmissão inventa uma poética própria para Cabeça de Nêgo e sua constante experimentação das formas de dizê-lo. A tensão entre o suposto invólucro palatável e a inscrição dessa necessidade renovada de repassar saberes cria no filme um curioso cruzamento que não deixa de situá-lo como um filme do bem (que se entende como aquele que tem algo a ensinar), ao mesmo tempo que a verdade desse ensino é constantemente redirecionada para a força da ação.

Ao fim e ao cabo, é possível propor algo tão audacioso como o retrato da persistência individual de Saulo deflagrando um engajamento coletivo, e o lastro desse ato na história já está nos ares, até o ponto em que não nos sentimos assim tão descolados dessa ação. Se a sequência final acaba o filme em dispersão, retomando o caráter indefinido e inconcluso dos eventos políticos, é possivelmente porque esse compromisso histórico com a experiência do levante já não o permitiria obedecer a cartilha do gênero até o fim. Porque o ímpeto de organização e desorganização aqui – em termos de pedagogia política e escolhas estéticas – ainda não perdeu de vista a bela dialética que se aplica à primeira pela necessidade de instaurar a segunda. E vice-versa.


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