Candeias: ruína e superfície
agosto 12, 2015 em Cinema brasileiro, Em Pauta, Victor Guimarães
por Victor Guimarães
A ruína é uma paisagem recorrente nos filmes de Ozualdo Candeias. São as moradias arruinadas à beira do Tietê em A Margem (1967), os casebres dos operários da construção civil em Zézero (1974), as construções abandonadas nas quais o protagonista esconderá o dinheiro roubado em Caçada Sangrenta (1974) ou o edifício inacabado onde o mesmo David Cardoso – agora um agente da repressão – violentará a mocinha em A Freira e a Tortura (1983), o abrigo de um dos primeiros casais fortuitos de Aopção ou As Rosas da Estrada (1981), o casario por onde perambula o matador de aluguel em Manelão, O Caçador de Orelhas (1982) ou o hotel caindo aos pedaços na Boca do Lixo em As Bellas da Billings (1987). Seria possível multiplicar os exemplos e examinar cada aparição em detalhe, mas o caminho que me interessa é outro. Longe de residir numa irrecuperável obsessão pessoal do cineasta ou de se constituir simplesmente em símbolo ou metáfora, o que emerge no eterno retorno da figura da ruína em Candeias é algo muito mais pregnante: trata-se de um princípio formal que atravessa toda a obra do cineasta, e que se multiplica em traços dramatúrgicos, na mise en scène, na montagem, na construção sonora.
A ruína é o resto, a marca persistente de o que chegou ao auge e colapsou, mas também é o índice do inacabamento daquilo que nem chegou a ser (do que “era ainda construção e já é ruína”, como na canção de Caetano); é a incidência da história (que sobrepõe camadas de passado no presente) e o signo da descontinuidade (muitas vezes violenta) com a promessa de um futuro. O prédio inacabado na sequência capital de A Freira e a Tortura, com seus tijolos aparentes e seus buracos, não poderia ser um ambiente mais significativo para o clímax dessa ácida love story entre um torturador e uma freira militante, lançada já nos momentos derradeiros da última ditadura militar: o desnudamento forçado à beira do abismo convive com a inescapável sensualidade da protagonista, a gravidade da história política do país com o ápice de uma paixão improvável. A ruína é essa chaga aberta, essa superfície material na qual se acumulam os vestígios de tempos heterogêneos, e que ao mesmo tempo vibra em sua moralidade ambígua, em sua beleza putrefata, incômoda e irresistível.
Os personagens de Candeias são essas superfícies: sem substância, sem profundidade, irremediavelmente corroídas desde o início. Homens e mulheres sem passado (os caminhoneiros e as prostitutas de Aopção ou as Rosas da Estrada; os integrantes do bando de Manelão em Meu nome é Tonho); protagonistas sem motivação psicológica (Neco em Caçada Sangrenta) ou sem sombra de virtude heroica (Tonho), que se convertem em puros motores de ação irrefreada; corpos que agem em função dos ímpetos mais imediatos (o Manelão de 1982 se apaixona – enquanto caga – pela filha do fazendeiro e, não podendo concretizar o desejo, sai em busca da primeira fêmea disponível entre os animais da fazenda). Traço maior da dramaturgia de Candeias, seus filmes são povoados por essas figuras dramáticas esvaziadas de conteúdo moral, transformadas em corpos que se movem a esmo por paisagens devastadas (não por acaso, trata-se de um dos grandes poetas da deambulação).
Se não há passado para os personagens, tampouco há qualquer futuro possível. Não há escapatória da condição aviltante e “qualquer esperança respira mal”, como escreveu Paulo Emílio sobre Zézero. O arco dramático, quando existente, é quase sempre bastante esquemático, e repetidamente se converte num implacável circuito fechado. Depois de amargar o pão que o capitalismo amassou, o migrante Zézero ganha uma bolada na loteria, mas só o que lhe resta depois de presenciar os índices da ruína da família é enfiar o dinheiro no cu. Uma improvável canção do Supertramp chega a anunciar alguma ternura para as rosas da estrada na chegada ao cabaré citadino, mas a balada logo é interrompida bruscamente (“pára essa porra dessa música!”), junto com os sonhos mal esboçados, arremessando-as violentamente de volta à mesma “vidinha de merda” contra a qual a boia-fria esboçava uma reação no prólogo.
Mas se a falta de substância se vê concretizada na ausência de passado individual, não se pode dizer o mesmo sobre a relação com a história. Se o inferno é geral e irrestrito (Zézero não tem nenhuma nostalgia quanto ao paraíso perdido pois não há paraíso algum), é porque a catástrofe já aconteceu e só resta caminhar entre os escombros, entre as ruínas do desastre civilizatório. A história é a imensa catástrofe que aconteceu ao país antes que os personagens existissem, e ao espectador só resta contemplar sua sina atravessada pelos signos da destruição consumada: sejam os cadáveres empilhados na carroça em Meu Nome é Tonho, seja o gesto repetitivo do caminhoneiro que bate com uma marreta de borracheiro na bunda de uma mulher antes de se masturbar em Aopção. Coincido com Raul Arthuso ao considerar que o mundo dos filmes de Candeias não é pré, mas pós-civilizatório, desencantado e distópico. “O que você está querendo é uma mensagem de esperança, mas no Brasil dos Collors não está nada fácil”, sentencia o bilhete da sorte ainda no início de O Vigilante (1992).
Assim também é seu estilo. Ao contrário de muito do que se disse sobre sua obra, Candeias não é um “primitivo”, mas justamente o contrário: é um cineasta tardio, alguém que chega depois do vendaval para inaugurar uma mise en scène complexa e livre, que intervém sobre as formas gastas com a maturidade e a sofisticação dos que começam tarde. O que são as personagens misteriosas de A Margem senão figuras inescapavelmente contaminadas pela história, porém maleáveis e abertas à invenção cinematográfica? A narrativa fragmentária, os casais que se formam e terminam ao acaso, os ângulos oblíquos, a encenação epidérmica, tudo aponta para a emergência de uma poética que carrega os vestígios da catástrofe histórica no mesmo movimento em que intervém livremente sobre as superfícies.
A linguagem ao mesmo tempo benjaminiana e modernista que me acompanhou até aqui não é casual. Se o Cinema Novo se apropriava do modernismo da geração de 1930 (como também escreveu Raul Arthuso), o estilo de Candeias encarna o ideário moderno brasileiro por outra chave, talvez mais próxima da geração de 1922. Seus personagens sem substância nos lembram que o herói “sem nenhum caráter” de Mário de Andrade não era simplesmente um mau-caráter, e sim uma superfície sem caráter substancial, sem ancoragem; uma forma livre que, ao romper com a verossimilhança realista e com o psicologismo romântico, poderia se abrir à invenção vanguardista. Em Candeias, é assombroso notar como não apenas nos experimentos mais radicais e formalmente desacorrentados – como A Margem, A Herança (1971) ou Aopção –, mas também nos filmes que dialogam com uma proposta mais tradicional, o cineasta exerce sempre com veemência esse ímpeto vanguardista. Caçada Sangrenta, um policial produzido e estrelado por David Cardoso, é igualmente recheado de enquadramentos tortuosos, de variações abruptas da distância focal, de mudanças bruscas de humor (do trágico ao cômico em segundos) que não são apenas detalhes em meio a uma estrutura convencional, mas que se tornam a própria matéria poética do filme.
Essa superficialidade modernista é também o que faz com que, nos mais diversos filmes, Candeias decida sobrepor ao rosto dos personagens um som inteiramente estranho à diegese, ora com funções metafóricas mais marcadas (mas não sem certa dose de autoironia, como nos rosnados dos cães numa das sequências de sexo de Zézero), ora de forma mais enigmática (como no obsessivo ruído estridente que atravessa toda a filmografia do cineasta e que surge sem aviso em As Bellas da Billings). A dissociação entre som e imagem, aliás, é um traço recorrente, que faz com que as bandas sonora e imagética caminhem frequentemente em desarmonia e intervenham uma sobre a outra das formas mais extraordinárias (a voz over e a cacofonia animalesca de Manelão, as canções de As Bellas da Billings, toda a fabulosa construção sonora de A Herança).
Num país estilhaçado, não há outra forma para as narrativas de Candeias senão se transformarem em coleções de fragmentos, muitas vezes desamarradas de qualquer progressão lógica. Do mesmo modo em que seus personagens frequentemente adquirem um aspecto francamente camaleônico – Neco só pode ser um disfarce ambulante, falsário por excelência, porque não possui substância original e se transformou em pura aparência mutante –, o edifício narrativo dos filmes também se assemelha a uma superfície multiforme e instável. Em sua maquinaria deambulatória coral e imprevisível, Aopção é um compósito heterogêneo de variações em torno de alguns motivos (a estrada, o sexo, a máquina), mas que não chegam a construir nenhuma estrutura fixa (road movie e filme ensaio, epopeia e jogo aleatório); embora possua um grupo de personagens estáveis e uma intriga razoavelmente clara, As Bellas da Billings logo se mostra muito mais interessante enquanto colagem de fragmentos que não avançam em função de uma linha central, mas que apontam para as mais variadas direções simultaneamente (conto moralista e mosaico celebratório da urbanidade, musical sertanejo e retrato documentário da Boca).
O marco da inauguração do Cinema Marginal com A Margem em 1967 – assim como a própria denominação, com a qual o próprio Candeias sempre teve uma relação de estranhamento – urge por uma revisão histórica paciente, mas é irresistível a tentação de arriscar por um momento uma nova interpretação desse mito fundador a partir do argumento aqui desenvolvido. É impossível não notar como, diante do rompimento violento dos ideais cinemanovistas, em pleno recrudescimento da repressão, surge uma poética da ruína e da superfície que vem esboçar um rearranjo das coordenadas do cinema brasileiro daí em diante. É como se Candeias, em meio à fragmentação dos compromissos e das utopias do Cinema Novo, apanhasse os cacos espalhados pelo chão e com eles construísse uma filmografia inteiramente composta de estilhaços, buracos, ruínas que se movem. Uma carreira que começa com A Margem só poderia culminar nos estupros coletivos e nos açougues que vendem carne humana de O Vigilante.
Cineasta da matéria em decomposição – lembremos dos planos detalhe da lavagem oferecida aos convidados da mansão decadente em As Bellas da Billings –, Candeias se posiciona diante do imenso necrotério da tradição cinematográfica, o toma para si e se põe a produzir seus próprios rearranjos improváveis. Opera sobre superfícies corroídas para nos devolver uma matéria inevitavelmente arruinada, mas incandescente e inesperadamente bela, como uma explosão.
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