O Completo Estranho, de Leonardo Mouramateus (Brasil, 2014)

fevereiro 13, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Juliano Gomes

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We own the night
por Juliano Gomes

Não por acaso, a primeira imagem de O Completo Estranho, de Leonardo Mouramateus, é um som. Um som que dura sobre a tela preta. O que seria uma reserva de não-imagem para introduzir uma cena vira, em si, cena: o que acontece quando há alguma coisa que não se vê? Desdobrar o problema da opacidade é examinar os corpos e os espaços para testar se neles a luz reflete, é absorvida, se os atravessa ou inexiste. A opacidade é também um obstáculo à interioridade. A superficialidade inerente da noite, da festa, do sexo, é justamente sua possibilidade de aprofundamento não para dentro, mas para fora, em direção à sua porção de alteridade, aos seus devires. A noite é o territótio do tornar-se outro, do êxtase, do inesperado, do não saber nem mesmo o que está diante de nós.

A dimensão coreográfico-pictórica prevalece sobre a amplitude das variações desses corpos no espaço. Na cena de sexo inicial, na entrada da festa, nas cenas mais movimentadas do filme, tudo parece tender mesmo ao retrato, a um efeito do corpo parado no quadro. A tendência à pose – isto é, à arbitrariedade de uma posição do corpo, anormal – e à imobilidade neste estado é justamente uma espécie de light test, como Nico no rolo final de Chelsea Girls (1966). A dança da luz em cores berrantes nos rostos e corpos, muitas vezes parados, é a forma desses afetos rondando os seres, como insetos perisistentes à procura de sangue. As situações afetivas parecem inversamente proporcionais às situações de luz (o filme esquenta quando escurece, depois da falta de luz; as pessoas se aproximam, se compartilham, seja no casal no escuro, ou no coro de fundo). A única situação que quebraria essa jogo é justamente a que causa a fratura essencial no filme: a coreografia na festa. Ali, a luz atinge uma luz do movimento, da sincronia, e parece ter produzido uma sobrecarga que gera justamente a falta de luz que cria a situação central do filme.

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A força das poses é a de um desequilíbrio dos corpos no quadro que indica uma força atuando neles. O olhar de Loreta Dialla para nós, prenúncio da fratura do filme, é a materialização dessa força de um olhar, de um terceiro na cena, que somos nós. Se há eventualmente paralisia externa, não há nunca neutralidade, nem mesmo no relaxamento. Até dormindo, os corpos estão angulados, entre o ameaçador e o ameaçado, mão em punho, braços flexionados… se posicionam como se estivessem acordados e os acordados como se adormecidos: braços abaixo, cabeça fixa, olhar vago – o jogo de inversos se expande. Assim, há um embate entre corpo e a ação, pois as coisas mais importantes parecem acontecer sem resposta direta do corpo. A força de seus momentos decisivos (o diálogo no escuro, o telefonema inicial) é resultado da pose em combinação com o espaço e o tempo. A expressividade vem justamente da permanência da postura e do adensamento dessa artificialidade que vai fazer desses corpos maleáveis (é muito mais fácil aqui mover-se do que falar, por exemplo) um circuito incerto de paixões fugazes.

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Sob a luz, a exuberância dessas superfícies humanas é contrastada com uma fragilidade da voz. Ninguém parece gritar ou se exceder na voz. Ela parece não se adaptar bem à luz colorida: soa indecisa, furtiva. A luz, afinal, inventa distância. E, num contexto onde o que prevalece é a dimensão mais externa das coisas (a pele), estar junto é estar mesmo perto, compartilhar um espaço e o que está nele. Já que os sentimentos são externos, eles estão nas coisas, no ar e nas paredes, por isso também há o que parecem ser sobras no quadro, os espaços vazios do enquadramento, deixados pelos corpos em retrato (Dani no telefone, ao olhar pra nós, encostada na parede…). Em volta de cada corpo, essa aura de não-sentido precisa de espaço para existir. Cada corpo é um pequeno sistema solar, rodeado de luzes e cores em rotação contínua, o que toma forma diretamente com a última imagem do filme.

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O sentimento, a aproximação amorosa, parece ser incompatível com a manutenção dos contornos fixos: um começa quando o outro cessa. O rosto, local de expressão dessas sensações, perde a força para deixar passar essas formas sem forma, sem correspondência. O que sobra, assim, são as situações de fala. Do banal desbocado ao artificial literário (“tem certeza que eu não te vi?”), a fala tende a um mesmo tom. Ela se torna paixão (“eu te conheço? eu te amo”) não pela entonação, mas pelo texto mesmo, em luta contra o corpo, nas modulações da voz. É quase como se não fosse a voz da pessoa, mas do corpo, num automatismo cujo manejo varia entre o amador e o sublime em suas inflexões. Esses seres expostos (à luz, ao outro, ao ritmo) são marionetes sem manipulador, vazios mas potentes como lugar de passagem, de atualização de sua constelação pessoal, desse filme que irá ser feito, segundo o rapaz no escuro. O vazamento da canção do coro, “I’ll fly with you”, para dentro do casal no escuro é o ápice dessa operação.

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A escuridão na festa após a dança que fratura o filme não é a oportunidade anônima de liberação de desejos represados, mas justamente o espaço para que uma sensação nova possa emergir daí, tão clara quanto escura. Um mundo performático é um mundo sem anterioridade. Aqui, é quase um mundo sem mundo o que vemos. Há a experiência individiual e sua gama particular de possibilidades. A falta de luz é a oportunidade de algo novo se colocar no jogo, na medida em que pode estar desfeita a associação entre corpo e manifestação da emoção. A conversa entre a protagonista e o dono da casa é, também, um jogo de palavras. Assim como as inscrições nas superfícies-personagens (“new” na camisa do estranho; “street” para a que ocupa o primeiro plano que nos mostra a cidade), a palavra é também um espelho de si mesma, numa construção abismática da fala que hesita em significar e que tende à sua forma mesma, como som, como pose sonora. A fala funciona como obscurecimento do sentido, como meio deste “estranho”. Sem corpo, sem imagem, ela é a exarcebação desse sem sujeito que tal cinema parece ameaçar. As intenções e os sentidos reais são deslocados para agir na cena em forma de uma inscrição que dura no espaço, via posturas do corpo.

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Na festa, depois de todo um ritual de sedução, sozinha no quadro, ela olha pra nós. Sabe que estamos aqui. É como se estivesse flertando conosco: eu sei que você me vê, mas finjamos que não –  situação que artificaliza tudo, por dentro do natural. O primeiro plano que olha o sexo à distância vai marcar esse lugar de uma relação necessariamente a três (são vários os triângulos: o casal e a moça do telefone; três amigos que dançam; a garota e seus dois homens da noite). O filme de Mouramateus é a exploração da liberdade da falta de luz no sentido do exercício da perda de contorno afetivo. Os tableaux em luz baixa são os personagens transformando-se em parede, em espaço, espalhando suas sensações para fora deles, o que culmina no grande quadro-cena-ação final. A palavra na camisa se torna legenda da cidade que aparece, mas os signos são ambíguos aqui. Dentro da casa e dentro da cidade, pela reflexão especular, tomaram o mesmo sentido. Com a volta dessa coincidência, o filme precisa então terminar – mas antes ligam-se as luzes coloridas, por si mesmas. A festa, a música, as luzes que retornam, tudo compõe esse desolamento supostamente eufórico. Esconde-se o rosto para apontar para o corpo como um todo, para arruinar sua centralidade na expressão de sentimentos. Ninguém faz cara de nada.

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A sombra, afinal, é a matéria dos contornos, o que compõe verdadeiramente a legibilidade das imagens. A inversão aqui operada é a inversão dos seres da noite mesmo e de suas ações incisivas. Toda aproximação exige e impõe uma cegueria seletiva, um fechar os olhos, que é a materialização desse desejo que não é de nada, nem de ninguém –  mas que pode ser. Mesmo sozinhos nos quadros, não é da individualidade desses corpos que se fala aqui, mas de sua parte muda, que é, por definição, compartilhada, daí a expressividade aguda dos corpos. A dança da fala, esses pequenos rodopios ao redor do sentido, é também a confirmação desse estado de suspensão que, mesmo em sua dimensão semântica, como texto não para de duvidar e dobrar-se sobre si mesmo, com jogos de palavras e inversões. O lirismo aqui emana então dessa forma docemente agressiva com que o corpo invade o quadro e pela naturalidade abrupta com que se adequam quando ocupam o mesmo espaço (“por que você vai embora?”). Conquistar a noite é abrir um espaço interno e espalhar esse vazio como expansão de possibilidades mesmo, de viver esses campos de força, esses passados e futuros não imaginados. O Completo Estranho é uma ode a esse extracampo do corpo, intimidado pela exuberância da luz, que permite o amor em sua plenitude informe, nem desbundado nem pudico, mas naturalmente impuro, como deve ser esse fogo que não cessa.

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