Andrea Mojica perversão

Filme ruim, a poesia de um mundo

Perversão (1978) – produzido, roteirizado, dirigido e estrelado por José Mojica Marins – é um filme ruim. Nada contra. O cinema brasileiro não é para fracos e, dos filmes ruins, podemos extrair a poesia de um mundo. Além disso, o Mojica setentista, em retrospectiva, parece cada vez mais interessante. Apresentado ao público em janeiro de 79, Perversão recria o tema da revanche feminina, clássico da década e que, no Brasil, gerou amplo imaginário – ainda que fragmentado, disperso. Vivíamos de comunicações precárias e governados por uma ditadura militar caduca. Poucos meses depois, o país assistiria na Rede Globo ao seriado Malu Mulher e, em agosto, o presidente João Baptista Figueiredo assinaria a famosa Lei da Anistia, que permitiu a volta dos exilados políticos, cheios de novidades. Sob todos esses acontecimentos de um ano tão moderno, especial, Perversão soava risível, estúpido. Ainda assim, Mojica se esforça para obter um confronto em que a mulher, ora bolas, finalmente triunfe.

O duelo de Verônica, estudante de medicina, versus o Comendador Vitório Palestrina está repleto desse ethos, desse ânimo feminista que os cinemas brasileiros presenciavam vez em quando nas telas. Lipstick (A Violentada), exploitation de 1976 com as irmãs Margaux e Mariel Hemingway, dirigido por Lamont Johnson, fez um sucesso danado ao ser exibido “sem cortes pela censura”, com a presença do ator Chris Sarandon no Rio para promover o lançamento. Curioso que, naquele mesmo final de 1978, início de 79, estreava nos Estados Unidos outro ícone rape and revenge: I Spit on Your Grave (dirigido por Meir Zarchi). Em 2010, I Spit on Your Grave geraria uma boa refilmagem e várias continuações, que provam a atualidade do tema. Vale ressaltar que o subgênero de “estupro e vingança” não serve apenas a propósitos nobres: agrada um bocado a sadomasoquistas (de ambos os sexos) e tarados em geral. Entre as premissas de um bom rape and revenge estão o elaborado jogo de poder, as humilhações físicas e verbais, a crueldade da justiça pelas próprias mãos.

Logo de cara, entendemos por que Perversão é ruim. Mojica vai mal em todos os quesitos. Não consegue sustentar, na figura do Comendador Vitório Palestrina, um sádico convincente. A cena inicial em que Vitório arranca o mamilo de uma namorada, a desditosa Sílvia (Nádia Destro), é psicanálise pura. Melanie Klein curtiria o arcaísmo do bebê atacando o seio, estragando em definitivo o objeto de inveja. Claro que o diretor e roteirista não sabia nada disso: trabalhava em puro frêmito instintivo. Assim a complexidade do ato não se desenvolve. Vitório expõe aos amigos um pedaço do seio da menina, é julgado e absolvido pelo crime de mutilação. Não existe agonia, nem angústia. Apenas o gozo falso do Comendador, mergulhado no discurso – com DNA de Josefel Zanatas – sobre o cinismo e as leis do mundo, fundamentadas na superioridade (moral, financeira, intelectual) de poucos sobre muitos. Para alterar esse rumo das coisas, resta aos oprimidos somente devolverem a barbárie a que são impostos. “O poder monetário pode fabricar um deus – mas jamais comprará a DEUS”(sic), é a frase que abre os créditos. Deus, ao que parece, seria uma espécie de justiça divina. O filme vai dando dicas sobre esse corolário, até a cena final.

Sem grandes psicologias, nos resta o melodrama matreiro. Os vizinhos pobres riem da agredida, enquanto os amigos ricos celebram o agressor. Como bem apontou o falecido Rubens Ewald Filho em um texto da época, os “ricos” de Perversão cultivam hábitos bizarros: “(…) vestindo terninhos da Ducal e comendo em bandejas de papelão”. No Brasil setentoso, fechado a importações de supérfluos, Vitório não fuma charutos importados. Contenta-se com os baianos, ostentando um Panatela da Suerdieck. Já o apartamento do Comendador é um show à parte: ornado por flores e frutas de cera, em nada lembra as ambientações khourianas. Assista a Convite ao Prazer (1980) e compare o gosto decorativo das produções.

Porém, vamos discordar de Rubens Ewald: o retrato de certos “bem de vida” paulistanos não era de todo um simbolismo absurdo. No alvorecer de 1980, São Paulo deixara para trás o destino de província opulenta e abraçava o vaticínio de metrópole feia, suja e malvada. Cidade brega, diriam os cariocas, que ainda acreditavam em Ipanema. Sua elite não era muito diferente. Trafegava do retrato frívolo feito pelo jornalista sergipano Joel Silveira, nas reportagens dos anos 40, “Eram assim os grã-finos em São Paulo” e “A milésima segunda noite da avenida Paulista”, para uma rotina impessoal e menos adocicada, condizente com os depressivos anos 70. Para entenderem melhor meu ponto de vista, está no YouTube Os Imorais (1979), obra-prima de Geraldo Vietri, mostrando uma realidade bem semelhante à de Mojica.

Não podemos esquecer que José Mojica Marins era fortemente marcado pela vida periférica, de arrabalde. Daí pode ter extraído sua desfaçatez poderosa. Lima Barreto – o escritor, não o diretor de Santuário (1952) – nasceu meio século antes no Rio de Janeiro, em plena Zona Sul da capital federal e precisou mudar-se, ainda pequeno, para o subúrbio. Ruminou sobre a loucura – seu pai era administrador de hospício, antes de enlouquecer –, sentiu-se ameaçado pela aristocracia suburbana – que, segundo ele, começava no contínuo de gabinete e terminava no chefe de seção. De tanto penar de estranhamento, de tanto arrastar correntes ao longo da vida, foi na idade adulta que Lima Barreto abraçou de vez o mundo pobre e decadente, fazendo da sinceridade extrema a sua redenção artística. Mojica, por sua vez, nasceu em uma fazenda na Vila Madalena, em São Paulo, mudou-se para a Vila Anastácio e se esbaldou desde sempre no local, fascinado pelo cinema. Seguindo os caminhos mais intuitivos e surreais, trouxe à luz um universo cosmopolita. Curioso perceber que tanto Mojica quanto Lima eram desgarrados do centro, mas ascenderam a ele com furor indômito. Inicialmente párias, depois cultuados no futuro.

Claro que – precisamos explicar isso às novas gerações – opiniões ocultam sempre guerras de narrativas. Na São Paulo de 1979 resistia a bela capital dos casarões de Higienópolis, florescia a vida noturna das Bocas do Lixo e do Luxo, prosperava a indústria do cinema e das melhores salas exibidoras do país. São Paulo sempre foi um acontecimento, mas parece evidente que tinha dificuldades de se vender como produto (coisa que os cariocas tiravam de letra). Curioso que 79 também foi o ano de inauguração do Maksoud Plaza, sobre o qual alguém disse: “Agora que já temos o hotel, precisamos mostrar uma cidade que valha a pena ser visitada”.

E Mojica e os cineastas paulistanos sabiam criar atmosferas que são o puro espírito desse tempo inglório. Lá pelas tantas, o Comendador conhece a estudante de medicina Verônica. Passeiam no litoral, frequentam bares esquisitos. Tudo tão animador quanto uma TV Philco-Ford transmitindo estática madrugada adentro. Eu já falei da trilha sonora? Durmam com a trilha sonora. Bombas incidentais que misturam as músicas dos filmes A Ponte do Rio Kwai (1957, David Lean) – aquela do assobio – e o “Tema de Lara” de Doctor Zhivago (1965), também dirigido por Lean. Além dessas, “Live and Let Die” de Paul McCartney, um pouco de Pink Floyd e “Windy”, do The Association, que apareceria na série Breaking Bad. Por usarem tantos registros sem pagamentos de direitos autorais, os cineastas brasileiros enfrentaram, durante anos, dificuldades para exibirem os filmes no exterior. É célebre a história de um produtor e diretor que, passando por Londres, foi intimado pela Apple a explicar o uso generoso de canções dos Beatles sem autorização.

Quando abandona suas namoradas apaixonadas, o Comendador repisa a tese do “faço porque posso” – sua vontade é a mais justa, parafraseando Chico Buarque – e observa a admiração dos falsos amigos, cujo comportamento insidioso lembra o dos parentes ladinos de O Ébrio (1946, Gilda Abreu). Perversão é o tipo de narrativa que já seria antiquada, difícil de engolir trinta anos antes. Só que, em vez de acabar pelo avesso nas tabernas, Vitório conhece Verônica. E flertam, naquelas misancenes tristes e sufocantes. A moça frequenta aulas da faculdade e refuga todas as tentativas de contato sexual. Parece uma verdadeira dama, mulher de respeito, mas guarda um segredo. Querem que eu conte? Vou contar. Verônica era irmã de Sílvia, a do mamilo arrancado. E chega a hora da vingança, que executa castrando o Comendador. Assim, sem mais nem menos, vão para a cama e ela corta o homem, o que permite a Mojica um show de gritos e esgares horrendos. Bastaria alguns pós-millennials descobrirem a longa sequência de Mojica, urrando e se debatendo em um mar de sangue, para nascer um festival de memes absurdos. Ou talvez eu esteja sendo otimista sobre os humores de 2020.

Ficamos presos nesse problema: a cena da castração é tão caricata e farsesca que esquecemos, instantaneamente, o resto. Só apreendemos o ridículo. Em Possuídas Pelo Pecado (1976), de Jean Garret, temos igualmente um homem rico (Benjamin Cattan) e namoradas oprimidas (Helena Ramos não larga da bebida, até se enamora de uma garrafa gigante). Também observamos uma cena marcante e grotesca, que abre a história, dando susto no espectador. A diferença é que Garret foi um mestre ao desenvolver vinganças femininas, amparado em sólidos roteiros. Em novembro de 1980, Garret estrearia A Mulher que Inventou o Amor, outro filme a ser cotejado, demonstrando que Perversão nasceu velho. Mas precisamos revê-los todos, porque nada é tão simples.


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