Fantasmas deambulando pelas bordas
agosto 12, 2015 em Cinema brasileiro, Em Pauta, Pedro Henrique Ferreira
por Pedro Henrique Ferreira
A Margem (1967), de Ozualdo Candeias, começa com um punhado de imagens épicas. Uma barca flana pelo rio Tietê. Em princípio, há somente a barca e o horizonte em quadro. Uma leve panorâmica para a esquerda mostra um homem à margem do rio. Ele olha diretamente para a câmera e se levanta, reagindo a ela, revelando tratar-se de uma imagem subjetiva. Cortes mostram outras figuras à margem do Tiete espreitando a barca, que continua a flanar. Então, assume-se o ponto de vista dos que estão à margem, revelando ao espectador que quem conduz a barca é uma mulher de cabelos negros, pele pálida, dona de um olhar mórbido. Ela interrompe sua viagem para sentar-se à beirada do rio por alguns instantes. A personagem só aparecerá novamente já na derradeira sequência, levando o barco embora, carregando consigo os quatro marginais.
A interpretação da cena que se consolidou historicamente foi a do crítico Moniz Vianna, para quem a situação faz menção ao mito da barca de Caronte, e que tem na mulher a representante da morte. A cena utiliza simbologia semelhante à de um outro filme brasileiro com o qual A Margem guarda proximidades conceituais e temáticas: Limite (1931), de Mario Peixoto. O mito de Caronte está tão presente no filme de Candeias quanto o mito de Sísifo está presente no filme de Peixoto. Em ambos, o barco é o agente de um movimento teleológico. No caso de Limite, a embarcação está em suspensão (os três personagens que procuravam fugir, mas viam-se logo aprisionados ao tempo e ficavam imóveis, à deriva). Em A Margem, o barco interrompe temporariamente o seu trajeto para coletar aqueles que deambulam à margem e conduzi-los ao futuro, que é ao mesmo tempo a plenitude (representada pelo sol em fusão na imagem final) e a morte.
Ambos os filmes são proposições quanto ao projeto moderno, e, para formulá-las, assumem parte da cartilha modernista em sua forma. Peixoto descreve três figuras burguesas descrentes com a mecanização (a fusão da máquina de tear com as rodas de um trem) e o aprisionamento (o leit motif da mulher acorrentada) da sociedade moderna, desesperadas por um novo horizonte – horizonte que o diretor evita filmar, mesmo estando em alto mar; não há condição existencial que possibilite escapar aos limites da finitude do tempo e domínio da natureza (limites estes que o projeto moderno se esforçava por ignorar), e todo desejo de fazê-lo é um projeto naufragado. Candeias apresenta quatro figuras que deambulam à margem até serem coletados por esta barca teleológica. O projeto moderno só pode ser concluído no além – um além que, senão como fim simbólico, interessa pouco ou nada a A Margem.
Limite condena seus personagens ao fracasso pessoal de suas vidas e escolhas. A Margem os condena a existir na real dimensão do subdesenvolvimento como estágio permanente. Mas mostrar a verdade do marginal não é trata-la como o resultado de um processo histórico pernicioso, nem é contextualizá-lo historicamente ou tecer narrativamente as micro relações que denunciam a sua situação; é, principalmente, o esforço de documentar o seu presente, o seu estar-aí, a sua concretude em meio ao mundo. Para fazê-lo, contudo, não basta apenas observá-los. O ponto de partida é tentar tornar-se um deles, e daí a congruente solução de que todas as imagens do filme sejam subjetivas. É necessário encenar esse olhar, recriar a forma como estes homens e mulheres andam e percebem o mundo à beira do Tiete.
A referida margem é um espaço às moscas, de chão enlameado, fábricas abandonadas, casas em ruínas, pontes bambas. O cenário poderia ser um pano de fundo caótico que enfatizasse assertivamente a condição social da vida daqueles personagens, e no entanto ele se torna antes uma espécie de grau zero, o vazio por onde estes fantasmas deambulam. O marginal é expresso por corpos vagantes, pela forma como relacionam-se entre eles (a rudez da negra homérica empurrando o burguês falido no Tiete logo após indagar “como é!? não tô agradando?” e a gargalhada de escárnio subsequente). A expressão se faz rarefeita, porém contundente. Os sons são poucos, mas enfáticos (as palmas do maluquinho da flor em alto volume). À maior parte do tempo, estas figuras estão apenas andando, sem rumo nenhum. A marginalidade não é expressa pela natureza social da trama ou pelo realismo do cenário (sonhos, aspirações, medos… um casamento ou um time campeão de futebol surgem na tela como se fizessem parte daquele espaço grau zero)… a “margem” não é o outro impossível de ser aglutinado pelo “centro”, como José Carlos Avellar faz supor. A amputação não existe, pois não havia nada antes para ser amputado.
O que torna a proposição de Candeias extraordinária é justamente o fato de que nela o centro não existe. O projeto moderno é uma abstração sem referências, um dado puramente simbólico. O casamento burguês é uma aspiração, um sonho. A taça de ouro ou as meninas dançando rock são imagens surrealistas brotando à luz da inconsciência. A cidade de São Paulo é um local como qualquer outro, habitado por animais sórdidos, de raros momentos de iluminação, como todos os outros. A única coisa que existe é a margem. A margem não é a borda ou a beira de outra coisa. É um lugar que deflagra a vida de pessoas que caminham. Simplesmente caminham, sem eira nem beira.
Um limite (como o de Peixoto) se impõe: é o limite daquilo que existe ou daquilo que pode-se conhecer. Todo resto é quimera, e a função do artista não pode mais ser construir a ponte (ou a barca) que conduza o homem de um mundo a outro; é descobrir a beleza nos limites do concreto, na encenação destes animais brutos que são os únicos que lhe estão disponíveis, naquele espaço que se apresenta não como um tempo histórico, mas como uma tábula rasa para a peregrinação sem destino dos corpos. A ascese é encontrada no âmbito da técnica, pois só a técnica e a sua contínua experimentação (que conduzem Candeias às mais impressionantes formas de enquadrar, movimentar a câmera, encenar seus atores e posicioná-los nas molduras do quadro) é que criam a beleza onde aparentemente ela não tem lugar para nascer. Importa mesmo é descobrir na deambulação dos marginais o repertório de imagens memoráveis que este filme nos legou: o suave movimento do vento no cabelo crespo de uma negra; a sisudez da postura do burguês falido ajeitando o terno; ou a alegria e o medo concomitantes do louquinho que porta uma flor.
Se houvesse realizado somente A Margem, é possível que Ozualdo Candeias terminasse envolto por uma mística tão grande quanto Mario Peixoto (ou Jean Vigo). No entanto, uma outra improvável mitologia foi criada. Em Abril de 1968, Moniz Vianna sacramenta, no Correio da Manhã, A Margem como o melhor longa-metragem brasileiro produzido no ano anterior (diga-se de passagem, em 1967 fora realizado também nada mais nada menos que Terra em Transe), escrevendo que Ozualdo Candeias era “um artista instintivo e impetuoso, o talento à flor da pele, portador de um sentido poético perfeitamente raro”. A interpretação de que seu ofício era mais instintivo do que calculado se criou, favorecida pelas lendas de sua vida pessoal: filho de agricultores, não sabe onde nasceu; alistou-se no exército e tornou-se caminhoneiro, profissão que manteve por boa parte da vida; comprou uma câmera, McSonic 16mm, para filmar alienígenas na estrada e então tornou-se cineasta. Candeais seria, portanto, a própria efígie do marginal.
No entanto, na contramão de boa parte dos diretores de contexto semelhante, Ozualdo Candeias rejeitava o rótulo. Afirmou ter lido muitos livros de cinema (citando Eisenstein e Pudovkin, por exemplo), alugado muitos filmes brasileiros na Boca do Lixo, e frequentado um seminário de cinema no MASP, que mais adiante se tornaria o curso superior da FAAP, capitaneado por nomes como Rodolfo Nanni e Nelly Dutra. Não obstante, o mito sobrevive. Principalmente porque os próprios filmes passam a impressão de algo natural e feroz. Neles, “não está nem uma projeção da consciência política em estado bruto nem uma projeção da violência suicida em estado bruto”, diz José Carlos Avellar, “só o estado bruto”. Seus personagens são pura índole: agem como se fossem animais violentos satisfazendo seus desejos libidinosos, afora raros brilhos de lucidez ou força moral.
Se o universo retratado por Candeias é primitivo, a sua arte e sua técnica certamente não o são. Ele justamente as coloca como modus operandi. O gesto é conscientemente repetido 14 anos depois: enquanto A Margem refilmava Limite, Aopção ou As Rosas da Estrada (1981) refilma seu próprio longa-metragem de estréia. As margens do rio Tietê são substituídas pelas beiradas de estradas. A barca de Caronte é substituída por caminhões que passam. A montagem de olhares que apresentava os protagonistas à margem do Tiete é substituída por uma montagem rítmica eisensteiniana de um grupo de camponeses cortando cana e almoçando quentinhas. Candeias muda a origem, mas não muda a classe de seus personagens e nem a natureza do ambiente.
A estrada é o espaço que ali deflagra a teleologia e conduz os caminhões a um destino final: a cidade de São Paulo. Diferentemente de A Margem, as camponesas não são recolhidas; elas se prostituem para conseguirem uma carona e seguirem seus sonhos no veículo modernizante. O destino final é novamente a morte (desta vez, mais lúgubre, sem o sol), vítimas nas notícias de um jornal popularesco. O sonho das mulheres não é amputado, ele simplesmente não chega a existir. Não há ponto final redentor. Candeias dizia que o longa-metragem era “uma advertência às moças que se prostituíam ou pensavam em se prostituir, uma advertência às famílias, que não havia nenhuma esperança nesse futuro, mas só degradação, humilhação”. O mais relevador desta sua assertiva moralizante, porém, não é o seu aparente conteúdo conservador; é que a prostituição, na trama, está a reboque de uma esperança que se revela falsa. Daí o título: ela é uma não-opção, um constrangimento delimitado por uma condição essencial prévia. Um limite.
O mais curioso, no entanto, é a segunda parte do título que, imediatamente, faz menção à prostituição. Mas por que uma expressão tão poética para dar conta de uma profissão que na visão do próprio diretor é indigna? Enquanto, por um lado, o filme é sobre a ausência de esperança (aopção), por outro é sobre o beleza do percurso (as rosas da estrada). É a evocação do que representava também a rosa nas mãos do doidinho de A Margem. O título termina por sintetizar perfeitamente tudo aquilo que este road movie evoca: de um lado, os limites da realidade marginal; e de outro, a poesia passível de ser descoberta em sua crueza.
O idílio vislumbrado nestas mulheres não é facilmente documentado; assim como em A Margem, ele precisa ser encenado. Novamente, estamos diante de deambulações, poses e jogos de olhares que deflagram, através de um sem número de experimentações plásticas, momentos de ternura e ascese: a repetição do rosto de uma camponesa sob uma luz sternberguiana, escondido por um chapéu, virando-se para olhar sonhadora os caminhões que passam e ser tomada por uma rajada de vento e por fim, concluir dizendo “eita, vidinha de merda”; um almoço de um caminhoneiro e sua acompanhante, alternando closes e planos mais abertos de teleobjetivas distantes, tendo como pano de fundo sonoro um diálogo sobre guaraná e Coca-Cola; um diálogo inteiro do approach de um caminhoneiro à prostituta realizado em um plano-sequência que gira em torno de seus rostos, sem áudio. A técnica cinematográfica é novamente o plano da redenção, pois cria imagens memoráveis dentro deste outro plano primitivo ao qual estamos aprisionados. Cada momento de sexo é rodado à sua maneira, ora com uma prostituta bêbada, exausta, caída e um caminhoneiro testando com um martelo a dureza de sua bunda e seu pênis, ora como uma perseguição sob a trilha sonora de um rock, ora simplesmente como um homem deitado em um banco no colo de uma mulher.
O lirismo de A Margem e Aopção ou As Rosas da Estrada não é simplesmente a beleza; é também jocoso, exaltado, inventivo. É este gosto que nasce do desmantelamento irônico da teleologia narrativa que os torna dois dos melhores filmes já realizados na história do cinema brasileiro e na história do cinema, e que inaugurara, em um só golpe, as bases do cinema marginal. É o mesmo gosto e o mesmo desmembramento que vemos logo depois em Bang Bang (1971), de Andrea Tonacci. Este jogo formal, no entanto, está aqui a reboque de toda uma concepção ontológica: os marginais eram uma geração de intelectuais angustiados e desiludidos com os rumos culturais, políticos e sociais do desenvolvimentismo brasileiro dos anos 1960 e 1970. Jairo Ferreira com razão classificava Candeias como “marginal entre marginais”. Não porque fosse um artista intuitivo e não um intelectual. Era por que ele jamais tivera estas ilusões.
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