Na edição de Tiradentes de três anos atrás, Victor Guimarães escreveu um ensaio sobre uma incômoda veia do cinema jovem que então despontava. Nomeada pelo crítico de gentrificação da violência, a tendência dizia respeito ao comportamento apaziguador do olhar de vários dos filmes exibidos naquele ano. Filmes que, através de procedimentos formais específicos, produziam imagens estéreis e distanciadas, diante das quais o espectador se mantinha estranhamente não contaminado, a despeito da pregnância do universo retratado.
Várias das questões daquele texto voltaram à tona com a estréia de Mascarados, de Marcela Borela e Henrique Borela, na mostra Aurora. O longa anterior da dupla, o documentário Taego Awa (2016), também lançado em Tiradentes, chamava atenção pelo trabalho com as imagens, marcando a diferença em relação ao grosso dos documentários brasileiros pela desinibição dos Borela ao apostar numa exploração artística que adensava o conteúdo propriamente documental do filme. Desta vez, em Mascarados, a relação será outra: a frieza e o distanciamento das imagens é o que melhor traduzirá a restrição que continuamente esmorece os personagens.
O filme se dará na companhia de quatro trabalhadores de uma pedreira, prestes a fechar as portas, localizada em Pirinópolis, cidade goiana onde ocorrem as famosas Cavalhadas durante o mês de junho. Os personagens então se dividem entre o trabalho pesado e a proximidade das festas locais, prenhes de uma esperança muda de que não serão demitidos, aproveitando o pouco dinheiro que lhes sobra para viver as festas locais.
Em relação aos demais filmes da mostra Aurora, o novo filme dos Borela é de longe o mais preciso e arrojado em seus procedimentos, hábil em articular a mais-valia realista das imagens documentais com a autoconsciência formal dos seus procedimentos. No entanto, isso vai se revelando um veneno remédio à medida que o domínio dos meios se converte numa assepsia técnico-formal estabelecida por uma rigorosa contenção – quadros fixos, movimentos calculados, escalas cartesianas – que imobiliza os personagens dentro dos limites dos planos. O efeito não é outro senão personagens des-subjetivados, tolhidos de qualquer viço que os permitiria reagir, incapazes de lidar com o meio que então os oprime. Porque a contrapartida da asfixia cênica é o super-dimensionamento das rochas, de onde nasce a impossibilidade do conflito, essa unidade básica da dramaturgia que não independe de certa correlação de forças para se dar.
No momento em que os personagens aproveitam as festas locais, o registro de filmagem se transforma – câmera na mão, iluminação imperfeita, bordas do quadro imperfeitas. Os trabalhadores se divertem enquanto a montagem tenta criar jogos de conflito entre eles e os agroboys também presentes na festa, mas o caráter postiço e pouco prosaico da situação é patente (daí sentirmos menos a fruição conjunta e mais o desconforto de acompanhá-los no momento de raro divertimento). Tudo se passa como se os planos reafirmassem “vejam como os trabalhadores se divertem, beijam, etc”, como se isso fosse capaz de extravasar o que o filme, até então, apaziguara. Não por outro motivo, quando retornam ao trabalho e são informados da demissão, o primeiro plano do rosto de um dos trabalhadores não transmite uma dor subjetiva, mas uma inércia também rochosa.
Daí em diante, o filme impele os personagens rumo a um gesto que os reconcilie com sua própria força. A reviravolta dos personagens se dará no mesmo compasso em que o filme evolui do documentário para a ficção: um dos trabalhadores demitidos roubará o caminhão da pedreira, enquanto outro partirá com uma arma na mão para alguma espécie de vingança particular. Se assistimos a tomada de consciência dos personagens – e isso sacia nosso desejo de representação da revolta –, difícil é acreditar que a reação dos mesmos seja uma solução possível. A ficção, afinal, aparece como solução fácil para as forças do trabalhador que o olhar clínico do documentário esmaeceu. Na impossibilidade de redefinir o olhar, o filme apela para uma vitória quixotesca obtida sem dissenso, sendo que a catarse da revolta não reconstitui automaticamente o que o filme até então constrangeu.
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