lmm-header

A lírica do exílio nos filmes de Leonardo Mouramateus

# What the hell am I doing here?

O escape. Vazar. Dar no pé; sair fora. Os primeiros curtas-metragens de Leonardo Mouramateus retratam anseios como esses, nos quais seus personagens aspiram por terrenos bem distantes. Mauro em Caiena (2012) já sugeria algumas pistas. Em over, a voz do diretor evoca uma carta a um tio que fugiu dos “prédios feiosos de Fortaleza”, embrenhou-se clandestino pela Amazônia, tornou-se um imigrante ilegal, um refugiado. Nem aqui, nem lá, e ainda por voltar – a passar por um ponto no mapa que sequer entra nos livros da escola – o tio vagueia como se não estivesse em nenhum lugar específico. Às cartas não respondidas, Mouramateus flagra o banzo dos que não partiram: a mãe, ou a tia, ou a irmã, a família a escutar uma melodia melancólica que remete ao parente ausente. Mais do que sensíveis desarranjos espaciais, esses primeiros frames em preto e branco conotam vontades e corpos que se (re)inventam a despeito do lugar onde nasceram, cresceram, vivem.

Esse paradoxal desejo de partida repercute, sobrepõe-se e reconfigura-se em cada um dos seus primeiros curtas. Tome Europa (2011). Na sequência de encerramento, vê-se o próprio diretor, apequenado, diante de um enorme outdoor vazio, metálico, a dançar uma música eletrônica. É pelo corpo, é pela dança, são pelos seus pequenos pulos em êxtase que Mouramateus refastela-se com seus desejos de partir enquanto não logra o total abandono. Como se o próprio ato de morar em casa já revelasse uma estranha face de um exílio interno, um isolamento inescapável. O exílio, nessa vertente, já não se revela mais como uma punição, uma expulsão após algum acontecimento, mas ocorre como uma espécie de condição inicial, onde se é estrangeiro pouco importa onde esteja.

Há, nessa toada dos mais diversos movimentos e exílios contemporâneos, ecos dispersos da prosa lírica do escritor chileno Roberto Bolaño, autor hoje indispensável. Num curta como Completo Estranho (2013) esse anseio de fuga obtém uma centralidade ao trazer uma festa de despedida como principal mote; justo a festa que tantos encontros propicia e tantos desmanches suscita. Bolaño paira pela dramaturgia de Mouramateus não apenas na sua adaptação mais direta, como ocorre com A Festa e os Cães (2015), mas na maneira como as amizades estéticas se espelham pelo espaço, pela cidade, pelo mundo. Grifam-se abrigos estrangeiros nesses personagens que, na real, são adolescentes que não cabem mais na casa, na rua, na cidade, no país. Fortaleza transforma-se na “maior cidade pequena do mundo”, onde o provincianismo aglutina uma comunidade afoita por uma próxima diáspora. São personagens a aprontar suas malas, prontos para a partida. Quedam em algum lugar que não apraz ou acolhe suas inquietações. Não haveria porto seguro para os personagens de Bolaño – nem para os de Mouramateus. O inquietante é como a deriva e a partida tampouco basta para esses motes. Traça-se um movimento implícito entre o ímpeto de fuga e um regresso impossível. É nesse seu intervalo, bastante preciso e lírico, que os personagens estalam, estralam-se, acontecem.

Mauro em Caiena (2012), Leonardo Mouramateus
                                            Mauro em Caiena (2012), Leonardo Mouramateus

O mesmo paradoxo pulula num curta polifônico como História de uma Pena (2015) no qual um professor, interpretado por Caetano Gotardo, incomodado com a sua condição coadjuvante na sala de aula apenas ouve de um dos seus alunos (Jesuíta Barbosa): “sabe o que é professor? É que não queríamos estar aqui”. Ao que o professor, replica: “Eu também não”. O estilo desses curtas de Mouramateus realça espaços e tempos desprovidos de sentido. São fortes as sensações de não-pertencimento, que são traduzidas de forma exímia, e recorrente, pelo seu uso do fora-de-campo. Nesses curtas, o fora-de-campo interpela um espaço ausente, a ser descoberto, a convidar por um atravessamento, ainda que essa travessia seja improvável. Há algo de utópico na forma como Mouramateus os modela. Utópico menos no sentido político que costuma se conotar a essa palavra; uma utopia mais próxima da sua etimologia, na sua aposta de construir não-lugares, de retirar o chão, ou a flertar com topografias potentes que apontam para devires, possíveis, imaginários.

O fora de campo articula-se na interpelação e voz lírica de Mauro em Caiena, quando ele evoca um espaço tão ausente como presente, ou nas formas como o vazio daquelas paragens geram um contraponto com a vontade do escape. É um horizonte, inapreensível, que constringe, abafa e cerceia o escape. O fora revela um desejo de saída, mas também de trazer para dentro do quadro emoções que estão ausentes do acontecimento dramático central, mas o atravessam. Tal como um espelho que se mostra um vidro alheio às suas imagens, o fora-de-campo reveste-se de um imã gravitacional, uma presença renitente que impede um escape, como na voz do macho machucado e traído que precisa gritar para a namorada descer, justo ao final de História de uma Pena. Mais do que despropositado, seu desejo não cabe mais no espaço. Ainda assim: lá persiste, num grito autoritário, crescente, exigente. Ou ao amador plano de escape encenado pelos amigos em Lição de Esqui, que fracassa. À praia vazia, ao supermercado do dia-a-dia, à errância das festas e dos cães abandonados nas ruas de Fortaleza, o que está fora e ausente é, paradoxalmente, um desalinhar-se, dentro do quadro,como uma pulsão de constrangimento dos corpos. São forças não compreensivas, que impulsionam os personagens para fora, para uma fuga dramaticamente impossível. Nos seus melhores momentos, a lírica de Mouramateus aglutina um fora-de-campo que é tão físico e sensório quanto imaginário, potente. O que está visivelmente ausente é também o que pulsa entre os corpos e os seus desejos, os quais, ambos precisam urgentemente irradiar na tela. Tal afã, irrequieto, gera uma travessia, uma metamorfose embalada por lidas líricas.

## As cinzas da lira, o corpo do filme

Mas, afinal, que seria a lírica diante da tela e do cinema? Não se trata de uma pergunta meramente retórica ou que busca mais um conceito entre outros tantos. Essa indagação é seminal e impele a uma sensibilidade por interceptar rotas precisas, sedições, sendas e desvios frente ao carrefour do “cinema de poesia”. Embora inaugural, a expressão do poeta (lírico) Pier Paolo Pasolini recai no paradoxo da subjetiva indireta livre, como se os lapsos poéticos do sujeito, da subjetiva, do ponto de vista individual, ganhassem asas para os voos longínquos da narrativa que câmera e filme se permitem. Há uma verve de ruptura da prosa que encanta Pasolini e todos que embarcam nessa deriva. Como se o drama estivesse totalmente suspenso, ou mesmo derruído, quando embalado pela linguagem poética da câmera. Há um fervor por fendas da imagem, por cenas impregnadas de sensações e sentidos, imagens-síntese, para além do espaço, do tempo ou de qualquer outra acepção mais realista e mimética que persegue, como um fardo, várias vertentes da linguagem (e da teoria, e da história) cinematográfica.

Raras são as líricas a esboçar um traço comum numa cinematografia que compartilha da mesma língua e que se fia em certa história e tradição. O curioso é constatar o oposto na música brasileira, onde a forma canção desdobra-se numa lírica reconhecível à distância e que aglutina músicos e poetas os mais diversos. Não se trata de uma ausência de personagens a cantar em nossos filmes, mas esses cantos são mais vindos da musa musical que propriamente de uma lírica cinematográfica. Ao mirar com certa calma a história do cinema brasileiro repara-se numa peculiar discrição, numa quase-ausência: há uma certa lírica que não se cristalizou em linhagem nenhuma do cinema desses trópicos e torna-se, talvez, mais uma notável ausência entre as tantas interrupções que marcam os ciclos não-lineares e sempre interrompidos dessa história. Ainda prévia, ainda incerta, essa constatação evidencia uma forte tradição realista no cinema brasileiro, onde o ato de cantar (em termos fílmicos) torna-se um gesto marginal, menor, quando não vindo de concepções políticas e alegóricas prévias.

Limite (1931), de Mário Peixoto, é, por um exemplo, percebido como um dos pilares do cinema de poesia no Brasil. Pois bem, como uma verve metafísica alheia ao corpo e à matéria, apenas ocasionalmente ele abriga uma voz lírica. Mesmo na famosa cena em que o próprio Peixoto surge num cemitério e compartilha do cigarro de um personagem, ela é perpassada por outras inquietudes, tão poéticas quanto os cantos órficos, mas distinta. Há, ali e em todo cinema de poesia que seguidamente se enlevou, mais uma poética fílmica essencialista – encantada com o aparato da câmera, suas possibilidades e a sua linguagem – do que uma poesia sentimental dos desarranjos do sujeito no mundo. Mais metafísica, tal como um escape poético, um desejo impossível de sair do corpo, diante do seu limite, do que embalada por feixes sensíveis e ambiências que delicada – ou mesmo narrativamente – atingem o indivíduo. Há um sintoma: esse tendão lírico seria reconhecido apenas quando vindo de um experimentalismo da linguagem?

Por onde, então, esticaria esse fio lírico das “nossas” telas? É curioso, mas O Padre e a Moça (1966), de Joaquim Pedro de Andrade, celebra uma atmosfera sentimental extremamente rara de ser vista, ao captar o terror da vivência de um amor censurado numa pacata cidade colonial de Minas. Sua frequência poética, íntima e impossível, frágil e explosiva, faz do pérfido coro de seus habitantes uma arquitetura de afetos potentes, que tremulam nas poucas falas dos personagens. Tremulam, por certo, entre cordas líricas. Ou mesmo O Menino do Engenho, de Walter Lima Jr., que possui lampejos líricos, planos que colidem e apartam o sujeito ao mundo e do mundo – pleno, transitivo – que neles pulsa. Nesse viés, uma lírica cinematográfica é menos marcada por desvios, por indiretos e por liberdades imagética, do que de fato vista, percebida e vivida no corpo do sujeito. A lírica ocorre em meio a um afeto físico, corporal, a um ponto de vista que não se furta da narrativa, mas que é agudamente subjetivo. É menos uma fuga do que um regresso ao corpo sujeito, a uma câmera corpórea, menos idealista.

Em alguns instantes do experimentalismo em super-8 e da arte do vídeo no Brasil, o corpo mescla-se à câmera, e a câmera capta e acolhe laivos genuinamente líricos. Mesmo que seja na sua vertente narcísica, no seu desejo por um antidocumentário ou nos grafismos puramente visuais, a lírica passou bem distante do dispositivo da sala escura e da projeção, o que é algo, aliás, comum em várias cinematografias. Nessa linha, se juntarmos as obras de Letícia Parente, Arthur Omar e mesmo os filmes de Miguel Rio Branco, veremos como o corpo desdobra-se como um pulsão central de uma lírica que vibra no espaço, no bairro, nas ruas sujas do pelourinho entre o calor vivido pelas prostitutas.

Limite (1931), Mário Peixoto
                                                   Limite (1931), Mário Peixoto

Esse torto canto ainda ecoa em outros filmes ímpares, como Lavoura Arcaica (2001), de Luiz Fernando de Carvalho, que embora potente tampouco soprou descendências nem ecoou em outras cinematografias. Há, certamente, instantes marcantes do discurso indireto livre no filme de Carvalho – como Pasolini bem sinaliza no seu conceito de cinema de poesia – mas eles acabam embalsamados por um pathos trágico que dilui os ardis de André entre instantes de conflitos com o patriarcalismo. Ali, entre Carvalho, Raduan (e André, o personagem), seria uma vez mais uma fonte literária que legaria a verve lírica instalada entre a câmera, a personagem, os sujeitos e as ambiências fílmicas. Essa genealogia mereceria um detalhamento, uma atenção mais precisa nas suas minudências e até um contraste com outras tradições poéticas e líricas no teatro e na música brasileira. Mesmo que diante de um plano geral, percebe-se que a frequência lírica do cinema brasileiro repercutiu de modo isolado. Como se suas vozes não ultrapassassem os frames que a abrigaram, e cercaram.

Dobram-se o século e o milênio, e conota-se outros epítetos ao cinema brasileiro contemporâneo. Vem a dita Retomada, o chamado Novíssimo, a avalanche de documentários em primeira pessoa, e os acontecimentos líricos continuam ímpares, ilhados entre casos isolados. Tomemos o mote do afeto e do cinema de Karim Aïnouz, que tão bem coliga a transição da Retomada ao tom do cinema mais recente. Num filme como Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), realizado em parceria com Marcelo Gomes, constata-se uma voz em primeira pessoa que poderia tranquilamente soar como lírica. Uma voz sem corpo certo, sem um índice visual claro que a coligue a um sujeito e, ainda assim, renitente, pulsa um fluxo de imagens que lhe atravessam as retinas. O sujeito, ali e em boa parte desses filmes da mesma safra, observa mais do que canta. Algo que também ressoa na obra de Cao Guimarães, pela qual os sujeitos, quase neutros de si, são pouco a pouco destituídos de qualquer voz própria. Uma vez mais, flagra-se um sujeito apartado; uma subjetividade ceifada por uma vontade de mundo, que lhe é maior, que lhe abrange, sim, mas que também lhe ultrapassa.

O campo do afeto é outro termo que gerou amplo debate no cinema brasileiro mais recente. Num primeiro olhar, o afeto alinha-se à lírica e essa aproximação é clara. Na nossa filmografia, percebe-se algo peculiar e que com algumas exceções, como os primeiros filmes de Felipe Bragança e de outros cineastas contemporâneos. De um lado, os filmes permeados por uma estética do afeto costumavam brotar de coletivos, de posicionamentos estético-políticos certeiros mas que certamente afastavam-se de uma voz individual, de um ponto de vista sensível do sujeito frente a temas e pautas que visavam eclodir um território comum. Nessa fronteira, não havia tanto espaço para a lírica a qual pode ser sinalizada pela diferença, pela irrupção. A lírica, ali, estaria vocacionada a buscar um comum, um feixe de convergências.

De outro lado, quando mais próximos a uma voz individual, essas obras do afeto tendiam a dialogar com uma tradição do realismo traumático, seja à brasileira, seja numa pegada mais mundializada de narrativas pós-traumáticas. Na seara dos filmes-ensaios e mesmo dos ensaios mais subjetivos do cinema de afeto, tende-se a iluminar perdas, narrativas mínimas mas encadeadas por um passado problemático, com o qual o dispositivo fílmico dispara acontecimentos imprevisíveis. A lírica grifa-se por um tempo presente, por uma reinserção imediata do/no/pelo mundo. Mesmo os chamados afetos queer que, de Doce Amianto (2014) em diante, animaram alguns lampejos líricos, esses ficam esmaecidos diante de uma estética coletiva, comunitária, a qual flerta com uma agenda política urgente dada nossa torpe herança patriarcal.

### Vando Vulgo Vedita (2017), de Andréia Pires e Leonardo Mouramateus

Os afetos da lírica (ou uma lírica dos afetos) apontam para um interessante projeto lírico, brasileiro, contemporâneo. Há uma evidente síntese na sua incipiente cartografia sensorial. Se a voz, o corpo e o gesto lírico estão lá tranquilos e presentes já nas primeiras obras de Leonardo Mouramateus, percebe-se, por outro lado, como elas se afastam e dialogam de todas os vértices que apontamos. Não há apenas afeto, nem uma lírica realista, social, ou mesmo um trauma passado. A lírica, em Mouramateus, ocorre como um ponto de partida de invenção. É como a pena a cair que a menina lê num curso de redação. Um instante possível de redenção poética e individual, que talvez faça sentido para alguns, que certamente soará piegas e despropositado para outros. É este o cerne do risco lírico: quando há um desejo de dançar, de curtir e de deixar o mundo vibrando diante de perspectivas individuais, a despeito do papel de ridículo que os outros podem conotar à sua própria voz, àqueles corpos únicos.

Curiosamente, Vando Vulgo Vedita (2017) é mais exíguo e discreto no uso do fora de campo do que os demais curtas-metragens de Mouramateus, além de ser realizado em parceria com Andréia Pires e ter um protagonismo coletivo . Trata-se de um caso único, ímpar, mas que também revela interessantes índices de uma lírica dionisíaca e nos aponta caminhos de uma continuidade com os filmes do jovem cineasta do Ceará. Ao invés da fuga, a permanência; no lugar do escape, a pulsão por ocupar, e trazer valores alheios, distantes, para semearem um dia-a-dia inóspito. O curta induz a uma multidão de vozes. São muitos os protagonistas desse vertiginoso curta-metragem. Muitos e, curiosamente, pequenas variações das faces versáteis do mesmo personagem, do mesmo Vando. Ou das suas várias variáveis, de Veditas e Gokus.

Como trazer, liricamente, o que está fora para o cerne dessas multidões? Não por acaso, Mouramateus e Andréia Pires concentram-se numa figura múltipla que também evoca uma hashtag viral, no estilo #somostodosvando, uma gangue lúdica, onde cada indivíduo, anônimo, ordinário, comum, mescla-se, coaduna-se e vincula-se a um coletivo volátil, genérico, que a todos abriga, mas que, paradoxalmente, ninguém define. Na cena, no quadro, portanto, vislumbram-se os principais pilares dos seus filmes, como o lirismo, a catarse, o êxtase individual e coletivos fisgados por suas vozes e por seus personagens.

Vando Vulgo Vedita (2017), Andrea Pires e Leonardo Mouramateus
                Vando Vulgo Vedita (2017), Andréia Pires e Leonardo Mouramateus

Heroínas, ao menos por um dia; heróis, apenas por algumas horas; enquanto, intrépida, essa multidão que desafia gêneros instala-se, vulgarmente, pela topografia que reivindica ocupar. Como Dândis soerguidos pelo salão de beleza, com os cabelos cheios de tintas, eles perambulam a esmo pela rua, num carro apertadíssimo, na praia, num remoto barco. Ou simplesmente saboreiam um sorvete enquanto, ao calor de Fortaleza, veem trechos de Dragão Ball Z, quando feixes de uma anime japonesa pulsam nos seus corpos, vibram numa geografia da dispersão. Como paisagens dispersas – fora e dentro do campo – distantes e remotas geram um sentido bobo para um momento de interação entre dois e outros personagens ali destacados. Um sentido impregnado no couro cabeludo e que se espalha nos gestos, nos corpos, nas falas.

Aos poucos, essa multidão de desejos ocupa a praia. Em meio a seduções voláteis, em meio a falas banais, algo de sensual cria sentido entre o sol, a areia, e a presença daqueles corpos. Tudo torna-se fútil, frívolo, superficial, banal, desprezível, descartável. Ao mesmo tempo encontra-se uma potência do encontro justamente por topar o intenso instante dessas orgias. São “vampiros sexuais”, homoeróticos, que optam por dar – dar mesmo – frente às “almas sebosas” que, na canção dionisíaca que atravessa esse coro de personagens e desejos, pretendem violentá-los. Há um eco de resistência nessa decisão: o coro de heroínas e bacantes, Veditas e Gokus, decide afrontar a violência a partir das suas afirmações sexuais – e o fazem a céu aberto, próximos da cidade, longe dos guetos, distante dos armários e palcos teatrais que costumam retirar as pulsões políticas e homoeróticas do espaço público. Mais do que cantar a “Polca do cu”, como em Tatuagem (2014), de Hilton Lacerda, esses personagens afirmam-se como cidadãos, com indivíduos que reivindicam a transa como uma forma de sublimar a opressão do espaço.

Na parte final do curta, contudo, o que surge é o contrário, o revés. A violência simbólica e física, de cores engolidas a palo seco, infelizmente, prospera. O coro transmuta-se e os mesmos atores que dançavam a orgia da praia violentam seus pares, seus amigos, seus corpos. Quando se opta por ficar, enfrenta-se o preço de ocupar um espaço e uma cosmovisão na qual seus corpos e valores não fazem parte politicamente daquele bairro – são cidadãos dali realmente exilados. Comum algum é possível. Quando se desiste de partir, é o ethos fascista da violência dos vizinhos da adolescência que apartará, violentamente, qualquer gesto de desvio, qualquer voz distinta que desafine o coro dos hipócritas refastelados. Ao ser uma dobra na lírica desse diretor e coletivo cearense, Vango Vulgo Vedita revela-se ambivalente. Parece repetir: agora, justo nesses anos, entre 2016 e 2017, não é hora de se deixar o barco à deriva. Emerge a hora de partilhar; a hora de intervir. Embora pulse uma verdade e beleza no vampiro sexual, ela deve estar consciente que o fracasso fará parte dessa trajetória e lírica travessia. Vango Vulgo Vedita conclama para apostarmos nessas pequenas brechas, fendas e feridas, onde a luz de outro tempo, não tão áspero e tampouco tão ameno ainda será um prenúncio que essas tintas profanas nos trazem. Como se por aqui quedando, urgisse a hora de fragmentar o país, a cidade, o bairro, para que dos seus pedaços, minoritários, mínimos fragmentos do que poderíamos ser, ainda reinventássemos um convívio possível. A despeito da mais torpe violência que nos rodeia.

#### A Lírica do Exílio em António Um Dois Três (2017)

Se na maioria dos seus curtas há um irrequieto desejo de partida – e se Vando Vulgo Vedita traduz um anseio e uma necessidade de assegurarmos lugares e convívios que são reiteradamente tomados – em António Um Dois Três, o primeiro longa-metragem de Mouramateus, já aponta para outro lado do Atlântico, onde o Brasil, Fortaleza e seus bairros tornam-se apenas um índice distante da narrativa. Filmado inteiramente em Lisboa, o filme inicia-se com Débora (Débora Viegas) a personagem brasileira que dorme num metrô, num trânsito meio indefinido entre a Rússia, onde morou, e o Brasil, para onde retornaria. Há passagem, há movimento, mas os sentidos, agora, são mais de ancorados do que de ansiosos por partidas.

Com leveza e cheio de gracejos, António Um Dois Três revela-se um interessante e intrigado exercício narrativo, com o qual os três atos do filme intercalam diferentes formas de olhar o personagem, a narrativa, o drama e a ação. De todos os filmes de Mouramateus este talvez seja o mais dramático, no sentido formal, e o mais distante do universo lírico que apontei acima – ainda que flerte com esses aspectos em momentos mais específicos. É também a obra na qual a estrutura de uma prosa poética fragmentada, inspirada diretamente em Roberto Bolaño, torna-se direta, evidente. Pode-se afirmar, aqui, que a profundidade de campo assume o proscênio como um elemento narrativo, dramático para ir além ao seu mote visual e restrito ao interior do quadro. A profundidade traça-se entre as sequências, na forma como os (mesmos e distintos) personagens atravessam a fábula, o quadro, a narrativa. Como num caleidoscópio que também é um palimpsesto, como se entre essas sobreposições houvessem fugas, perdas, enigmas, incompletudes de sentidos largados ao longo do processo. NO entanto, essa junção das três partes não propicia uma revelação final, uma explicação plausível, ela esboça um todo fragmentado. Uma vez mais é Bolaño quem nos dá as pistas. Assim como ocorre nos seus principais romances, como Detetives Selvagens e 2666, a fragmentação da narrativa possibilita a percepção sensível de outros vértices vividos pelos personagens, que vão, inclusive, para além da própria narrativa. Não há mais todo, mas fragmentos, mônadas, ora fechadas, ora abertas, que propiciam pontos de vista únicos entre as partes, que não se somam.

António Um Dois Três, portanto, alterna três histórias que não são exatamente a mesma, mas sucessivas, cumulativas, embora também dispersivas, que acompanham distintas facetas de um mesmo personagem, que também já pode ser outro. Esse breve resumo corre o risco de soar confuso, mas na verdade é fluido, cativante. Na primeira parte vê-se um António ainda saindo da adolescência e que vive o universo de uma Lisboa bastante estudantil: pouca grana, uma vida festiva, entre amigos, andanças. São sequências extremamente encenadas, com composições rigorosas, mas que também flertam com personagens cômicos, pequenos heróis picarescos, um tanto atrapalhados e atordoados no seu processo de fuga. Na primeira parte António segue até a casa da ex-namorada, lá pede para ficar, e encontra Débora, onde eles começam um affair totalmente pontual. A própria fábula torna-se histórica e é deliberadamente contada várias vezes pelos mesmos personagens.

António Um Dois Três (2017), Leonardo Mouramateus
                                     António Um Dois Três (2017), Leonardo Mouramateus

Na segunda, o mesmo António é assistente de teatro de uma peça que, agora, é dirigida por um performer e diretor brasileiro. A cena duplica-se: cena dentro da cena, assim como ocorre na duplicação da encenação em Lição de Esqui, o que se vê é o ponto de vista diante de uma representação – ou a representação de uma cena, emato. E, paulatinamente, torna-se, a cena, quando assim duplicada, tanto o espelho teatral de uma cena fílmica quanto o espelho fílmico de uma cena teatral. António, o personagem, agora é outro. Não torna-se apenas secundário, indo à profundidade de campo, como dissimula, de forma lúdica e jocosa, as próprias cenas e atuações da primeira parte. Numa das melhores sequências desse segundo ato, o diretor e António reencenam um trecho, que não sabíamos, antes do seu duplo, antes da sua repetição, que era parte de um ensaio. Mas ele ocorre como filme, pela primeira vez, como se, como cena teatral, ocorresse constantemente, em forma de ensaio, em forma de incessante repetição. Embaralhado de forma maroto entre um truque narrativo e um acontecimento genuíno, o acontecimento cênico-fílmico dobra-se numa potente espiral narrativa e ficcional a qual gera confusões, indistinções, borra fronteiras, da forma de ver, da forma de contar e solicita uma fresta mágica para revermos ficcionalmente aquilo que a câmera capta como cinema puro. São essas frestas tão formais como narrativas e clássicas que gesticulam, pelo filme, uma especial atenção. Ao final, esses embaralhamentos ainda soam mais conceituais do que propriamente cênicos, mais ideias apolíneas e que pairam bem distantes da fúria dionisíaca dos melhores curtas-metragens de Mouramateus.

Na terceira fábula, António surge como um ator e diretor. Embora sua atuação mude constantemente, sabe-se, talvez, numa das pequenas revelações, que na primeira parte da obra ele seria um ator que atua dentro do filme, como ocorre pelas repetições das locações, das cenas de encontro com o pai, com o texto que é repetido, embora já é visto (e percebido) diferentemente. Mas não há, veja bem, um instante de distanciamento da câmera, uma revelação, entre a opacidade e a transparência, que esclarece, que aponta ou mesmo justifica essas transformações. Elas não são claras. Estão ali, ao final, quando António transforma-se em imagem. Foi preciso vê-lo em cena, na profundidade de campo, para, em seguida, ver a sua construção imagética. Entre essas (três) distintas faces do mesmo personagem, do mesmo ator, do mesmo corpo, narra-se um breve e genuíno encontro amoroso entre Débora e António. São atos de ternura, como na sequência final, quando toda a potência cênica dobra-se numa conversa Débora e uma meia. A ficção já se instalou e pode ocorrer em qualquer lugar, em qualquer corpo, em qualquer objeto. É para uma magia boba, e fascinante, que aquela meia colorida acena.

De maneira geral, António Um Dois Três realça personagens – ou corpos, ou estórias individuais – que estão lá, dadas num universo ficcional possível, mas ainda perduram, aflitas, como numa peça de Pirandello, a buscar um narrador. Assim como ocorre nos romances de Bolaño, narra-se da mesma forma que se gera frestas e fendas narrativas sobre o ato de narrar. Essas frestas são sutis, breves e pequenos pedaços, fraturas do ato de contar uma estória que não se furta do encanto de contá-la. Pelo contrário: há ali todo o prazer da narrativa, mas ela, no seu contraponto, suscita dúvidas, pequenas desconfianças e tece uma rede de insuficiências explicativas que só se revolvem ao apontarem para certas forças imagéticas. Se as palavras sempre disseminam perguntas e dúvidas, as imagens embalam-se mais tranquilas no campo do mistério. Elas, as imagens, propiciam acontecimentos autossuficientes.

António Um Dois Três, em síntese, vibra como uma peculiar prosa poética, com um lirismo cênico que o instala como um OVNI, ou mesmo como um objeto pouco identificado dentro do já complexo panorama do cinema brasileiro contemporâneo, fazendo coro, talvez, com uma interessante constelação com alguns filmes de Anita Rocha, Felipe Bragança e Caetano Gotardo. De um lado, ele sintetiza e dialoga com uma (e rara) lírica do exílio, que se estende em filmes de Júlio Bressane na sua passagem por Londres, pelos Quasi-Cinema, de Oiticica e Cardoso, em Terra Estrangeira, de Walter Salles e Daniela Thomas, em algumas obras mais recentes de Karim Aïnouz e mesmo num filme como Muito Romântico, da dupla Gustavo Jahn e Melissa Dulius. Uma tradição (nem sempre lírica) do exílio, aliás, que merece ser vista com mais carinho . Mas, por outro lado, esse filme se desenlaça para uma leveza, uma forma sutil e delicada de se colocar no mundo, na qual a lírica aponta para um possível e breve futuro comum. A despeito do país, a despeito dos países e do pisar entre tantas e tantas fronteiras, a despeito da dificuldade que se tem em reconhecer na juventude, dentro das várias tradições brasileiras, feixes que flertam para outras dobras do nosso momento histórico. A despeito de todos esses apesares, esse filme – e boa parte obra de Mouramateus – mostra que entre os melhores lampejos dessa lírica do exílio encontram-se escapes, salutares, para um cinema ainda bastante ufanista, e uma tradição cinematográfica excessivamente autocentrada, onde costuma-se ver o país a cada filme, onde deixa-se de ver um filme que não aponte, de alguma forma, para o país, onde se quer ver, a cada frame, algo mais do e para o país – onde a lírica, enfim, convide a um respiro mínimo diante do fardo alegórico que se perpetua nos filmes brasileiros e na sua crítica; onde, por António Um Dois Três, as pessoas, os atores, as idiossincrasias e suas diversas máscaras tornem-se mais potentes e poéticas do que o país, seja ele qual for, que calhou de (des)abriga-los.


Leia também: