Filmes sobre transições adolescentes são quase todos iguais. Principalmente os ruins. Lá pelo início dos anos 1980 o cinema norte-americano esquentou a fórmula, repetida ad nauseam, e um bom marco talvez seja Gatinhas e Gatões (Sixteen Candles, 1984), de John Hughes, ornamento da Sessão da Tarde. Claro que ressalvas existem: o brasileiro As Melhores Coisas do Mundo (2010), de Laís Bodansky, e o mexicano Depois de Lúcia (Después de Lucia, 2012) trabalharam velhíssimos dilemas com criatividade e filiação à causa. Mesmo Hughes inventaria, em 1985, um clássico original sobre a adolescência, o adorado Clube dos Cinco (The Breakfast Club, 1985).
Problemas começam sempre ao enxergarmos os jovens com preguiça. Tudo se resumir ao primeiro beijo, ao primeiro sutiã, à primeira fossa de amor. O politicamente correto e a febre das séries, nos últimos anos, só pioraram a situação. Engessadas em uma hipocrisia ginasiana e diluindo o modelo, temos cada vez mais histórias redundantes. É o caso de Meus 15 Anos, de Caroline Okoshi Fioratti, baseado no livro homônimo de Luiza Trigo. Seu único proveito é ser examinado à luz de outras obras sobre o tema. Para complicar, 2017 foi o ano do polêmico Como se Tornar o Pior Aluno da Escola, de Fabrício Bittar, estrelado por Danilo Gentili. Em Como Se Tornar…, igualmente baseado em livro homônimo, Fabrício e Gentili mostraram os dentes, buscando uma revisão politicamente incorreta do que representa ser adolescente nos anos 2010. Principalmente do que é sofrer bullying nos anos 2010.
Se você é um pré-tiozão, da idade de Gentili, vai achar divertido pra chuchu. Paulo Francis costumava dizer que humilhação infanto-juvenil, a que todos somos submetidos em maior ou menor escala, ajuda a formar grandes (ou pequenos) caracteres adultos. Francis morreu em 1997, sem saber que o século XXI legitimaria a ideia de que crianças e jovens não podem e não devem ser cruéis. Como quase tudo no século XXI, a realidade cotidiana desmente novíssimas engenharias sociais, e a maldade prossegue, agora turbinada pelo assédio moral via Internet. Cômodo e fácil para homens de trinta e tantos, quarenta anos olharem para trás e acharem que valeu a pena. Só esquecem que muitos não sobrevivem à crueldade. Milhares de jovens, em todo mundo, morrem vítimas do famigerado bullying. Assistam ao documentário Bullying (2011) – faltou criatividade ao título – que denuncia aterradores casos de suicídio entre jovens que sofriam na escola. Ou simplesmente façam uma busca no Google.
Um meio termo é entendermos que milhares de tons de cinza brilham entre o preto e o branco. E que defender bullying incondicionalmente, sem um filtro de bom senso, acarreta sérios efeitos. Sou quase anarquista, mas a verdade é que fúrias adolescentes, às vezes, precisam ser contidas. Nesse quesito, o filme de Gentili apresenta somente uma tese que flerta com a imbecilidade kamikaze. Em outros aspectos, acerta. Por exemplo: dois alunos, Pedro (Daniel Pimentel) e Bernardo (Bruno Munhoz), acham uma caixa antiga, de um ex-aluno, no banheiro. A caixa contém exemplares da revista Mad e uma infinidade de badulaques dos anos 1980 e 90, incluindo um caderno de anotações. Saem na pista do sujeito e chegam a Cristiano (Fábio Porchat), que explica ser aquele caderno roubado. Cristiano exige que o gordinho Bernardo toque seu pênis, em troca de revelar a verdadeira identidade do dono da caixa. O sujeito é um efebista, interessado nos carinhos sexuais do rapazinho. Efebistas existem; cabe ao cinema mostrá-los. Há uma diferença gigante entre apologia e representação. Até Solange Hernandes, velha censora da Ditadura, compreenderia este prólogo.
Porém, amigos, voltemos: o filme derrapa ao combater o politicamente correto fazendo uma ode catártica ao bullying. Igualmente erra ao ter a pretensão ingênua de tornar-se um triunfo humorístico contra a caretice reinante, e de escancarar um “coxinha sim, e daí?” mandado de uma suíte presidencial nos Jardins. A situação complica-se quando observamos que caretice não tem pedigree ideológico. Uma caixa de pandora foi aberta no momento em que descobriu-se o moralismo como forma de angariar poder. E lucro. O moralismo virou um ativo financeiro, projeto de engenharia social baseado no controle. Enquanto gritam contra a vilania “esquerdista”, rebeldes meritocratas não percebem que é ao próprio capitalismo que interessa, hoje, a beatitude politicamente correta. Ao mesmo tempo, parte dos esquerdistas sempre veem de bom grado o moralismo que cala e combate os que discordam de suas posições.
Lembrei do proibidíssimo Maladolescenza (1977), de Pier Giuseppe Murgia, em que a bonançosa Laura, de 12 aninhos (Lara Wendel), perde o boy-magia Fabrizio (Martin Loeb) para Silvia (Eva Ionesco), depois de entregar sua virgindade ao rapaz. Silvia era sádica, imaginativa e libidinosa. Laura queria amor, conforto. Em troca, recebe bullying (olha ele aí) do novo casal. E até gosta: penteia os cabelos da inimiga, sensualiza a descoberta de um latente masoquismo. Imagino o MBL vendo Maladolescenza. Imagino os prudentes carolas do século XXI assistindo ao cinema dos anos 1970 em todas as suas plumas. Gentili e Como Se Tornar… são aprendizes de feiticeiro, desconhecem o tamanho do vespeiro onde se sentem seguros. O mesmo vale para a Netflix com 13 Reasons Why e todo o aparato da “responsabilidade coletiva”, gritando tons acima das pulsões contraditórias do ser humano. Perdoem o niilismo, mas se existir “responsabilidade coletiva”, acreditem, haverá alguém lucrando bastante com ela.
Meus 15 Anos fala do bullying, abraça o assunto, embora mesmerizado para um final feliz. Bia (Larissa Manoela) é a garota inadequada, que ganhou uma festa de debutantes em uma promoção de shopping. Toca ukulele, sempre apoiada pelo indefectível “melhor amigo”, Bruno (Daniel Botelho). E, sim, o colégio tem o galã, Thiago (Bruno Peixoto), e a gatinha viperina, Jéssica (Clara Calda), prontos a darem um bote cabuloso.
Nelson Rodrigues tinha um conselho para os jovens: “Envelheçam!”. Na provocação rodrigueana colorem-se os tons de cinza que o século XXI desaprendeu a compreender. Isso porque juventude é estado transitório, do qual escaparemos, mais dia menos dia. E toda a precariedade, falta de certezas e o pavor da aceitação tendem a sumir, o que não deixa de ser assombroso. Tão assombroso quanto Nelson e Francis terem se tornado, ungidos das cracundas do século passado, críticos bem-dispostos do mundo atual. De sua máquina de escrever, sentado na lixeira virada ao contrário, imagino Nelson Rodrigues, herói e vilão, diariamente lacrando no Facebook.
Ao ver Edu (Rafael Infante), o pai da heroína de Meus 15 Anos, vale a máxima de que se transportássemos dois homens de 1977 para uma palestra no século XXI, após dez minutos de fala seriam irremediavelmente presos. Edu, 35 anos, é o modelo de adulto que camaradas dos anos 1970 e 80, fãs da Revista Status, de Dodges Polaras e perfume Lapidus sacaneariam até a morte. Vacilante, ingênuo, quase uma criança brincando de figura paterna. Zeitgeist encarnado. Os diálogos com a filha nos fazem pensar e me parecem os melhores momentos do filme. Ao menos, não provocam sono.
Citei Maladolescenza e lembrei de outro petardo old fashion sobre adolescentes. O esquecido Up The Down Staircase (1967), de Robert Mulligan. Em um colégio barra pesada de Nova York, a professorinha Sylvia (Sandy Dennis) cortava dobrados com uma turma de delinquentes e neuróticos. Até que fica esclarecida sua pulsão fescenina por um dos rapazes, justamente o mais rebelde. Mulligan retornaria ao assunto em Summer of ’42 (1971) – o jovem e a mulher adulta. Sandy Dennis também voltaria a ovular para a juventude em That Cold Day in the Park (1969), de Robert Altman.
Aliás, se quiserem ver algo realmente interessante por Danilo Gentili, sugiro que assistam com atenção à entrevista que ele fez com a adolescente Maisa, no programa The Noite, de 09/10/17. A mocinha de quinze anos bebe, sem querer, de uma caneca cheia de vodka. Danilo incita: “Cospe, cospe”. Em seguida, toma a caneca da mão de Maisa e saboreia o conteúdo que ela despejou, registro indefinido entre o distraído e o lúbrico. Momento de erotismo sutil, quase nabokoviano.
Continuo pensando em outros títulos sobre a adolescência para ilustrar o quanto detestei Meus 15 Anos e acho Como se Tornar o Pior Aluno da Escola uma antítese problemática. Freaks and Geeks (1999) foi ótimo exemplo de como acertar, ainda que no formato de série. Os 18 episódios, ambientados em 1981, são um grande preparativo para o ápice de Lindsay Weir (Linda Cardellini) dançando “Box of Rain”, do Grateful Dead. Tudo o que Quase Famosos (Almost Famous, 2001) gostaria de dizer. Em uma vida vazia brota o sentido, o drop out que faltava. Que este sentido seja expresso por uma canção de setembro de 1970, vai uma aula de Marcuse. O que vivemos são convenções sociais e lá, nos anos do movimento hippie, chegamos perto de sublimar tais convenções. Nunca estivemos tão longe quanto hoje. O corporativismo eletrônico destruiu o indivíduo, o devassou até nos pensamentos e diálogos íntimos, tratados como “Big Data” pela Internet.
E digo mais: angry young men como Gentili – saído da periferia de Santo André, órfão de pai e convertido à “ostentação” que inclui charutos cubanos – só conseguem sobreviver graças a um paradoxo. Em última instância, seu lugar continua sendo a periferia, seu discurso é direcionado à cenoura de burro que alimenta certas classes populares (as mesmas que adoraram o pato da Fiesp, sem enxergarem no pato um espelho de si mesmas) e, caso esse público fiel lhe faltasse, voltaria a ser o zé-ninguém transportado em vagões da CPTM. Como bom Narciso, precisa disfarçar o reflexo, fingindo no purgatório da Festa (1989) – lembrem o filme de Ugo Giorgetti – uma intimidade entre os que habitam o andar de cima, comemorando.
Também acho sintomático que Meus 15 Anos, a exemplo de tantos, enxergue a liberdade em Bia de forma agregadora. Não existe escapada para ela, nem sequer uma lógica disruptiva, apenas a busca pela aceitação e integração. “Conhecer a si mesmo” vira participar de um convescote de diversidades mansas, que vai te fazer justamente igualzinho aos outros algoritmos. Nas cenas finais aguardei que a garota demonstrasse alguma alteridade, assumisse um lado Carrie (1976) e promovesse um quiproquó, curando seu câncer psicológico através de uma revolução. Poderia inclusive apontar uma arma metafórica para a humanidade dizendo: “Es que no estoy curada!”, a exemplo da personagem de Almodóvar em Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1985). Porém nada acontece, só conciliações e deboísmo.
É, ao final das contas, o uber bullying contemporâneo: esta sensação de que nos vendem como mentecaptos o tempo inteiro.
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