Ficções de dissolução – o cinema de Larry Cohen
agosto 9, 2015 em Em Vista, Filipe Furtado
por Filipe Furtado
Muito do interesse do cinema de Larry Cohen pode ser observado numa das sequências memoráveis de seu filme de estreia, Bone (1972): o negro que invadiu a casa de um casal classe média-alta de Los Angeles perde a paciência com a demora do marido em retornar com o dinheiro do resgate e decide atacar sexualmente a esposa; eles brigam e a cena progride num misto de elementos sob completo controle, como o uso de cores, e uma câmera instável que reforça tudo que o momento tem de lúrido, até que um clímax é alcançado, não com o estupro consumado, mas com o negro se descrevendo como “somente um negro fazendo o que dele se espera”; a esposa imediatamente pára de lutar, como se a lembrar que estão numa comédia sobre papéis sociais, e ele por sua vez reage frustrado à desistência dela. A cena recomeça como se nada de extremo tivesse acabado de acontecer, enquanto o negro e a dona de casa bebem um drinque, com a promessa velada de que o ataque pode recomeçar a qualquer momento, até que ela perde a paciência e começa a questioná-lo sobre porque não fora até o fim. São impressionantes seis minutos, nos quais se vai do horror à comédia de absurdo com impressionante consistência – o tom nervoso e os detalhes peculiares (como Bone a usar o sutiã verde dela para limpar o suor da testa) pouco fazem para negar a domesticidade que transpira na segunda metade da sequência. É como se, pela câmera de Cohen, já tivesse passado de tudo e nada pudesse genuinamente surpreendê-lo. O universo em torno dele se desintegra, mas a encenação permanece impassível, como se fosse necessário alguém continuar ali como testemunha.
Larry Cohen não é tão conhecido como a maioria dos seus conterrâneos e trabalhou muito pouco desde 1990. É dono, porém de uma das obras mais únicas do cinema americano dos anos 1970 e 1980 e os seus melhores trabalhos – Bone, Nasce um Monstro (1974), Foi Deus Quem Mandou (1976), The Private Files of J Edgar Hoover (1977), Q – A Serpente Alada (1982) – comparam muito bem ao que de melhor produziram nomes com John Carpenter e George Romero. Cohen começou a carreira como roteirista e de certa forma nunca abandonou o ofício: se seus filmes demonstram um grande conhecimento e prazer em manipular a história do cinema, neles raramente há espaço para os mergulhos barrocos de um Brian De Palma. Cohen tem também o menor controle de técnica de seus conterrâneos, o que ocasionalmente resulta em filmes como Full Moon High (1981), uma comédia de lobisomem na qual um passeio por elementos iconográficos americanos das décadas de 1950/1960/1970 nunca realmente chega a resultar em um filme forte. Os filmes menores de Cohen geralmente são uma coleção de ideias atiradas à tela com pouco cuidado, mas, com exceção de Deadly Illusion (1987) – um filme de detetive do qual foi demitido no meio das filmagens – nada que realizou jamais parece anônimo. A mise en scène pode se desintegrar, mas uma energia excêntrica mantém os filmes sempre ao menos curiosos.
Adrian Martin comparou Cohen a Samuel Fuller como cineastas que partem sempre de grandes ideias e conceitos e nem sempre conseguem realizá-los a contento. É um comentário um tanto duro demais (especialmente para com Fuller), mas é uma descrição que diz muito sobre como em ambos os cineastas parte-se sempre de um olhar sobre algum tema e/ou universo e dali constrói-se um filme, ao qual é permitido seguir os caminhos mais inesperados. Fuller atuou para Cohen em O Retorno a Salem’s Lot (1987) e uma comparação entre o filme e o primeiro Salem’s Lot, que Tobe Hooper dirigiu em 1979, é informativa sobre como o olhar de Cohen pode transformar material. O filme de Hooper segue a ideia do romance de Stephen King de apresentar o melodrama de pequena cidade típico da literatura americana e torná-lo tão tóxico que seu desenlace natural passa a ser a comunidade morrer tomada por vampiros (“Peyton Place com vampiros” como o escritor gosta de descrever). Cohen localiza na premissa de King da pequena comunidade infestada por vampiros, que ainda assim funciona como qualquer outra comunidade, um potencial satírico que permanecia às margens do filme de Hooper. Se no livro de King a comunidade é condenada por conta de fracassos e perversões individuais, no filme de Cohen o mal-estar é sistêmico e inescapável. Retorno a Salem’s Lot delineia aquele espaço suspenso no tempo, isolacionista e dependente de ocasionalmente roubar sangue externo, e sugere toda a possível potência política contida ali. Fuller dá as caras no meio do filme como um exterminador de nazistas que bate o olho naquele espaço e decide que, na ausência de nazistas, pode dar conta dos vampiros. Cohen não é propriamente o mais sútil dos sátiros.
Em boa parte de seus filmes, há sempre esta impressão de uma sociedade pronta a se desintegrar. Um bom exemplo disso está em A Coisa (1985), um dos filmes mais fracos do diretor, mas também, por conta da sua presença constante na televisão, um dos mais conhecidos. O que primeiro chama atenção é a simplicidade e a acessibilidade do seu gancho principal: uma nova sobremesa conhecida simplesmente como ”a coisa” que vira mania graças a sua agressiva campanha de marketing, mas secretamente consome seus consumidores por dentro. Por si só, trata-se de uma boa premissa para sustentar uma sátira ao consumismo, mas o que torna o filme típico do realizador é uma solução ainda mais simples: a coisa simplesmente brota do chão, sem grandes mitologias ou explicações; é um mal elementar canalizado pela ganância.
Desde Bone, a ideia de uma sociedade que aos poucos se esfacela é central nos filmes de Cohen. Um dos mais politicamente dissonantes filmes produzidos nos EUA, Bone parte do uma estrutura bastante reconhecível – casal de Beverly Hills é atacado pelo negro dos seus pesadelos e a experiência lança luz sobre o quanto detestam um ao outro – mas o filme aos poucos a desintegra e se torna um catálogo de representação de uma série de distúrbios sociais. O Godard do fim dos anos 1960 é um bom análogo e Week-End (1967), em especial, é um claro ponto de referência, assim como os filmes que Brian De Palma fez na sua fase independente (Greetings; Oi, Mãe). Cada imagem é sobrecarregada de potencial simbólico, cada nova situação – como a já mencionada sequência da tentativa de estupro – adiciona novas maneiras de apresentar um universo em completo desarranjo. Bone não é muito conhecido, em parte porque, a despeito da premissa de sequestro, o filme tem pouquíssimo interesse em funcionar na chave de gênero, mas é o texto chave do qual toda a obra de Cohen surge: seus filmes posteriores são diluições inevitáveis do anárquico urro raivoso inicial.
A presença de Yaphet Kotto em Bone fez com que o filme recebesse algumas comparações aos primeiros filmes de blaxplotation, o que garantiu a Cohen a chance de realizar um filme de gangster com Fred Williamson – O Chefão de Nova York (1973) – assim como sua sequência menos interessante – Inferno no Harlem (1973) – meses depois. O Chefão de Nova York é um arquetípico filme de gangster seguindo a risca os moldes de ascensão e queda bastante conhecidos no cinema desde o começo da década de 30, com o diferencial de ser protagonizado por um negro. Vários filmes de blaxplotation retomam estruturas conhecidas para emprestá-las o estranhamento de um protagonista negro, mas poucos reconhecem como tal mudança pode trazer consigo um forte componente político. O Tommy Gibbs de Williamson, que nos é primeiro introduzido sendo humilhado e espancado quando garoto por um policial racista, figura na lista de gangsters memoráveis do cinema justamente por se revelar uma força inabalável de retribuição anárquica. O Chefão de Nova York se desenvolve como pura raiva: numa das suas sequências mais fortes, Tommy compra a casa do seu advogado branco e dá de presente à mãe, que costumava trabalhar ali de empregada (em típico humor de Cohen, ela não tem ideia do que fazer com o lugar). Cohen serve a retribuição violenta de Tommy com todo o prazer e vulgaridade do exploitation e o tom grosseiro reforça a raiva pouco contida do material.
Inferno no Harlem é uma sequência mais excessiva mas que apresenta um Tommy mais consciente das forças ao seu redor, com um arco dramático mais preocupado com a família que nunca chega a sugerir a insurreição do filme original. Mais de duas décadas depois, quando Williamson aproveitou-se do ciclo do filmes policiais violentos para público negro do começo da década de 1990 para colocar de pé Original Gangstas (1996), uma produção nostálgica que reunisse a maior parte dos astros do gênero (além do próprio estão lá Jim Brown, Pam Grier, Richard Roundtree, etc.), entregou a direção a Cohen. Foi seu último longa para cinema e um dos poucos que não escreveu, mas se destaca justamente por evitar ser o exercício em nostalgia fetichista fácil que o projeto permitia. Original Gangstas sofre um tanto com o excesso de momentos em que se lamenta a passagem do tempo e a violência das novas gerações, mas é um filme cheio de passagens nas quais a paisagem urbana desolada de áreas empobrecidas de Indiana são colocadas para muito bom uso, que consegue traçar um laço genuíno com uma sociedade pós-industrial muito raro.
Se Original Gangstas é um bom exemplar de como Cohen é hábil em aliar sua habilidade de construção com uma cuidadosa da tapeçaria social, este talento é explorado ao máximo na série Nasce um Monstro (1974/1978/1987). Um filme sobre um bebê mutante que mata quando acuado pode não soar como o mais promissor dos projetos, mas Cohen explora a figura do bebê, ao mesmo tempo assassino e criança assustada, e as tensões familiares causadas pela sua existência por toda ressonância que elas podem alcançar. As suas duas sequencias It Lives Again (1978) e It’s Alive 3: Island of the Alive (1987) são exemplares na maneira que expandem a situação original e acrescentam novos elementos que as colocam num contexto maior.
O filme original é, dramaturgicamente, o mais eficaz trabalho do diretor, econômico, fazendo muito bom uso de uma das melhores últimas trilhas de Bernard Hermann e da interpretação de John P. Ryan como o pai do bebê. As subjetivas do bebê, longe de simplesmente representarem um predador ameaçador, são bastante pungentes na forma com que sugerem um olhar sobre um mundo hostil. A criança existe como representação cronenberguiana para toda uma série de mal-estares que atingem a família, e, na presença de Ryan como o homem que aos poucos aceita a própria prole, Cohen encontra uma âncora que falta em seus outros trabalhos. Como visão de uma sociedade em frangalhos, o filme alcança muita força. As sequências operam de forma a realocar o drama familiar num universo de forças maiores. It Lives Again, o mais fraco dos três, repete o drama inicial com Frederic Forrest no lugar de Ryan, e uma atenção maior a como o mundo exterior reage à ideia de que por todo os EUA casais começam a ter bebês mutantes. Já Island of the Alive é um achado e um dos trabalhos mais subestimados do diretor. Muito inventivo e saltando de situação em situação com grande liberdade, o filme busca reposicionar os bebês como parte da sociedade como um todo, movendo a ênfase definitivamente ao mundo exterior. Island of the Alive nunca para mais do que 15 minutos em uma mesma situação e encontra em cada uma delas – por exemplo, Michael Moriarty como papai de um dos bebês isolado num barco cheio deles a negociar a própria sobrevivência – novas formas de lidar com o material.
Uma das características mais marcantes dos filmes de Cohen é a maneira como as mais absurdas situações podem por vezes ser representadas num tom direto que a mantém ancorada numa observação naturalista. Muito do que torna Foi Deus Quem Mandou (1976) um filme impactante parte desta habilidade. É um filme que progride de um policial setentista realista até a ficção cientifica delirante sem jamais questionar este movimento. O policial católico de Tony LaBianco poderia fazer parte de um filme como Caminhos Perigosos (1973), mas a intriga que ele investiga sobre um grupo de assassinatos aleatórios nos quais o assassino sempre declara que “foi deus quem mandou” (Kiyoshi Kurosawa roubaria a estrutura como ponto de partida de Cure, uma exploração similar sobre questões de identidade nacional num momento de trauma) abraça sem preconceitos os mais variados elementos fantasiados. Foi Deus Quem Mandou abre com o pânico quando um atirador dispara contra a multidão, e chega ao clímax com LaBianco confrontando seu meio-irmão hermafrodita potencialmente alienígena, mas dentro da construção do filme tal progressão não poderia ser mais natural. A cada novo elemento fantasioso, o filme avança no seu processo de demolir a identidade do seu protagonista.
Q, a Serpente Alada (1982) parte de um charme similar com o ataque da serpente azteca do título visto do ponto de vista da rua. Cohen bem conscientemente lança mão de elementos cada vez mais em voga no começo dos anos 1980 para realizar uma espécie de último filme dos anos 1970: não só seu monstro traz consigo todo um subtexto que filmes da época começavam a varrer – uma assombração que paira sobre Nova York pronto para iluminar sua crise – mas também a ênfase no par de policiais (David Carradine e Richard Roundtree) que investigam o caso, que parecem saídos de uma série dos anos 1970; e sobretudo o pequeno vigarista/pianista vivido por Michael Moriarty que descobre o ninho da serpente e decide chantagear a prefeitura. Cohen entrega o filme à performance excêntrica de Moriarty, que existe numa chave muito distante do filme de efeitos especiais. Q revira do avesso a lógica de espetáculo, colocando em choque o filme de trambiques de Moriarty -personagem muito mais próximo de algo como Mikey & Nicky (1976), de Elaine May – com a serpente, que poderia surgir de uma super produção como King Kong (1976). Larry Cohen preenche seu filme com detalhes excêntricos, como a morte de Roundtree, que primeiro precisa se enroscar e brigar com uma pipa e, após se livrar dela, encontra a serpente.
Se Q é uma espécie de último suspiro do cinema dos anos 1970, Special Effects (1984) é o primeiro filme dos anos 1980 de Cohen. Uma variação sobre Um Corpo que Cai (1958), com fortes ecos de A Tortura do Medo (1960), no qual um diretor de sucesso se filma assassinando uma aspirante a atriz e realiza um longa-metragem com uma sósia, com intenção de incluir os fotogramas da morte dela. Para uma variação de Hitchcock, Special Effects é um filme que exibe muito pouco prazer na sua construção (é como um reverso dos filmes hitchcockianos de DePalma); o meio está constantemente sob suspeita. A morte de Vic Morrow e de um grupo de crianças durante as filmagens do episódio de John Landis para No Limite da Realidade (1983) permanece como subtexto nunca mencionado no filme. Há muitos jogos de espelhos, um deleite de lançar mão de construções artificiosas, e o cineasta de Eric Bogosian é um vilão especialmente detestável, mas a suspeita que o filme joga sobre o aparato cinematagrafico o lança numa amargura inédita no trabalho do diretor.
Um dos pontos fortes de Q é seu uso das locações em Nova York, algo frequente no cinema de Cohen. Considere Perfect Strangers (1984), um pequeno thriller sobre uma mãe solteira cujo filho de dois anos testemunha um assassinato e o matador da máfia que se aproxima dela para eliminar a criança. A dinâmica do “irá ele ou não?” é bastante eficaz, mas trinta anos depois o que se destaca do filme é menos sua eficiência dramática, e mais a maneira como suas locações (o filme se passa majoritariamente em externas) ganham força documental e, no processo, emprestam autenticidade para todas as sequências da mãe solteira a negociar um possível novo relacionamento. Da mesma maneira, A Ambulância (1990) se torna mais que um simples filme que aposta numa inversão de significantes para produzir horror (as pessoas atendidas pela ambulância do título desaparecem sem deixar vestígios) para se transformar num travelogue paranóico pela noite de Nova York, e que encontrar ali uma força ressonante que seria impossível sem o bom olho e ouvido de Cohen para os ritmos da cidade. Para um diretor que adora situações absurdas e que não vê problemas em descartar o crível, Cohen tem um surpreendente olhar afiado e observador quando lhe convém.
Larry Cohen começou a carreira como roteirista (seu primeiro crédito em cinema foi a primeira sequência para Sete Homens e um Destino, em 1966) e seguiu produzindo material que não filmou. Na década passada, recebeu alguma atenção por um par de thrillers relativamente engenhosos – Phone Booth (2002) e Celular (2004), competentemente dirigidos por Joel Schumacher e David R. Ellis – a partir de telefones, que fazem bom uso do gosto de Cohen pela chance de puxar objetos e espaços em sentidos e direções inesperados. Sua associação mais longa é com o diretor William Lustig, para quem escreveu a série Maniac Cop (1988/1990/1993) – híbrido de filme de ação/slasher sobre um policial zumbi pronto a se vingar de uma cidade – e Uncle Sam (1996) – uma sátira de horror sobre um veterano da guerra do Golfo que se levanta da cova para punir cidadãos não-patrióticos. Lustig tem uma mão pesada e engessada que limita o potencial satírico desses filmes, mas o casamento desarranjado entre as tendências anárquicas do conservador Lustig e do progressista Cohen torna os textos confusos em resultados bastante curiosos.
Os melhores filmes nos quais Larry Cohen esteve envolvido somente como roteirista, porém, são a versão de Abel Ferrara para Invasores de Corpos (1993), no qual sua maior contribuição foi a ideia de mover a ação para uma base militar, e Best Seller (1987). Dirigido com notável eficiência pelo subestimado John Flynn (é um dos raros filmes sobre os quais pode se afirmar que nenhum plano foi desperdiçado), Best Seller tem um dos típicos ganchos inspirados do cineasta – policial veterano autor de sucesso é procurado por matador profissional que quer escrever um livro denunciando as sujeiras de seu patrão –, mas, ao contrário, de outros filmes que ele somente escreveu, aqui Cohen não se contenta com uma boa ideia inicial e tem muito a dizer sobre literatura policial, a tênue linha ente ficção e fato e as formas como recebemos ambos.
O prazer de Cohen para com um causo bem contado é visível em muitos destes trabalhos de roteirista de aluguel e é também o que mais se destaca nos seus três filmes para a TV: See China and Die (1981), Tão Bom Quanto a Morte (1995) e Pick Me Up (2006). Nenhum destes filmes é muito ambicioso, mas todos exalam grande prazer na sua construção, enquanto o diretor se mantém ocupado entre projetos maiores. São filmes que assumem abertamente o pastiche de modelos conhecidos – por exemplo, em See China and Die temos um mistério à Agatha Christie, com o diferencial de que Miss Marple se torna uma faxineira negra investigando um crime entre seus patrões. Pick Me Up, um dos melhores episódios da série Masters of Horror, tem dois serial killers em colisão numa estrada semi-deserta e explora ao máximo tanto o conceito incomum como a estrada e as possíveis variações de crimes com caronistas, e lhe permite ainda uma quinta parceria com Michael Moriarty, cuja imprevisibilidade excêntrica sempre serviu muito bem ao espirito dos filmes do diretor. O melhor dos três é Tão Bom Quanto Morte, que compensa as ambições discretas com um dos seus trabalhos de direção mais precisos e expande sua lista de filmes sobre mal-estar familiar e identidades em frangalhos.
Porém, se Larry Cohen for lembrado por somente um filme, ele seria The Private Files of J. Edgar Hoover (1977). Uma cinebiografia do famoso chefe do FBI do final dos anos 1920 até sua morte, trata-se de um panorama de 50 anos de história dos EUA revisto nos termos de um filme de gangster, completo com atores associados a mafiosos nos papéis de cada um dos muitos presidentes aos quais ele serviu. Menos sensacionalista do que a recente cinebio de Clint Eastwood e se beneficiando de amplo acesso a aqueles que conheciam Hoover e a locações verídicas, o filme foi realizado somente cinco anos depois de sua morte e esta proximidade lhe garante uma urgência maior. Muito por conta disso, Cohen teve que esperar até 1980 para lançá-lo, pois distribuidores temiam possíveis represálias do FBI. Pelo filme desfilam a paranoia, o largo panorama social e a impressão constante de mal-estar que sempre dominou os filmes de Cohen. Hoover, o homem que tomou para si a missão de manter a ordem na sociedade americana, é um objeto ideal para Cohen, o cineasta interessado em apontar suas câmeras para o momento em que ela se desintegra. Há uma atenção particular para as formas com que história é filtrada, em especial no papel do cinema americano, representado ali por uma série de atores em final de carreira (Broderick Crawford, Dan Dailey, Celeste Holm), assim como por uma trilha sonora de Miklos Rosza que ajuda a conectar o filme à era dos estúdios. O que torna tudo notável é a simplicidade com que Cohen retoma tantos eventos históricos sem tirar deles a dinâmica de um filme policial vagabundo, decisão que por si só traz consigo um olhar amargo sobre a vida pública americana. O Lucky Luciano (1973) de Francesco Rosi é o modelo mais próximo, mas mesmo Rosi não chegara tão longe na forma de costurar fato e narrativa popular que Cohen alcança aqui. No meio de tudo isso, combina-se a mesma observação precisa, o gosto pelas imagens carregadas de significado e sobretudo aquele mesmo olhar impassível, independente do que é representado. É fácil desmerecer Larry Cohen como apenas mais um realizador de filmes B com deficiências visíveis, mas poucos autores se lançaram com tanto afinco sobre o prazer de criar ficções de dissolução, de encontrar novas formas de alegorizar uma sociedade em desarranjo.
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