Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, de Daniel Ribeiro (Brasil, 2014)

março 20, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

hojeeuquero1

De olhos fechados: um beijo real
por Pablo Gonçalo

Filmes para adolescentes tendem a caminhar numa corda bamba. Talvez entre todas as faixas etárias que esquadrinham esse vago ente chamado público, a adolescência seja a idade mais volátil a novos gostos, estilos e tendências. Caótica, geraria imprevistos exponenciais às planilhas de qualquer gerente de marketing. Hoje Eu Quero Voltar Sozinho dá um passo além nesse falso dilema. O notável no filme de Daniel Ribeiro é como ele equilibra-se com firmeza (rara para um primeiro longa) entre o destemor e a prudência. Vê-se uma direção precisa, minuciosa, que soube não fazer um filme “de” ou “para” adolescentes, mas que insere seus espectadores entre adolescentes. Esse posicionamento do olhar – detalhe de mise en scène, diríamos – faz toda a diferença.

Como se sabe, o filme é a “continuação” do curta Eu Não Quero Voltar Sozinho (2009), que já foi visto por nada menos que três milhões de espectadores no YouTube. Novamente, repete-se um roteiro de interação entre um público (como ente vago ou de nicho?) e as primeiras obras de um diretor jovem. O curta também conta a história de Leonardo (Guilherme Lobo), um garoto cego e ansioso para ter suas primeiras experiências amorosas: um toque, um carinho, um beijo. Na escola, ele convive com Giovana (Tess Amorim) até que surgem os cabelos cacheados de Gabriel (Fábio Audi) e, assim como ocorre no velho Teorema (1968), de Pier Paolo Pasolini, coloca-se em risco todo um equilíbrio de convívio. Para um cego (ou não cego), as flechas da paixão não têm alvo nem sexo certo. Elas atingem, apenas atingem.

De forma certeira, Daniel Ribeiro insistiu em manter no longa o mesmo trio do curta. A química entre os três atores é mais do que convincente; ela envolve e engendra tempos de contra-cena, formas espontâneas de diálogo, piadas e pequenas situações extremamente críveis. Aos poucos, o espectador passa a conviver com dia a dia de Leonardo, Giovana e Gabriel. Por se tratar de um menino cego, a mãe de Leonardo acaba tendo uma preocupação exacerbada com o filho, contrabalançada com a prudência e o diálogo com o pai e o ambiente acolhedor da vó. Leonardo quer acampar na escola, mas, a princípio, não pode; quer fazer intercâmbio, mas também é impedido. No fundo deseja ser um garoto normal, mas a mãe lembra, repetitivamente, que, por ser cego, ele precisa de um tratamento e um cuidado diferentes. Para uma turbulência adolescente, não há recado mais chato de ser ouvido.

hojeeuquero2

É nesse contexto que Gabriel desperta um primeiro interesse em Leonardo. Muitas vezes, em sua fala ingênua, ele esquece que seu amigo é cego e quer, por exemplo, ver com ele o próximo eclipse. Assim, curtem uma noite clandestina: Leonardo na garupa da bicicleta e os dois meninos “vendo” o céu, já que Gabriel, pacientemente, descreve a Leonardo o que ele (não) vê. Aqui, a cegueira congênita é parcialmente sublimada por um gesto carinhoso, um afeto compreensivo. Nessa ética intuitiva de Gabriel, ela não é um elemento de exclusão, segregação ou restrita a cuidados especiais, no sentido protetor e até de paranóia politicamente correta. Com Gabriel há troca; há interação de perspectivas diversas do mundo, como na sequência em que eles simplesmente compartilham gostos musicais diferentes: Leonardo aprecia música clássica, compositores como Arvo Pärt, enquanto Gabriel curte canções pop. Da cegueira passa-se à audição, e de ouvidos abertos, a despeito dos olhos sempre fechados de Leonardo, um passa a ouvir o outro. São tendências estéticas que, pela troca, suscitam uma sensibilidade comum.

Dramaticamente, volta-se ao trio de pequenas paixões que já estavam esboçadas no curta. São sensações diversas, ora confusas, ora sinceras, mas intensas e cheias de contrapontos emocionais mais complexos. Também por ser um garoto novo na escola, Gabriel chama a atenção das meninas. Torna-se a nova atração do pedaço, e é nesse contexto que surge uma bola cantada e anunciada desde o início do filme: Giovana e Leonardo (junto com uma outra amiga) apaixonam-se por Gabriel. Os ciúmes, as intrigas, brigas e formas de soluções são típicas dessa idade e Daniel Ribeiro consegue inserir doses equilibradas de comédia. Quando bem filmada, a adolescência transforma-se numa das melhores idades para despertar risos.

Sutilmente, a paixão que ganha o foco da câmera e dos personagens é a entre Gabriel e Leonardo, que cresce, ganha forma, conteúdo, desejo de concretude. Logo após Giovana sublimar seus ciúmes, num primeiro momento apenas de atenção, ela depara-se com uma certa rejeição prévia, um pré-conceito, frente à ideia de um par homossexual dos seus dois amigos. Em seguida, mais prudente e recuperada, chega a afirmar que “vocês até que formam um casal bonitinho” e passa a estimular o casal. Num contraponto dramático, o roteiro de Daniel Ribeiro retrata uma reação de bullying que, num coro, vai cerceando, simbolicamente, o surgimento mais público do relacionamento entre Gabriel e Leonardo. Delicada e firme, a resposta do casal é de uma veemência política que atinge um equilíbrio entre o auto-respeito e a refuta do olhar bisbilhoteiro e hipócrita. Com um gesto e um close up, Daniel Ribeiro captou uma das sequências mais políticas do cinema brasileiro contemporâneo.

A destreza do roteiro ocorre na inteligente apropriação que ele faz da cegueira, como fato e metáfora, para abordar a homossexualidade não como tema, mas como um acontecimento dramático tão central quanto periférico no filme. Assim, a cegueira de Leonardo ganha tons de pureza. Num dos diálogos mais sutis do filme, Leonardo pergunta a Giovana se ele é bonito e como ela veria o seu rosto, seu corpo. Essa dúvida normal da adolescência (e da vida) ganha um interessante tom metafórico quando enfrentada por um cego congênito como Leonardo, como se essa condição, hipotética e metaforicamente, o eximisse da fase do espelho Lacaniano, do progressivo contraste entre a sua auto-imagem e a imagem que tem dos outros. É como se ética e estética transcendessem as aporias geradas pela visão. É dessa forma simples, direta, que Hoje Eu Quero Voltar Sozinho aborda os paradoxos da imagem.

Nesse sentido, é como se o bullying dos colegas de escola de Leonardo fosse guiado por uma imagem de censura que quisesse gerar vergonha em Leonardo e Gabriel; mas, neles, essa sensação, essa imagem repressiva, não repercute, não gera aderência. Assim, surge um filme que costura uma auto-imagem que passa além de uma ética e estética de censura, normalidade, vigília e exclusão. Paulatinamente, a cegueira torna-se uma forma mais livre de ver e viver um sentimento, como se uma imagem falsamente polêmica do homossexualismo fosse relegada a uma questão secundária, supérflua, e o sentimento emergisse, num primeiro plano, como algo mais importante. Sem dúvida, num país e num mundo policiado por tantos Felicianos, isso é um passo além e necessário, um tom ético preciso, uma aposta que respeita o indivíduo ao lidar com suas emoções, e as formas de amor que, nele, realmente acontecem. De olhos fechados, tudo parece mais simples.

Share Button