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Retenção do resgate

Pão e Gente propõe um jogo de forças muito particular entre as dinâmicas vividas por um grupo de teatro ao reencenar as relações de trabalho cotidianas numa vila paulista e a maneira em que essa reencenação teatral se desdobrará em matéria de cinema. Os espaços de uma padaria, uma banca de jornal e um beco sem saída serão explorados pelos atores na interpretação de textos brechtianos, através da desnaturalização dos vetores capitalistas na lógica de funcionamento desses espaços, sob a ótica do trabalhador que nada possui.

“Cresce a chance de quem não desanima”, diz a manchete do jornal filmado que abre um dos planos iniciais do filme. Em deliberada dissidência frente ao apelo da retórica de incentivo neoliberal impressa na manchete, Pão e Gente constrói as cenas num exercício meticuloso que nem se anima nem se exaspera, mas calcula seus movimentos para alcançar um interesse: desvendar a aparência de realidade nos comportamentos habituais de reprodução e sobrevivência ao mundo do trabalho capitalista. A matemática não é apenas elemento pedagógico que no interior da trama explica as dinâmicas de exploração econômica vividas pelos personagens – ela também dá uma organização aritmética à narrativa. No mundo em branco e preto de sua dialética, a visceralidade cede lugar a uma economia precisa das energias em circulação. Fazendo uso do mínimo, tentarão que o necessário seja transmitido.

Chamando para si os textos antigos de Brecht a Maiakovski e as cenas já filmadas em Straub e Huillet, Pão e Gente invoca os vestígios desse passado com o desafio de reconectá-lo de forma imaginativa ao presente no qual os textos são pronunciados e as cenas novamente vividas. Ao mesmo tempo em que o filme consegue o mérito de recolocar em circulação ideias que precisarão da palavra capitalismo para se articularem – termo que cai em desuso sempre que sua existência é assimilada como normal – ele ainda parece pouco atento à maneira como sua proposição critica age nas diferenças atuais da engrenagem para esse momento em que a consciência das contradições do sistema deixou de ser um elemento transgressor em si mesmo.

Existe um conjunto de experiências que os atores vivem sob a própria pele que ainda consegue evocar uma relação potente da trupe descobrindo a si própria na tensão com as formas de representação e desnaturalização do mundo exterior. Quando os atores comentam suas próprias encenações na terceira pessoa, quando revivem as coerções às quais são submetidos dia-a-dia ou atravessam o enfrentamento aos tipos sociais (o patrão, o policial, o proprietário) que já bem conhecem, suas vivências parecem fortalecer a convicção e o engajamento da equipe no próprio processo. A maneira como esse engajamento se relança ao filme projetado na tela, contudo, ainda não soa capaz de agenciar o mesmo grau de envolvimento nas espectadoras. A mediação organizadora de um narrador sem corpo, aliada à manipulação milimétrica de seus materiais, termina afetando Pão e Gente por um controle de mise-en-scène que trunca sua possibilidade de incidência entre nós que o assistimos.

Quiçá a beleza das cantigas vindas do fora de quadro, assim como aquela sequência derradeira dos planos de outros trabalhadores nos encarando, insinuem formas de suspiros no cálculo da narrativa. Ainda assim, o resto do filme se retém em si mesmo até o ponto em que, quando a sequência final começa, a conexão filme-mundo é desernergizada e as fronteiras que separam um do outro consequentemente preservadas. O gesto de inserir os trabalhadores acaba não implicando uns nos outros, mas, ao contrário, reifica a diferença que evoca a mesma separação dos jogos teatrais em relação ao seu fora.

Interpela-se a um filme como Pão e Gente a capacidade de reviver, com a devoção que lhe é característica, as peças artísticas de um passado, sem abdicar da torsão de sua forma ao momento onde a vivência acontece. Se o resgate histórico de Pão e Gente nos inspira ao pôr na roda ferramentas de compreensão que andam menosprezadas pelos debates contemporâneos mais efusivos, ele estanca-se ao não conseguir fazer uso dessas ferramentas para manejar a matéria de nosso tempo histórico. De proletariado para empresário de si, muita coisa se transfigurou na condição desse a quem chamamos por despossuído, e ainda que a história social de uma desencadeie a outra, é preciso um trabalho de implicação mútua que libere o resgate à emergência do que ainda não calculamos.


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