Zoe Leonard tem um poema: I want a dyke for president.
O cenário da democracia representativa se perdeu no ralo da sarjeta de um esgoto fluorescente.
Não sai tartaruga ninja daí.
Era hora de explodir os bueiros. Mas na falta de renascença, falemos sobre pragmatismo pós-moderno.
Eu quero alguém que se traveste, com dentes ruins, que comeu comida ruim no hospital, usou drogas e já cometeu desobediência civil pra presidente.
Uma utopia: Linn da Quebrada pra cadeira. Jup do Bairro vice.
Do primeiro minuto de Bixa Travesty, passando pelo debate em Brasília, até os agradecimentos da premiação, rasgava da quebrada em nós o avesso do avesso do avesso do avesso.
Aprende depressa a chamar-te de realidade.
Bixa… nos propõe um problema curioso: como dar forma à lacração?
A grandiosidade de Linn pode empreguiçar um autor: “deixa ela falar – porrada atrás de porrada – e já tem filme”. Mas cinema não sendo simples discurso, precisa se travestir. Em Bixa…, os travestimentos são disfarces, não encarnações de uma singularidade, como Linn.
Como camuflar uma grande entrevista de setenta, oitenta minutos?
Nada de fundo preto. No lugar, programa de rádio. Fake News.
E assim, joga-se Linn numa sauna com Jup. “Conversem aí”. “Opa, temos fotos, relembrem esse momento”.
Não me entenda mal. Cada momento desse vem carregado de curtos-circuitos.
A câmera nunca mente. A revisão do passado por fotografia é uma imposição de cima-baixo claudicante, mas daí, o que vem à reboque é força bruta.
O lado performer desde Lino. A performance maior que o câncer. A performance como câncer – “o câncer sou eu” – células de atuação que invadem o tecido sensitivo. Tumores que desarmam uma sensibilidade macho-afetiva, afetada.
O cu largo de quem toma o corpo como fronte de batalha.
O câncer são “células em mim que não querem morrer”: o que se mata e o que se deixa tornar metástase em nossa condição do olhar?
Nesse sentido, Bixa Travesty é libertação e claustrofobia. Questionadora dentro de amarras formais ainda em processo de se encontrar.
Tem hora que o gesto de “jogar aí” é de uma beleza crua: Linn e mãe tomando banho juntas.
A matriarca que ainda desliza, confunde ele e ela, mas tudo bem, isso importa menos que o amor incondicional.
É tatuar na testa que vocês querem?
As mudanças são muitas. E rápidas. E que bom.
Às vezes o que é nosso tá lacrado.
Às vezes o filme não acompanha a radicalidade da quebrada.
Das mais bonitas cenas: Linn só, nua e quieta, ao piano. Uma luz suave incandescente. Notas soltas e vagarosas. Eis que chega a última frase: sua mão esquerda vai subindo a escala, enquanto a mão direita dá o contraponto. A mão direita para e desce, chega numa nota abafada que bloqueia a escalada – do grave ao agudo – da mão esquerda. E o abafamento martela. O corte vira reticências.
Uma metáfora abstrata sobre o jogo entre Linn e o patriarcado, da própria fricção entre forma e discurso.
Fricção que parece ser de uma coesão só em A Sombra do Pai.
O filme de Gabriela Amaral Almeida antes de poder ser costurado como filme de gênero, parece envernizado como filme de conceito. É um roteiro que percorreu o mundo dos labs, sem ponta solta, cada gesto com seu significante.
Isso, contudo, era ainda mais forte em Animal Político. Lá, cada gesto era um movimento político no xadrez do restaurante. O que poderia ser latência, virava superfície. Aqui, o fio é mais solto, o processo de desumanização do pai é mais misterioso, entrópico. Lá, afinal, lidávamos com arquétipos. Aqui, com a transcendência, com o invisível.
A Sombra do Pai narra um luto, uma ausência materna. Uma menina, Dalva (Nina Medeiros) que sobra com um zumbi, seu pai Jorge (Julio Machado).
Como Los Silencios, A Sombra do Pai é também um pacto de fé diante dos mortos. Em ambos, uma questão de sobrevivência. Lá, contra a guerrilha do mundo, aqui contra o materialismo do mundo.
Patriarcado: o mal do século
Linn falava na constante necessidade em travar guerra contra o patriarcado. Em A Sombra do Pai, ele atinge, inclusive os homens. Volta-se ao paradigma de Tempos Modernos: o trabalho como alienação do homem.
Linn: “Eu hoje quero muito destruir o amor. Porque eu entendo que a construção do amor pela sociedade só fez bem aos homens. Os homens são criados para serem amados, as mulheres para amar”.
Silvia Federici: “Eles dizem que é amor. Nós dizemos que é um trabalho não remunerado.”
Não existe amor nessa SP. A obsessão da tia tem outro nome. O goji berry é mais tru. Vindo do pai zumbi, é aquele oco, aquela velha música da Blitz. A filha o ama, mas só leva safanão. Inclusive o safanão é a grande virada do filme. Tá lá a redundância sonora para avisar. À partir dali, a inflexão não tem volta: só há possibilidade de felicidade, de continuidade da vida, pelo renascimento da mãe. Não há possibilidade de prosseguimento da História sem a condução feminina.
As sociedades mais pacíficas são aquelas onde a moralidade sexual é mais flexível e onde o feminino tem um papel preponderante.
E tinge os rumos da madrugada…
A cena emblemática do balanço: o pai empurra o problema para fora de quadro, que volta. Ele não sabe lidar. Empurra mais forte para fora de sua vida. Dalva volta ainda mais rápido. Do jeito que está, o ciclo perdura.
Os encadeamentos dos conceitos: o automatismo do capitalismo redunda no automatismo da vida que redunda na miserabilismo familiar .
Mas, olha só: a criança, mezzo adulta, quer a família de volta, a vida como era, reaver um passado; o pai perdeu a mulher, o colega de trabalho, o trabalho é a própria ruína de sua humanidade. Ela olha pra trás, ele pra frente. À frente: o suicídio; atrás, a morte (que renasce). Quando ele olha pra trás enxerga nos olhos do serralheiro soldador um vazio tão profundo quanto o horizonte de Dalva.
Aliás, taí o melhor personagem do filme: o serralheiro soldador. Uma pena sua passagem tão breve. Ele ausente leva um pouco do medo junto.
Curioso: pelo título, A Sombra do Pai parece apontar para uma trajetória na qual a tal “sombra” vai se apossando do ambiente do filme até chegar à escuridão completa. Essa é uma linha “climática” que define bem Os Sonâmbulos, de Tiago Mata Machado, um dos grandes filmes do festival.
A obra de Gabriela Amaral está mais preocupada com a luz.
A mãe terra que deixa um rastro concreto de vida no rosto da filha, ao fim.
Gaia ciência das preces obscuras.
Um bololô de profanações e superstições: tabuleiro ouija e Santo Antônio revirado de ponta-cabeça num copo d’água pra casar.
O “terror social” (a asfixia de classe) parece trazer junto uma incidência abrasileirada do terror, mas aquele manual de magia branca está mais pra uma Marie Claire das trevas.
O filme tem um pouco esse tom de assepsia querendo ser fundo de quintal.
Vai pro campo das ideias marxistas, dos conceitos do inconsciente, psicologismos sociológicos, dos mistérios abstratos…
É um Mal, afinal, que não possui nem materialidade nem espectralidade.
O que justifica ainda mais o gesto final. Parece ser um pouco de algo terroso que lhe carece.
Era do matriarcado: l’enfant terrible.
Juliana (Grace Passô) também perdeu sua mãe. Parece nunca ter se recomposto da dor (alguém se recompõe?), mas em Temporada, a perturbação (oni)presente é o sumiço do marido.
O marido que nunca irá aparecer. Que tem a voz do diretor André Novais Oliveira. Que não merece ouvidos à explicação – Juliana interrompe o áudio de WhatsApp na hora de sua justificativa.
Se Luna é um romance de formação de uma jovem de dezessete anos que vai aprender a peitar a masculinidade inconsequente, besta, proveniente do pior que a testosterona pode produzir, Temporada é a reorganização de Juliana a partir da separação do provedor. Duas gerações de masculinidades mórbidas. Duas formas de independência feminina bem distintas.
A masculinidade tóxica em Luna é mais franca, bulinadora. A de Temporada é mais invisível, não é tão “vilanizável”, é o sistema estrutural, as algemas do cotidiano.
Luna acaba não conseguindo escapar da sensação do olhar demiúrgico masculino. Os tempos de hoje nos levam ao ~ climão ~ na sala de cinema na cena de strip – até onde vai o fetiche? Cris Azzi parece bem atento aos “pequenos perigos do escorregão”.
Aliás, o longa é como uma grande brincadeira de amarelinha esperando pela casca de banana: plots que já vimos antes e uma habilidade nos beats de roteiro para escapar da mesmice em cada cena.
Na maioria das vezes se sai bem. “Deixa ver seus dentes” dá uma rasteira no climão. A tentativa de assédio na cena seguinte, põe tudo por água abaixo.
Se sai bem até querer se sair maior. Pós primeiro crédito, usa o feminismo como lacração. Ali, como em Bixa – só que não –, vem como narrativa triunfante. O autor, afinal, precisava falar: “tamojunto”. Vira blindagem. Catarse punch-back Aquarius feelings.
Abraçaço.
Em Temporada, Dona Zezé (Maria José Novais Oliveira), candura em forma de gente, nem conhece Juliana, nem a vê e já a recebe à distância, com a voz, convidativa. Sua cadência no falar e andar sereno é de quem não reconhece a pressa, a velocidade ensandecida do mundo. Aliás, eis aí a grande depuração temporal do filme. Mesmo que num ambiente urbano, Temporada parece ter o compasso dos olhos de sua matriarca. A montagem como o tempo de um cafezin.
E hoje o que encontrei me deixou mais triste. Um pedacinho dela que existe.
(nunca uma sessão foi tão emocionante antes mesmo de começar um filme quanto na dedicatória a Maria José, mãe do diretor, pelas conjunções. Isso seria um comentário completamente externo e talvez irrelevante à crítica se não fosse a meta-referência de “Fio de Cabelo” tocando durante a cena, gesto de cortar qualquer coração).
[Chora também o cinema de afeto anos 2000].
Enquanto Zezé acolhe Juliana calorosamente, com todo a ternura do mundo, seu pai, na volta inesperada à Itaúna, a recebe indiferente, questionador, quase sem olhá-la.
O filme taí nessa entressafra: o desamparo de Juliana – morte da mãe, indiferença do pai, abandono do marido – é o fundo do poço. Desse fundo é que a mulher negra se ancora para tomar a vida pra si.
Um trajeto de uma ancestralidade.
Nem tudo está na dor da abolição, mas a abolição mexe com o fundamento de tudo.
Uma outra vida possível a partir do desenraizamento patriarcal. Juliana configura seu novo espaço social. Refaz sua imagem. Chapinha no lixo.
Lembrar: o neoliberalismo veio de um redutinho hermano d’uns boys de Chicago.
Pela primeira vez uma vida inteiramente liberta de qualquer laço. Até, se quiser, dos próprios amigos ao fim.
O primado do começo é também o que dá a combustão de Ilha. Um conflito de cinemas.
Um filme que – para os pescadores de referência – aponta Glauber Rocha (o cartaz de Terra em Transe) e Rogério Sganzerla (“aqui os filmes são subdesenvolvidos por natureza e vocação, man”) como amigos-mestres, mas sabe que precisa se desvencilhar.
Amizade colorida tem, mas é outra onda.
Uma onda bem piriguete inspiracional é a de Edgard Navarro no cinema de Ary Rosa e Glenda Nicácio: “a fé absoluta na confabulação, no sentido literal de entreter-se narrando fábulas, inventando estórias e relações entre estórias”. Mas Navarro é mais ensandecido e tresloucado. Se leva menos a sério.
Com a dupla aqui, sempre tem um puxadinho de doçura pra amenizar a violência.
Emerson (Renan Motta) é a virulência do novo, Henrique (Aldri Anunciação), a tradição cansada. Cansada por que “perdeu o tesão”, faz plano master. O novo acredita que a sacação é a subjetiva.
O Brasil há tempos é “a mulher, a preta, a cega, a esquecida”, mas por esmagamento, deixou de avistar. Abriram-se os olhos: “a esquecida”.
Pra Frente Brasil.
Pra além da ilha da intelligentsia falando do povo. Há pretice, bixa, periferia.
Nesse sentido, Ilha vira eco da curadoria de Brasília.
Uma câmera na mão… o gesto-manifesto em 2018 é redistribuir e recolorir esses punhos cerrados.
Não tem como se opor ao argumento. Mas não deixa de ser uma blindagem. Mas não deixa de ser um enfrentamento: “vocês vão ter que engolir a seco minha subjetividade”.
Juliano Gomes: “Um dos mecanismo mais ativos de repressão simbólica é justamente o ‘direito à ficção’ de toda narrativa que joga com visões do que perversamente se convencionou chamar de ‘minorias’. [Café com Canela] se funda justamente em um apetite voraz pela imaginação, fabulação e mediações, que torna impossível prever seu movimento seguinte.”
Ilha é mais previsível. Mas tem um tesão esbaforido pelo cinema e isso contagia. Impreciso sem querer o acerto. Uma petulância desafiadora, impositiva. Não é todo mundo que aquieta pra encarar Milton.
Se o padrão é careta, o torto pode ser o belo.
A todo instante, Ilha reformula o questionamento do fazer cinema. Quem e como matters.
Mas não se questiona jamé. Eco: “vocês vão ter que me engolir”
Começo da carreira de Henrique aos olhos de Emerson: “mestre da linguagem, da câmera inquieta, do cinema visceral”. Aos olhos do público: “não muito ortodoxo”.
Na Ilha não importa a incidência de fora, importa a inflexão do mergulho.
A negrura travesti de si mesmo. Que nunca pôde brincar de máscaras.
Deixa as garota brincá.
O carnaval é agora.
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