Cavalo Dinheiro, de Pedro Costa (Portugal, 2014)

outubro 4, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

cavalodinheiro

A sombra dos abutres
por Filipe Furtado

Poucos filmes foram mais influentes nos últimos 15 anos quanto No Quarto de Vanda (2000), de Pedro Costa. Ao lado de La Libertad (2001), de Lisandro Alonso, são filmes que serviram como ponto de partida para boa parte do cinema híbrido com preferência pela auto-ficção que passou a dominar cada vez mais certo universo de festivais (inclusive aqui no Brasil). O que por vezes se perde nos imitadores de Costa, porém, é que se seu cinema busca nas figuras que encontrou no bairro de Fontainhas tipos fortes sobre os quais esculpir seus filmes. A palavra-chave na auto-ficção de Costa será sempre ficção. No caso deste Cavalo Dinheiro, trata-se de, partindo dos fantasmas que assombram Ventura, construir todo um mundo e todo um drama que possa ser devidamente exorcizado.

Fontainhas já não existe mais, demolida em nome do desenvolvimento. Mas ela resiste no imaginário do cinema de Pedro Costa. Se podemos dizer que há alguma mudança entre Juventude em Marcha (2006) e Cavalo Dinheiro, é justamente o novo trabalho ser o primeiro no qual o bairro já existe somente como mito, um espaço de cinema que Costa resgata tanto quanto John Ford faz com o forte da cavalaria americana ou sua Irlanda natal. Não há no cinema contemporâneo esforço maior de dignificar um espaço como o empreendido por Costa com sua Fontainhas e a sua crença de que aquelas pessoas existam como figuras de cinema.

Cavalo Dinheiro é um filme que existe num tempo turvo, nem presente, nem passado, absolutamente físico na forma com que cada gesto é registrado, mas sempre fantasmagórico. É como uma personagem descreve um filme sobre a danação de Ventura, seus fantasmas pessoais e como estes se confundem com os fantasmas de Portugal. A despeito da fama de Costa de ser um cineasta exigente e rigoroso, trata-se de um filme de dramaturgia mais próximo de um Eastwood do que dos exercícios de desdramatização que frequentemente dominam filmes híbridos como este.

Ventura em certo momento se descreve como se tivesse 19 anos, mas é o mesmo Ventura que conhecemos desde Juventude em Marcha e dos vários curtas subsequentes de Costa que expandiram seu mundo de Fontainhas.  O filme passeia entre o limbo do presente e os horrores do passado, um pouco aos moldes de O Homem que Matou o Facínora (1962). O que importa é a maneira como Costa capta os gestos de Ventura e suas interações com seus vários fantasmas (a momentos no filme em que desconfia-se que todos os que cortam o quadro de Costa estão há muito mortos), a forma como suas sombras constroem um mundo e um drama.

Cavalo Dinheiro é assombrado pela memória de uma briga na qual Ventura esteve envolvido – não uma briga qualquer, mas uma que data de 11 de Março de 1975, data da tentativa de contra golpe dentro da Revolução dos Cravos. A revolução de 25 de Abril é o mote que domina todo o passeio memorialístico empreendido por Costa, e o filme joga luz sobre como ela se mostra para um trabalhador imigrante recém-chegado a Portugal como Ventura. O título do filme se refere a um cavalo chamado Dinheiro que Ventura deixou em Cabo Verde ao partir para Portugal. Quando pergunta sobre o destino do animal, recebe como resposta que ele fora destruído pelos abutres. Se o diretor se propõe a reconstruir o passado português como mito, encontra aqui uma porta de entrada muito particular para este episódio chave: não haverá no cinema de 2014 uma imagem mais marcante e assustadora do que a dos soldados cortando a mata, envolto em sombras. São como zumbis do capital prontos para caçar Ventura.

Mais do que qualquer um dos filmes anteriores de Costa, Cavalo Dinheiro é um filme sobre as diferentes raízes fincadas pelo imigrante: o passado de Ventura em Cabo Verde e Portugal e as formas como eles se intersectam. Neste sentido, é vital que, após Vanda e Ventura, Pedro Costa encontre mais uma grande personagem em Fontainhas: Vitalina Varela. Os planos se fixam naquele rosto forte, com olhos que observam a tudo, da mulher que chega ali para buscar o corpo do marido morto. Outro passado envolto em sombras. Vitalina domina a maior parte das sequências em que aparece, coloca Ventura em segundo plano e acrescenta mais uma experiência de Cabo Verde em Portugal. Enquanto os planos focados em Ventura parecem olhar sempre para trás, os focados em Vitalina existem concretos no presente. No seu grande momento, ela lê a certidão de óbito do marido e, na sua dicção firme, é como se cada elemento descrito surgisse concreto na tela. Se a Ventura cabe a dor do passado, a Vitalina cabe a de seguir em frente.

O filme se abre com uma serie de imagens de trabalhadores americanos produzidas pelo fotografo dinamarquês Jacob Riis, que ajudam a colocar toda a ação posterior num contexto mais amplo, ao mesmo tempo especifico, da experiência de Ventura e da sua geração de imigrantes de Cabo Verde em Portugal e de uma história mais ampla de trabalhadores imigrantes. Riis não é um jornalista/fotógrafo qualquer, mas uma figura intimamente ligada aos movimentos sociais americanos do final do século XIX, e não deixa de ser interessante ter em mente que Costa conta que originalmente encomendou a trilha sonora do filme ao músico americano Gil Scott Heron (que faleceu antes da colaboração poder ser concluída). Entre Riis e Heron, Cavalo Dinheiro deseja recontextualizar os tormentos de Ventura por meio de duas figuras da arte engajada norte americana.

Tudo culmina na incrível sequência do elevador que Costa já apresentara no seu curta Sweet Exorcism para o filme em episódios Centro Histórico (2012), apresentada aqui numa montagem um pouco diferente, mais direta. É o encontro de Ventura e um soldado da revolução, sua discussão sobre o papel de cada um no processo histórico e o exorcismo prometido pelo título. Não à toa, Costa se sentiu à vontade em apresentar a cena como um preview do filme, já que ela é ao mesmo tempo um bloco independente – algo ressaltado pela caráter abstrato e simbólico do elevador, um espaço muito diferente das demais locações de Costa – e é toda ressignficada ao vir acompanhada da peregrinação de danação empreendida por Ventura.

Tudo em Cavalo Dinheiro jamais escapa às sombras, ao contraste duro da luz de Leonardo Simões. Sua Fontainhas agora é somente mito, somente cinema. O mito segundo Pedro Costa é a história revisitada pela arte, é a capacidade do cinema de encontrar – nestas diversas sombras que envolvem Ventura e em todo um processo histórico de exploração ao qual Portugal não consegue se libertar, e todo um mal-estar do desenvolvimento que destrói tudo que lhe corta o caminho do bairro ao cavalo chamado Dinheiro – uma luz, um gesto, um possível exorcismo.

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