48º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro – Dia 5

setembro 25, 2015 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Marcelo Miranda

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por Marcelo Miranda

Curta 1: A Outra Margem (MS), de Nathália Tereza

O importante na fotogenia é seu caráter de valor estético, essencial, mas indescritível; ela é sentida, mas não explicada; é constitutiva, mas não analisável (…) Essa substância misteriosa é de fato o material do cinema, aquilo que o cineasta trabalha, como o escultor trabalha a argila”, escreveu o teórico francês Jacques Aumont, a partir de conceitos desenvolvidos por Jean Epstein na primeira metade do século XX. A aproximação com A Outra Margem se dá a partir de seu caráter inefável e indefinido, a partir da estrutura de um melodrama, rumo à abstração das luzes e sombras de espaços noturnos e campos abertos das ruas de Campo Grande (MS). Jean é o cavaleiro solitário a circular na máquina automotiva que lhe serve de couraça contra os sentimentos impregnados e impregnantes do lado de fora.

Entre idas e vindas, entre as músicas românticas da rádio local (“Amor sem Fim” é o nome do programa, como a dar a advertência perturbadora a Jean daquilo que lhe espera no contato com o outro) e o efetivo encontro com a namorada, Jean é personagem distante, de personalidade pouco definida, um diamante bruto que não age, mas reage. O filme lhe dá tempo e espaço para agir, mas ele apenas devolve os estímulos ou responde aos estímulos. A Outra Margem trata deste protagonista olhando-o ao longe: por mais que a câmera esteja sempre com ele, muitas vezes ao seu lado, de carona no carro, a abordagem é afastada, interrompida, neutralizada. A gelidez dos sentimentos de Jean influencia na frieza com que ele é mostrado, os espaços por onde ele circula parecem refletir seu estado de espírito, a raiva contida num olhar ou no gesto de virar a long neck e deixar a cerveja rasgar a garganta e aplacar o turbilhão interno. Um devaneio surge na cena da dança, impressionante momento de respiro e afeto, simulacro de um sonho nunca realizado dentro de um filme de dureza incontornável.

Depois desse momento, Jean deixa a namorada em casa. Fim? A noite ainda guarda momentos: A Outra Margem não é filme sobre casal, mas sobre o individual, sobre o desarranjo de Jean, a incapacidade de se adequar à geografia, o vai e vém constante de uma deambulação sem rumo. A música (sempre popular) é a pontuação dessa jornada, e também a precisão de seu desfecho, quando o corpo de Jean não mais der conta de se conter nos limites de um curta-metragem e entrar novamente na escuridão do enquadramento, que parecia aguardá-lo de volta desde o plano inicial. Por “substâncias misteriosas” (Aumont) A Outra Margem caminha sem pressa, tapeando a quem o vê com uma historinha de sentimentos frustrados para, de fato, trabalhar a matéria plástica de uma construção fascinante, aberta a constantes e variadas percepções.

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Curta 2: História de uma Pena (CE), de Leonardo Mouramateus

Se A Outra Margem tem na errância e no silêncio de palavras e sentimentos o caminho para contruir sua poética, História de uma Pena guarda no imobilismo e no díptico ver/ouvir o seu fascínio e estranhamento. É um filme também de espaços, mas especialmente de atores reagindo a estes espaços: o desejo irrefreado de uma pegada na firmeza da terra, a tranquilidade de uma conversa mole entre amigos dentro do carro, as tensões carregadas de sentidos inalcançáveis numa aula (nunca realizada) com o professor de poesia.

Se a tradição do campo e contracampo no cinema historicamente se estruturou em mostrar quem fala e depois quem responde, em História de uma Pena o “quem fala” quase sempre está fora do plano, deixando-se ver apenas um “quem ouve”. Não há necessariamente discussões em cena, mas falas, réplicas e tréplicas, com a atenção visual voltada para quem está na vez de ficar quieto e a banda sonora atenta a quem expõe ideias e argumentos. A inversão causa o acúmulo de atenções necessário à fruição do filme, justamente porque História de uma Pena é sobre a palavra e a retórica, ou mais especificamente sobre como filmar a palavra falada (no que estamos no terreno de Straub-Huillet ou Eugène Green, sem que o curta de Mouramateus seja diretamente devedor de um ou outro).

É também o mesmo universo no qual habitam os personagens de outros filmes assinados pelo diretor, como Lição de Esqui (codireção de Samuel Brasileiro),A Era de Ouro (codireção de Miguel Antunes Ramos) e A Festa e os Cães. A Fortaleza do cinema de Mouramateus guarda o apelo de um lugar de passagem, de transições, de mudanças, de encontros que modificam os sentidos inicialmente apresentados. Basta perceber como, em geral, os filmes começam aparentemente “normais” e dão guinadas ali pelo meio, de formas surpreendentes e inesperadas – não por viradas de trama, mas pelo crescendo da construção de atmosferas inebriantes que devem à precisão dos atores e a uma misteriosa (porque indefinida de imediato) mise en scène todo o poder de encantamento. História de uma Pena adianta desde o título o caráter fabular (há uma poesia em prosa que o justifica mais assumidamente), mas é na explosão do “Foda-se”, dito entredentes, calmamente, sob o olhar hierático do professor, que o caráter libertário e renovador da poesia se deixa sentir com toda a potência.

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Longa: Santoro – O Homem e sua Música (DF), de John Howard Szerman

Retratando o compositor e maestro Cláudio Santoro (1919-1989), nascido no Amazonas e radicado em Brasília, eis aqui um trabalho que dispensa maiores comentários enquanto obra. Documentário de características televisivas das mais batidas e desgastadas (depoimentos de profissionais e familiares, imagens de arquivo, fotografias genéricas e de mau gosto, como que retiradas do Google Images, para ilustrar determinadas passagens, tudo enfiado de qualquer maneira olhos e ouvidos adentro), Santoro – O Homem e sua Música é típico cachorro morto, que não estimula reflexão alguma, por não ter sido estruturado ou pensado para tal. Não há apuro, sentido ou poética; sua existência se deve à vontade (legítima) de dar visibilidade a uma figura importante da cultura brasileira. Faz isso, porém, através de uma massa de informações aleatórias, desestruturadas, como se colocadas na ordem em que foram chegando e do jeito que apareceram, configurando-se num filme sem caminhos por onde pensá-lo. Se não há gesto, então não há reflexão; se não há reflexão, logo não há crítica que lhe seja merecida.

Sua existência enquanto peça de rememoração é plenamente justificável (diferente de sua falta de qualidade mínima, essa sem desculpas). O que não faz nenhum sentido (sob qualquer ponto de vista da honestidade e do capricho) é este filme, de logomarca do governo do Distrito Federal, compor uma seleção de apenas seis longas-metragens num festival organizado justamente pelo governo do Distrito Federal. O fato de Cláudio Santoro ter trabalhado a serviço do DF e hoje ser nome de uma sala pública de espetáculos na capital – o que deu caráter oficialesco à exibição do filme, numa competição que se devia ser absolutamente independente, até porque os longas disputam prêmios em dinheiro – só complica a situação. Filmes fracos, ruins ou questionáveis eventualmente aparecem nas seleções. É natural. Mas Santoro – O Homem e sua Música é de outra estirpe; sua presença no festival passa por camadas que não nos cabe especular. Resta, então, pelo menos o gesto de deixá-lo de lado.

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