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Canção do exílio

A história é conhecida por alguns: em um fétido porão de mais um navio negreiro cruzando o oceano, havia entre os futuros escravos que desembarcariam no Brasil, um rei africano. Monarca em sua terra, trabalhou em todas as parcas horas livres para comprar sua carta de alforria e se livrar do cativeiro. Não parou de trabalhar até libertar seu filho e o restante da tribo. Chico-Rei agora era também católico, devoto de Nossa Senhora do Rosário. Volta a imperar em nova terra, distante do velho continente, e para retribuir a Graça, organiza as festas do Reinado. Já no século XX, Maria Casimira, também conhecida como Vovó Casimira, recebe um chamado divino e funda o Reino Treze de Maio.

Nada disso está no filme. Sinais dos tempos. Quem não sabe que procure saber. O mergulho sobre o Reino Treze de Maio não é calcada em uma pedagogia para desavisados ou brancos. Não há lugar para didatismo pois o espaço é de reverência. A Rainha Nzinga Chegou é um título aparentemente ambíguo: poderia se referir à chegada da nova rainha Isabel, também diretora do filme, que assume o trono após o falecimento de sua mãe, Dona Isabel e que reparte o filme em dois; mas parece mais se referir à chegada da nova rainha às suas origens, a sua terra natal depois de séculos de um apartheid continental. Enfim, são essas duas instâncias – a morte e a viagem – que mobilizam o filme.

A morte chega com seu teor de inevitabilidade drenado à surpresa. Um plano filma de costas uma agregação de pessoas. Um plano com câmera na mão, esquisito, enquadrando um rapaz loiro, dessituado, no canto esquerdo da tela também filmando a cena. O plano perdura e só entendemos o que está acontecendo quando uma panorâmica revela o caixão de Dona Isabel. Logo agora, no plano seguinte a sua declaração de que, quem sabe, vivesse até os cem anos. É um plano que desembaralha o embaraço da quebra de decoro de um ato sacro. O que Glauber tensiona ao longo de sua narração em off em Di – atrito entre se postar ali com uma câmera em um enterro enquanto a filha e amigos do morto se incomodam – aqui é posto em um plano sequência: aquele loiro destoante filmando o ato era apenas mais um, aquele ritual era fúnebre, mas também, numa escala espiritual, apenas mais um. Há dor na morte, mas beleza no ritual.

Beleza que não é exatamente desenhada, encenada ou captada ali – as angulações, as muitas câmeras, o amontoado de cabeças na frente dispersam-na. Mas o fator surpresa equilibra as linhas de força. É uma beleza projetada, pactuada, como se por debaixo da superfície. “Beleza” que é rearranjada a partir dali. Com o plano seguinte do mar – elemento essencial no sincretismo – que inicia a segunda parte, o filme se transforma. Primeiro em sua plasticidade fotográfica. Os enquadramentos se “acertam”, o contraste padrão requisitado pelos atuais DCP se instauram. Segundo, com a relação entre câmera e sujeitos filmados se reorganizando. Se até então, predominava o cinema direto, agora Isabel Casimira, nova rainha, junto ao companheiro, fariam essa moderação entre o que se vê e o que se ouve. Situações são criadas ou forçadas para prover esse diálogo diaspórico. Dona Isabel nos dá a mão e nos convida a seguir suas pegadas pela África.

Seus pés batem com as pegadas da primeira rainha. Sinal irresoluto para Dona Isabel de que a viagem corresponde às expectativas espirituais. Na última cena vemos Dona Isabel mergulhar sua coroa no mar de Angola. Pede a benção aos Deuses para seu reinado que segue. Ao fundo, vemos um gigantesco navio naufragado. Monumental. Mas enquadrado torto por conta da ação da rainha em primeiro plano, como se pouco interessasse àquele mundo retratado. Um imenso navio encalhado talvez seja a imagem mais icônica do cinema brasileiro dos anos 1990. Sua imagem-síntese. A imagem que pariu Terra Estrangeira. Walter Salles percebia nessa imagem “não mais o exílio político dos anos da ditadura, mas um novo, econômico, que vem transformando o Brasil dos anos 90 num país de emigração, pela primeira vez em quinhentos anos. Aqui surge a imagem da terra estrangeira como solução, também idealizada, para a ausência de perspectiva, de autoimagem, de identidade.”

No debate do filme, levantei a aproximação sugerindo inclusive a percepção de que nada daquilo era intencional. Intuição confirmada. Para Junia importa mais o mar, elemento tão crucial na história do Congado e de Nossa Senhora do Rosário, e Isabel ali se deparando com ele. Não há filiação possível por que para elas a história colonial transborda à história do cinema. Nessa inflexão, reside um gesto que delineia o cinema brasileiro dos últimos anos. Uma busca pelo olhar que vem de outro lugar, ainda não matizado pela sensibilidade eurocêntrica. Se por um lado há um completo desinteresse por uma certa história, gritante, canônica (quem assume uma locação com um colossal navio e na hora de reenquadrar, faz questão de tirá-lo de cena?), esse espelhamento, ao mesmo tempo nos levanta a imagem de um paradigma brotado. Apesar do navio de Walter Salles e Daniela Thomas ter sido achado numa locação em Cabo Verde, no filme, ele representava esse regresso ao território colonizador de Portugal como único paraíso possível. A rainha Nzinga chegou a outra colônia, tão vilipendiada senão mais quanto as terras tupiniquins. Sua volta se dá não como processo de assentamento financeiro mas de reencontro espiritual. Não mais um encontro materialista, mas ancestral. Hoje, 2019, o navio naufraga de forma vertiginosa a nossa frente. A Rainha Nzinga Chegou é deveras otimista, nos aponta o mar, este tantas vezes já filmado na história do cinema – inclusive pelo próprio Walter Salles em Abril Despedaçado – como revelação e fé. Se virarmos o rosto (a câmera) do navio, as ondas continuam a quebrar. Nossas identidades já não mais gorjeiam como lá.

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O filme de Ana Pi parte do mesmo princípio de A Rainha Nzinga Chegou: um travelogue à terra de seus antepassados. Mas enquanto no longa-metragem o encontro mediúnico sincrético entre a rainha, os deuses e tatas só acontece com muita fé (ou boa vontade) do espectador, aqui há um desenvolvimento formal bem mais elaborado.

Noir Blue é uma jornada em aberto onde o eu-lírico se depara com pequenos portos seguros logo de cara. Começando pela tripulação do avião toda negra – do piloto às pessoas da primeira classe – que “a faz entender que esta não é uma viagem qualquer”, passando pelo controle de passaporte onde ela diz que é brasileira e o homem reage respondendo “mas você sabe que você é daqui, né? Seja bem vinda de volta”. Isso parece fortalecer a confiança racional sobre um elo perdido intercontinental. Logo em seguida, a edição junta uma “série de palavras que não deveriam ser novas” com a recorrência da palavra pretopretopreto. Uma faísca desperta. False flag. Seria talvez evidente esperar que alguma evocação fosse feita pela montagem e som. São, afinal, os dois elementos cinematográficos centrais ao transe, mas Ana Pi desvia desse caminho para se focar em outros dois elementos: a cor e o movimento. O preto que de tão preto é azul invade as fontes dos créditos, permeia em slow, esvoaçante, pelos lenços, roupas e adereços, os planos onde Ana encrava os pés eretos de bailarina no asfalto africano (sem metáforas ingênuas dos pés descalços na terra batida). Já o movimento se dá pela dança. A integração, pelos esbarrões entre corpos com seu próprio suingue. Pulsam com energias intensas entre irmãos. O plano não se move e no entanto é preenchido de Graça.

Matana Roberts tem um projeto impressionantemente ambicioso intitulado Coin Coin que mistura a história da América negra a uma bricolagem de sons de sua banda, de pedais, mas principalmente de seu sax e de sua voz nem sempre cantada. Ela desenvolve uma linguagem, intitulada PSQ, “Panoramic Sound Quilting”, que usa a notação musical ocidental e trechos de ideias visuais que proporciona o que ela chama de um “som acolchoado”. Um pouco como a bricolagem inicial de pretopretopreto. Mas isso se evapora, torna-se outro tipo de acolchoamento, estofo. A narração em off de Ana Pi tem uma cadência serena na voz, nunca melancólica. É agridoce, reconfortante, forra nossa presença fantasmática junto aquele velho mundo novo. Noir Blue faz dessa investigação da ancestralidade um rito de passagem. Revigorante. É blue, mas não blues. Não há um feeling blues. É um tanto solar. Juvenil. A espiritualidade que na arte do século XX é muito evocada pelo abalo sísmico de um ritmo em frenesi seja em pontos de umbanda, batuques de terreiro ou no jazz de John e Alice Coltrane, Pharoah Sanders ou Sonny Sharrock é comumente ligada a transcendência, a uma cadência em espiral que nos levita. A Love Supreme é considerado por Coltrane como um despertar espiritual pela graça divina. O homem como antena sensível entre Deus e o mundo. Em Noir Blue a mulher é abertura corpórea fincada em raiz movente. Existe aí uma imanência das trocas imediatas. Os focos de luz coloridos e desfocados na janela do avião que abre e fecha o filme são como fluxos intermitentes do espírito a ganhar forma pela dança daqueles jovens que transbordam energia (um retrato de uma naturalidade só comparável inversamente aos “negros maravilhosos” de Luís Roberto).

No debate de A Rainha Nzinga Chegou, Dona Isabel, rainha e diretora, conta-nos a história de seus antepassados que, arrastados à força ao Brasil, foram catequisados com a religião do colonizador. Nunca esqueceram suas rezas, mas sabiam da importância de dominar o Pai Nosso. Dupla proteção. Assim nascia o sincretismo religioso. Ana Pi, ainda muito jovem, tenta domar o cinema – é como um touro inflamado, uma hora sempre há de cair – com as roupas e as armas de Nzinga.

Em um dos primeiros debates da mostra Tiradentes desse ano, João Dumans fazendo uma ótima exposição sobre Inferninho – já um clássico do cinema brasileiro – e falando sobre como o melodrama se infiltra sobre o esqueleto de comédia do filme e nos faz levar a sério aqueles personagens ridículos a partir da força da teatralidade solta, sem muita explicação, que: “Vaga Carne leva a depuração do drama no teatro a um lugar que o cinema ainda vai demorar dez anos para chegar”. Se ele não quis minuciar a frase-bomba, não sou eu quem vai estragar o mistério e se conto aqui é por que a frase congelou em meus pensamentos, especialmente agora pensando sobre a evocação da espiritualidade na arte. Minha impressão é de que, nessa conjuração, o cinema ainda leva dez anos para alcançar a música.

Mas…

Noir Blue galga uns anos nessa distância.


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