Taego Ãwa, de Marcela Borela e Henrique Borela (Brasil, 2016)

janeiro 31, 2016 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Juliano Gomes

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Da importância da imagem selvagem
por Juliano Gomes

Nesses dez anos que nos separam do lançamento de Serras de Desordem (2006), a produção de imagens a partir dos modos de vida de tribos indígenas se consolidou como um campo de pesquisa ainda ascendente, para além dos domínios confinados ao chamado “filme etnográfico”. Mas a consolidação desse segmento nem sempre é acompanhada de uma mudança radical nas formas de abordagem a partir do paradigma estabelecido por Andrea Tonacci. Não parece necessário citar exemplos específicos para observar uma constante reverência que parece impedir a muitos filmes um engajamento direto no trabalho com as imagens. A situação de permanente injustiça política e agressão real e simbólica parecem resultar, no campo da exploração artística, numa certa timidez no tratamentom em um excesso de chapa branca que coloca a batalha estética em segundo plano. Isto posto, é flagrante que Taego Ãwa se alinhe com as exceções a esta tendência.

Não por acaso, o que dispara a produção do filme é a descoberta de arquivos com imagens dos Ãwa. No caso dessa tribo específica, há uma série de características curiosamente muito afeitas a um trabalho com as imagens. Os Ãwa, já chamados de “índios invisíveis”, parecem não só marcados pela permanente violência e violação de seus direitos, mas também por uma recorrente questão de visibilidade e invisibilidade. Pelo seu histórico de reclusão e contato tardio com a sociedade branca, a tribo parece alimentar um certo apetite genocida de faze-los visíveis (cujo episódio da invasão de 1973, retratado pelo filme, articula bem, já ligando violência física e imagética). De certa maneira, a resistência dos Ãwa parece ser uma resistência dupla: a de se fazer visto e a de fixar uma identidade ou uma “natureza”. O filme sugere, via acúmulo de um histórico de agressões físico-imagéticas, que o que parece “natural”, sua “cultura original” (conceitos cordialmente genocidas, já que cultura é processo e troca), é justamente a mutação como resistência: índios que se juntam, se separam, migram, remigram, se misturam com outra tribo por espontânea vontade. Na cultura e nas imagens, a pureza é um mito branco.

Diante desse espaço simbólico a ocupar, o filme de Henrique e Marcela Borela compreende que a justiça verdadeira (o exato inverso da “verdade”) se faz com trabalho, corte, rearticulação e reorganização das forças a partir de regras próprias. Se ao final não sabemos com muita exatidão uma profusão de costumes tradicionais desse povo “sem imagem” (violentado pelo excesso delas), sabemos o suficiente para entender que a instância que liga as operações do filme às dos personagens é a de um investimento na invenção narrativa, no rearranjo das forças existentes como afirmação de multinatureza, impura, mexida, alterada, artificial, e, à sua maneira, justa.

Entre a variação de exploração de um cotidiano claramente narrativizado (planos com raccord espacial; ações que se desdobram em pequenas fases; arquivo aparentemente sonorizado) e o investimento nos materiais de arquivo, a cena que parece funcionar como um centro pulsante do filme é uma cena de caça. O que parece surpreendente é como tal sequência entra no fluxo do filme, ressignificando as narrativas anteriores, que tratam de invasões, massacres e pequenos entrechos cotidianos atuais. Se o filme sugere desde a entrada um tratamento que opta pela exploração plástica deliberada do que mostra, uma cena aparentemente clássica, em termos de decupagem, reafirma este desejo e o reconfigura para além. A sucessão de planos e contraplanos do índio à espreita e do veado que será abatido, as gradações da escala de plano, a tenacidade do índio, as esperas, a ambígua inocência do animal, a camada sonora entre o neutro e atmosférico, constroem um estranho ápice para um trabalho igualmente interessado em narrar um cotidiano de atrocidades sofridas por um povo. Porém, na construção dessa perseguição entre diferentes seres, que resulta na agonia e morte lenta de um deles, abre-se um espaço significante onde as relações adquirem outro status.

Ao mostrar um índio, que o filme caracteriza como permanentemente caçado e perseguido, ocupando uma posição inversa (caçando, matando, sendo, moralmente falando, “frio” e “cruel”), Taego Ãwa constrói uma dupla operação. Por um lado há uma função etnográfica clássica de desenhar um modo de sobrevivência onde caçar é elemento central. Secundariamente há uma redistribuição dos papéis no campo das imagens, na medida que a meticulosa decupagem destaca a sequência do corpo do filme pelo sobreinvestimento narrativo. O que faz nesse filme uma longa cena do abatimento de um animal até sua morte sob a lama (evocando tanto a gramática rouchiana quanto mecanismos clássicos de construção de suspense e desenlace)? O que resulta é uma espécie de fábula sobre a morte, onde se estabelece uma necessidade da violência, cujo limite é uma medida sutil de cumplicidade entre as partes. Mais do que aniquilação, o que vemos ali é uma estranha adequação dos ritmos, a coreografia do índio entrando na duração do animal, tornando-se o animal. É essa a reversibilidade que importa aqui, esse esforço, possível e impossível de mudar de forma. No campo das imagens, quem mata e quem morre é uma questão secundária; o que é necessário é o trabalho nas formas, na composição de sua metamorfose, o que só se constrói com atenção e despudor de lançar-se.

Se há eventualmente uma inconsistência de tom entre a afirmação militante e uma ambientação reticente, o que parece se destacar na experiência de Taego Ãwa é a necessidade de invenção e afirmação para as guerras das imagens e dos significados. A desenvoltura do trabalho com os arquivos, em modulações bastante distintas entre as sequências, cada uma com sua lógica própria, não encontra trabalho à altura na articulação dos materiais atuais. Uma sugestão de teatralização do espaço, numa sequência de subjetiva de uma TV e no “falso final” da demarcação da terra com a placa, parece permanecer como terreno para onde o filme poderia seguir e construir um outro eixo de encenação cujo choque com as sequências de arquivo erigiria reação ainda mais explosiva, destruindo qualquer vestígio de “natureza” ou “registro”. Mas, em relação a seus pares imediatos, Taego Ãwa parece se colocar em um lugar de destaque ao tomar para si a tarefa da violência inerente de um corte; para construir, na imagem, um espaço que projete a justiça de um mundo aparentemente impossível, que aqui, diante de nós, resiste.

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