ilha-tira-header

Cinema de reinvenção

“O oposto de coragem, curiosamente, não é o medo, é a covardia. Porque, ainda com medo, a gente anda. Medo é necessário, é atenção. É possível ter medo e coragem morando lado a lado, dentro da gente. Agora, covardia não. Covardia paralisa. Covardia anula. ‘O que o cinema quer da gente é coragem.’, seja coragem para fortalecer o que tiver de ser fortalecido; seja coragem para romper com o que tiver de ser rompido; seja coragem para revirar, virar e, de novo, revirar tudo. mas: coragem. sempre.” Rafael Simões me enviou essa mensagem há alguns meses atrás, e ela não saiu de mim. Essa frase é parte de uma das falas do filme Ilha, de Glenda Nicácio e Ary Rosa. Por mais que possa parecer uma frase de efeito, dizer que o cinema requer e demanda coragem faz com que algo ressoe na parte de dentro dos corpos como uma sonoplastia daquilo que se expande, algo como uma libertação, fruto do resgate de algo a muito escondido, soterrado, ignorado e esquecido.

“Desse jeito não vai ter o foco certo…”, diz Câmera-Thacle. Emerson responde: “Faz parte da linguagem.” – A premissa básica de Ilha trata de Emerson, um homem negro da periferia, que sequestra Henrique, um premiado cineasta negro, para ameaçá-lo e convencê-lo a co-dirigir um filme no qual Emerson revestirá sua história de vida. Ao mesmo tempo, o argumento de Ilha é o cinema, não somente por estabelecer a relação metalinguística de um filme dentro do filme, como também, por encarnar, no corpo das novas imagens produzidas ali, todo o assombro das estruturas cinematográficas convencionais que buscam compactar a todo momento o cinema e o que ele pode (ou não) vir a ser. Nesse processo, cada plano, enquadramento e movimentação de câmera comenta a relação entre os personagens e deles com o cinema. Emerson é traficante, e transforma todo seu dinheiro em livros, filmes, e coisas relacionados à sua grande paixão. Emerson é a figura da pulsão virgem de um amador – aquele que ama plenamente o que faz, aquele que de tanto amor, somente pode criar, ver e se relacionar com o cinema a partir da liberdade (olhos e câmeras livres, para retomar uma ideia de um dos cineastas brasileiros mais apaixonados e amadores, Carlos Reichenbach). Já Henrique é a figura da desilusão, que envelheceu e perdeu-se entre os caminhos cinematográficos rumo a brochar a pulsão, a invenção e, paralelamente, acabou por se acomodar nas estruturas sólidas e empoeiradas que sustentam grande parte do cinema. Ambas as formas de habitar a vida e o fazer cinematográfico terão fortes influências na forma em que as personagens realizarão as imagens: Câmera-Thacle (diretor de fotografia do filme e personagem do câmera de Emerson) busca sempre por imagens vivas (no sentido de que pulsam e fazem pulsar), e acompanha a intensidade dessa vivacidade, empolgando-se junto dos acontecimentos, comentando as artimanhas cinematográficas como ‘o plano aberto para dar a sensação de solidão seguido do zoom-in de intensidade’ e as trocas com os diretores sobre os próximos enquadramentos e escolhas de filmagem. Em contraponto, a Câmera-Henrique retém sua poesia nos enquadramentos mais rebuscados e adequados à linguagem mais tradicional. Ilha é o contraste, o ponto de encontro e a união dessas duas sensibilidades na relação com o mundo e as imagens, de forma a friccionar os limites da linguagem – aquilo que “faz parte” dela e aquilo que faz-se caber (aproveitando as brechas que o risco abre).

Cinema se cura com mais cinema – Emerson revisita sua história para fazer um filme. Mas como olhar para o passado, para aquilo que se perdeu, para aquilo que fere, para a violência, para todas aquelas imagens que tornaram-se a base para as imagens do agora? Libertando, recriando e abraçando é a resposta que Emerson encontra em seu filme, a mesma forma encontrada por Ilha. Emerson encontra não-atores que, na verdade, são atores, fingindo ser não-atores que transformam-se em atores (Confuso. Assim como essa limitação um tanto quanto simplista que diferencia um ator e de um não-ator.), para interpretar os papéis de seus pais e a criança que um dia foi, recriando alguns acontecimentos que a marcaram e, de certa forma, reconstituir sua trajetória, principalmente, em momentos extremamente cortantes e brutais (na falta de palavras melhores) na relação entre ele e o pai. Henrique busca olhar para aquelas imagens de acordo com sua bagagem estética. No entanto, a contenção formal das cenas encontram-se sempre em risco pela intervenção de Emerson que, por reinventar e implodir os limiares formalistas, faz com que as imagens transbordem e as palavras explodam-se em dança. Emerson insiste na interferência do tempo e do corpo presente nessas imagens-memória compondo um efeito visceral que possibilita a concepção das imagens, também, enquanto corpo físico, logo, uma matéria passível do toque. E, assim, as toca e as abraça. Como na cena em que a “não-atriz” que interpreta sua Mãe acolhe o filho em seus braços após ele sofrer mais um dos ataques de agressividade do pai. A câmera observa, e Emerson entra em cena e se une naquele abraço. Esse gesto de abraçar o cinema, de concebê-lo enquanto uma possibilidade de tato, torna possível uma junção de partes diferentes (como duas visões e existências no cinema quase opostas – e quase complementares) a partir de um contato afetivo, trazendo, de certa forma, uma cura para essas imagens. Curando passado, presente e futuro das imagens, que em Ilha são niveladas em uma só dimensão, de forma a fazer infinito os desdobramentos do tempo.

Cinema de Reinvenção – “Inventar” diz a respeito da ação de criar, descobrir, imaginar algo que, em tese, não existe. Já reinventar, é de outra ordem: é sobre destruir e/ou reconstruir, subverter, partir de um zero, encontrar algo que ainda não veio a existir conscientemente no mundo, e não, necessariamente, algo novo. Reinventar diz sobre voltar a aspirar no mundo o frescor do que não está posto, que não existe, que foi esquecido, soterrado, que foi, rigorosamente e violentamente, excluído. Diz sobre um gesto de almejar e desencadear outras possibilidades no mundo. Como acontece no cinema de Emerson, de Thacle, de Glenda, de Ary e, até mesmo, de Henrique, que se desiludiu e, com Emerson, reencontra seu elo. E isso exige coragem, no sentido de ter amor e liberdade enquanto bravura para sustentar em firmeza e confiança o corpo ativo perante risco e rigidez. Ilha é fruto dessa forma de permitir-se experimentar e reinventar as formas de pensar e realizar cinema, além de trazer outros corpos e temas, junto de outros meios de concebê-los, de enquadrá-los, de dispor o espaço e a subjetividade dos personagens e de suas trajetórias. O filme mistura, sem nenhum pudor, diversas regras formais, e suas subversões, símbolos, referências consagradas, um desbunde acalorado e escrachado, referências da cultura pop, gírias, brincadeiras, movimentações “falhas”, texturas fotográficas que podem ser lidas como descaso (mas proponho refletir se não são, justamente, o contrário), atuações truncadas em alguns momentos, deboches, uma malícia que permite olhar não para aquilo que é “belo” como também para o catarro e baba que escorre pelo o rosto das personagens, cenas poéticas e, assumidamente, meladas de açúcar, corpos que tocam a lente, aproximam-se e mandam o espectador “engolir a minha subjetividade” (fala de Emerson prestes a morrer), entre outros elementos que arrombam todos os limites pré-estabelecidos relacionados a linguagem, estética, o lugar do espectador, o lugar do filme. Pode-se, facilmente, usar a cena de sexo entre Emerson e Henrique como um exemplo máximo desse gesto de um “Cinema de Reinvenção”. Dois corpos masculinos negros amando-se, vibrando, despindo-se, tocando, acarinhando-se, transando, gemendo e pulsando em plena rua. A cena nos é compartilhada a partir do enquadramento somente dos pés e canelas deles, uma parte da rua e o som do oco da penetração, do úmido do cuspe usado como lubrificante, da fricção entre os corpos, do raspão do toque e roçadas, dos gemidos e da respiração ofegante. E, nós – vidrados -, pulsamos com a imagem do início ao fim, imagem que reinventa a forma de olhar para os corpos negros, para o amor e o carinho, o sexo, a pulsão sexual, a forma de excitar a imagem e com a imagem, o risco daquilo que rompe as limitações do espaço público, e a coragem que afronta todas essas imposições. Além dessa cena, a todo momento o filme tem a maneira “sem vergonha” (como definiu Thacle durante o debate) de lidar com as imagens, experimentando constantemente novas formas possíveis e comentando sobre elas constantemente, permitindo que elas sejam plenamente e fielmente bregas (brega: contato bruto e puro na experiência de sentir.) e ressoa como um convite para perdermos nossas vergonhas e rigidez formais também. É evidente que, nem sempre as escolhas fílmicas acertam, Ilha também é um filme de erro, muitos. Em vários momentos a reinvenção da ação desencadeia em coisas meio desastradas, apressadas e, um tanto quanto, excessivas. Ainda assim, o simples fato dessas falhas estarem ali, no filme, expostas é um gesto de humildade e anti-covardia perante ao cinema, admitindo que nem sempre tudo será um ícone genial, completo e perfeito como os cânones na História do Cinema normativo. Esses gestos de coragem, reinventam, não apenas, as formas cinematográficas dóceis e convencionais, como também, os corpos que realizam o filme, a forma com que serão vistos no filme, a relação e o afeto entre os personagens da narrativa e a posição do espectador. De tanta coragem, Ilha exige e cativa a mesma disposição à reinvenção dos espectadores, de um pensamento sobre cinema e linguagem e, urgentemente, da crítica cinematográfica, quase como se coragem existisse sob a condição de nunca vir só, fazendo-se plena quando coletiva. Todo filme é, entre milhares de coisas, uma proposta de cinema, seja pelo tema, pelo roteiro, pelas escolhas formais, pelos corpos em cena e suas interações a criar a cena e, também, por tudo aquilo que não está lá. Ilha é uma co-direção que, além disso, permite e cultiva um processo criativo com intensa participação e importância de todas as partes, da equipe e do elenco, da comunidade da região onde o filme se passa (que, inclusive, foram convidados para, também, compor a equipe). E todo o processo do filme que, ao ser exibido, projeta, também, nos espectadores uma possibilidade de cinema e inspira a coragem do risco. “O que o cinema quer da gente é coragem.”

“Esse filme é para todos aqueles que escolheram o cinema mas não foram escolhidos por ele.” – Rumo ao final do filme, descobrimos uma importante vertente da obra: o cine-educação e a abertura que ele pode potencializar. A educação de cinema tem o poder de enrijecer e impor formas, limitar quem pode ou não realizar, produzir, pensar, relacionar-se com o cinema e de que maneira, ou então, de esbugalhar com tudo isso e reinventar os corpos que ensinam e aprendem, que escolhem e dão escolha ao cinema, que o realizam, fazer com que o poder concedido transforme-se em agência (de vir a ser o que quiser). Dessa forma, descobrimos que o filme de Emerson não diz apenas de seu passado, como também do passado de Henrique. Ele termina com a cena que diz tudo, e muito mais, do que esse texto disse ou poderia dizer: Emerson é assassinado, vítima da violência policial. O tempo parece ter passado. Henrique retorna “ao mundo do cinema”. A noite em sua casa ele recebe uma encomenda relacionada a Emerson. Desnorteado e emocionado com a entrega que ressuscita a memória de seu companheiro, abre o computador com vídeos antigos do próprio Henrique, dando aulas de cinema-educação no passado. Vemos as crianças em aula, o brilho ainda nos olhos de Henrique, tocando e brincando, literalmente, com o cinema, com reproduções em papel e canetinha de invenções relacionadas ao primeiro cinema. Vemos os olhos das crianças que olham com brilho e potência única, e uma delas em especial, Emerson. O vídeo para. Agora vemos a projeção de uma imagem de Emerson, adulto, na mata. Ele anda em direção à câmera, Henrique anda em sua direção. Os dois se abraçam. Realidade e projeção. Corpo e imagem. Vida e morte. Passado e Presente. E esse gesto abre as portas para um futuro.


Leia também: