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Visões do inferno – a força política das imagens de Mojica

Assim como existe o marxismo vulgar (aquele que, sem nenhum esforço dialético, reduz a produção sensível às condições materiais e faz de toda arte um mero produto de sua época), há também o politicismo vulgar. Isto é, aquele que automatiza a relação entre uma representação e os efeitos políticos de uma obra de arte, como se ver algo retratado no cinema – uma imagem, um discurso, uma ideologia – fosse sinônimo de transformar-se neste algo que se vê, independentemente, inclusive, da forma como se vê. Ou seja, é como se a representação de uma coisa se tornasse automaticamente dada no fragmento e, sem grandes questões, passasse a ser um dado do mundo e não uma produção artística. Em 1973, quando Laura Mulvey confronta a misoginia no cinema clássico norte-americano em Prazer Visual e Cinema Narrativo, ela o faz através de uma teoria da escopofilia como forma do prazer cinematográfico, da excitação de um voyeurismo onde “a curiosidade e a necessidade de olhar misturam-se com uma fascinação pela semelhança e pelo reconhecimento”. A armadura teórica dessas idéias são as de Jacques Lacan e a fase do espelho, quando a criança passa a reconhecer a si mesma na representação do outro, e “a imagem (pré-linguagem) constitui a matriz do imaginário, do reconhecimento/falso reconhecimento e da identificação, e portanto, da primeira articulação do Eu, da subjetividade”. O esquema bebe da mesma fonte que o de Jean-Louis Baudry, quando, em 1970, o autor reivindicava uma teoria ideológica do aparato cinematográfico: o cinema teria uma potência desigual de formação de subjetividades a partir daquilo que ele representa porque, na sala escura, esqueceríamos do mundo, retornaríamos a um estágio pré-linguístico e, como a criança, procuraríamos na tela os egos ideais, as figuras de identificação na mesma medida em que esquecemos dos nossos próprios corpos.

Mas, mesmo para esses autores, a escopofilia é um dado associado ao classicismo cinematográfico; ou seja, não é nem uma máxima do cinema, nem referente às representações individuais que ele faz, mas do regime naturalista de representação em si mesmo. Para se “naturalizar alguma coisa” (uma cultura de estupro ou uma necropolítica), é preciso que haja uma forma cinematográfica de naturalização; uma construção do naturalizar e do prazer. Meu ponto é menos combater a pressuposição lacaniana e mais circunscrevê-la: Mulvey ataca o cinema clássico em seu conteúdo misógino na medida em que este é resultado de uma forma. Nele, “a câmera torna-se o mecanismo que produz a ilusão do espaço da Renascença, criando movimentos compatíveis com os do olho humano, uma ideologia da representação que gira em torno da percepção do sujeito”. É semelhante a reclamação de Baudry, para quem a “ideologia da representação e a especularização formam um sistema singularmente coerente”. Ou seja, o sistema clássico, em sua forma, produz voyeurismo e escopofilia por causa de certas escolhas que são da ordem do fazer artístico. E como romper com ele? Seria necessário não uma mudança de temas ou objetos que permanecesse na ordem do representacional, mas desmontar seu próprio modo de registro – o ataque ao naturalismo que o modo clássico hollywoodiano teria herdado da literatura do século XIX -, seja através de uma “inscrição do trabalho” no fazer artístico (Baudry), ou de uma ruptura/destruição da própria idéia de prazer cinematográfico (Mulvey), proposições estéticas entre o vanguardismo de montagem e o distanciamento brechtiano. Estamos ainda no âmbito da discussão estética, não importa o quanto o politicismo vulgar possa querer nos afastar dele. Não há nada mais apolítico (e, portanto, reacionário) do que uma crítica que queira ignorar que todos os tipos de representação são localizadas dentro de um sistema maior, fruto de escolhas formais, e que portanto, a política de uma imagem está, antes de tudo, na forma como ela se apresenta, ou seja, em sua estética.

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Quando se associa uma “nova cinefilia” à descoberta de “novas formas de prazer”, ignora-se, por exemplo, totalmente a potência política do desprazer ou da experiência de abjeção, daquela representação que é moralmente inaceitável e que é mostrada ao espectador precisamente como inaceitável; o que é o avesso do natural e é da ordem do pesadelo. A violência da “fome” de Gláuber ou do “lixo” de Sganzerla, mas também, às vezes, pura e simplesmente um filme de horror. Com o quê, na visão do insuportável, vou me identificar? Com os sujeitos dementes e grotescos, feitos para me causar asco? Qualquer nova cinefilia que se recuse a lidar com isto, me parece, já nasce velha. É possível ir mais longe, mas é sempre melhor quando se pode ficar por perto, tentando falar de coisas materiais. Um terreno fértil para se pensar na complexidade de todas essas relações pode ser encontrado cá em casa. Mais ou menos na mesma época que Mulvey e Baudry escreviam, José Mojica Marins fazia filmes.

As três aparições de Zé do Caixão nos anos 1970, em Ritual dos Sádicos (há registros que indicam que foi realizado antes mesmo da virada da década), Exorcismo Negro (1974) e Delírios de um Anormal (1978) trazem não apenas novos ares ao cinema de Mojica – o embate metalinguístico criador-criatura, estruturas narrativas disjuntivas e preocupações formais de outra ordem – como são o conjunto de suas mais fortes obras-primas. Trata-se menos de uma mudança em relação aos filmes anteriores e mais de uma destilação de sua misè-en-scène, uma passagem que significa menos que o seu cinema se transformou, e mais que este agora se move no âmago de um núcleo propulsor onde suas formas de encenação adquirem um mais estrito sentido, onde o realizador parece descartar tudo que é um pouco mais supérfluo ou acessório e se concentrar radicalmente naquilo “a que veio”. Também são os filmes onde fica patente a enorme auto-consciência que tem em relação ao seu ofício, pois os efeitos do trabalho são discutidos no próprio tecido narrativo dos filmes, utilizando o seu personagem como alegoria didática para se referir aos modos através dos quais o espectador lida (ou deveria lidar) com as dimensões de horror que o homem da cartola suscita. Estas duas coisas – refinamento e autoconsciência – se retroalimentam, e é sobre elas que gostaria de falar.

Um adendo inicial: nos embates ideológicos cinematográficos brasileiros dos anos 1960 e 1970, onde categorias como as de cinema político, cinema experimental ou cinema de gênero eram colocadas, com alguma frequência, como divisórias antagônicas, o ofício de Mojica tinha algo de extraterreno: pairava acima delas, na mesma medida em que as fazia rotunda, se “sujava” de todas elas. A moralidade pagã e anticlerical, que confrontava o provincianismo e o tradicionalismo brasileiros, em À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964) e Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967), era irmã do Glauber de Barravento (1961) ou Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). Por outro lado, parafraseando Sganzerla, Jairo Ferreira exaltava o arqui-falso do seu trabalho de encenação e décor como expressão da miséria, demência e delírio tropicalista que o cinema experimental deveria encarnar – o niilismo existencial do vilão poderia ser correlativo àquele dos grandes anti-heróis individualistas dos cineastas marginais. Mas Mojica também explorava com mais afinco que estes as narrativas de horror trash, atingia sucesso de público, e fez do seu Zé do Caixão um ícone popular que figurava não só no cinema, mas também nas televisões, quadrinhos e até em marchinha de carnaval. Sendo tudo e não sendo nada, também o seu lugar na historiografia é espaço de disputa ou reescritura. Isso é normal, e tais compartimentos talvez sejam importantes para o historiador, mas ao crítico, se o seu ofício segue sendo o de fazer o mudo da obra falar (alguma coisa, que o seja), é talvez mais proveitoso se indagar como essas coisas se transformam ou não em operações estéticas e práticas nas imagens que vemos.

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Primeiro, as explicações ou a autoconsciência. Ou melhor, como a relação entre fazer artístico, imagem, espectatorialidade e política me parecem estar em jogo com muita consciência nesses filmes. Ritual dos Sádicos é um longa-metragem sobre um psicólogo que faz estudos científicos dos efeitos das drogas em um grupo-controle de pacientes para tecer suposições sobre a relação entre alucinações e certos comportamentos sociais. Exorcismo Negro, refilmagem à brasileira do sucesso de terror O Exorcista, sobre um roteirista às voltas com a tentativa de compreender, através da parapsicologia, experiências de possessão que remetem ao personagem que ele mesmo criou. Delírios de um Anormal, sobre um psicanalista atormentado por pesadelos com o Zé do Caixão. Os três filmes desenham relações semelhantes entre seus personagens que podem nos ser úteis: no centro, figuras passivas que testemunham a violência na forma de pesadelos, alucinações ou experiências metafísicas, e estão como que acorrentadas, incapazes de intervir no espetáculo de terror (o tal espectador passivo?); de um lado, aquele que tenta decifrar sua origem e como contê-las, intelectuais e figuras da ciência fisiológica ou parafisiológica, arquétipos típicos do gênero de horror desde a literatura gótica, pelo menos – com alguma frequência, tendo o próprio diretor como ator (o crítico/intelectual?); do outro, aquele que evoca o Terror, o próprio personagem, o Zé do Caixão, que controla todas as dimensões do inferno evocado (o artista?).

Diante desse quebra-cabeça de tríades erguido pelas três obras, o desenrolar dessas narrativas pode nos levar também a três conclusões. 1) Que o segundo elemento (o herói) pode frear o terceiro (o vilão) temporariamente, mas não pode eliminá-lo por completo. Zé do Caixão há sempre de retornar. O demônio ressurge mesmo depois de ter sido eliminado tanto em Exorcismo Negro quanto em Delírios de um Anormal. Não há nada que a ciência, a lei, a psicanálise ou a metafísica religiosa possam fazer em relação a isso, além de constatar a sua impotência diante da presença desse espírito do mal que permanecerá escondido até que ganhe uma nova forma de aparição. Isso porque, 2) A mudança do personagem da cartola em relação à trilogia original é significativa. Ele não é mais o nietzschiano agnóstico que praguejava contra a fraqueza, mas a própria encarnação do demônio. Só que ele não é tampouco o agente do mal, tanto quanto o epicentro que o coordena. Ele não violenta; estala os dedos para que a violência aconteça (ou violenta com o olhar, como em A Estranha Hospedaria dos Prazeres, de 1976). Menos o criador, e mais o artista necromancer ou evocador, que, sentado em seu trono, repete máximas metafísicas enquanto mostra cenas de horror a um espectador torturado. 3. As imagens de horror que o perturbado/espectador vê não pertencem propriamente ao Zé do Caixão (ele sabe disso, e por isso ele ri) – não é uma imagem exterior causada por outrem. Pelo contrário, se encontra na mente do espectador passivo. Em Ritual dos Sádicos, o psiquiatra justifica as perturbações registradas em seus pacientes afirmando que “sua mentes já eram doentias e o instinto alcançava as raias do inconcebível”. Ao final de Delírios de um Anormal, um José Mojica Marins fictício explica por que seu personagem surgia nos pesadelos de um atormentado, dizendo que este “identifica-se com a ideologia de Zé do Caixão” e “seu subconsciente agiu formando fantasias do seu personagem com a esposa”. Ou seja, as imagens já estavam lá, e o que o demônio fez foi invocá-las ou liberá-las de um imaginário onde elas seguiam reprimidas.

A armadura explicativa oferece um manual de genealogia do pesadelo mojiquiano, mas não fornece sua matéria bruta. A rigor, ela é apenas um milésimo destes três filmes, que praticamente não têm tramas, e sim pretextos. O resto é refinamento ou destilação. Porque o importante aqui é convidar o espectador a habitar um inferno esteticamente concebido, um tour de force visual para causar o desprazer – o mesmo que o habitado por suas cobaias -, muito antes do que justificar por que ele está lá ou quem o colocou ali. E esse inferno não pode ser explicado, e sim vivido. Ou melhor, observado. Visto. O que importa aqui é o quarto algoritmo da equação que faltava à tríade formada por torturado/espectador, psicanalista/crítico e o necromancer/artista: suas imagens. E se nos lembrarmos bem, estas imagens que vejo não são apenas as imagens dele, mas também são minhas. São nossas, a paisagem mental de uma época. Eu reprimo e ele a libera. Contra a fase do espelho de Mulvey ou Baudry, o cinema que se quer expiação libertadora. O espectador não regride à infância pré-linguagem e sim desnuda, como adulto, o que está escondido para além da linguagem e de suas proibições; o que ele vê é uma imagem na qual ele não precisa infantilmente se reconhecer, mas pode reconhecer o que é sempre, e sobretudo, da ordem do outro, da narrativa, e do mundo. O asco e o medo, sentimentos típicos do horror, lhe vetam a identificação por sublimação. Estático, ele vê, e lhe é revelado algo que não poderia saber. ”O gênero do horror é capaz de incorporar ou assimilar as ansiedades sociais gerais em sua iconografia de medo e angústia (…), é um meio através do qual as ansiedades de uma época podem ser expressos”, escreveu Noel Carroll. Uma imagem é uma imagem social. Sua política é medida não pelo que ela castra, mas pelo que ela liberta.

O inferno pessoal de Mojica não é um todo coerente. É criado por uma montagem de atrações dodecafônica e disruptiva, tanto na imagem quanto no som, rompendo qualquer caráter de construção naturalista. Nós estamos lá, qual espectadores num pesadelo, observando tudo por fragmentos, mas sem reconhecer nosso próprio corpo ou lugar de ponto-de-vista em meio a ele. O “trabalho estético” está inscrito na forma. A nós, é imposta uma justaposição/colagem de toda uma exagerada iconografia dantesca do horror: fumaças sombrias, aberrações encapuzadas, aranhas, cobras, escaravelhos, caveiras, estátuas do diabo, candelabros e velas acesas, o decór de castelos antigos, com corpos dilacerados, jogados ao chão, submetidos a ininterrupta tortura. E há isso, a tortura e a agonia, e o regozijo de Zé do Caixão em mostrá-las. Os atores agonizam e, na faixa sonora, entrecortados com acordes tenebrosos, ecoam gritos e gemidos com efeitos de reverb. Mas, ao lado das imagens brutas da violência, quase como que num pastiche delas, mulheres dançam sensualmente, coreografadamente, nuas, mostrando os peitos, enquanto confetes caem do céu. Planos gerais em contra-plongées filmados do chão se alternam com grande angulares distorcidas, e estas, com uma câmera na mão frenética sobre um fundo em breu. Somos submetidos a uma terapia de choque ou tortura visual; não há uma narrativa que aponte para fora delas, e sim uma sempre escorrendo para dentro de si mesma, simbolizada pelos frequentes zoom ins nos rostos dos que sofrem as visões. Na verdade, esta rarefação da narrativa – que atinge diversos graus em cada um dos filmes – parece armar para que quedemos observando tais potentes pesadelos estilizados, praticamente o tempo todo. Imagens brutais de violência, mas filtradas, ou protegidas, pela aparência do gênero horror, de um lado, e pela sua elevação ao pastiche, do outro. Ele as estetiza, mas o sentimento de repulsa – e isto me parece fundamental – segue nelas sendo maior do que o de prazer (ou, melhor, o paradoxal prazer da repulsa).

As imagens da violência, exageradas ao ponto do pastiche, figuram no repertório da época para descortinar um certo estado de espírito velado no Brasil dos anos de chumbo: estão num cego que atira para qualquer lado quando é esbarrado (Bang Bang, Andrea Tonacci, 1970), numa perseguição a um ladrão de galinhas que se torna cenário de guerra (Nenê Bandalho, Emílio Fontana, 1970), nos gritos maníacos de “casaca” de um vascaíno que atira com uma espingarda hasteada para qualquer lugar (Perdidos e Malditos, Geraldo Veloso, 1970), nos muitos bandidos violentos – Bandido da Luz Vermelha, Rogério Sganzerla, 1968), O Anjo Nasceu (Júlio Bressane, 1969), Meu nome é Tonho (Ozualdo Candeias, 1969) – ou nas faixas sonoras de bombardeios (Jardim de Guerra, Neville d’Almeida, 1968) que habitam os “filmes de arte” desta primeira metade da década – fase mais árdua da ditadura – e que parecem ecoar as palavras daquele que, ao som do “Vejo Amanhecer” de Noel Rosa, matou a família e foi ao cinema: Matei por amor.

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A diferença entre os cineastas experimentais e estes três filmes de Mojica é que o cineasta faz a visão da violência e da psicopatia o tema e conteúdo das obras ao destilá-las de todo o resto, ao direcioná-las a um tema e a um objeto, sem cinismos ou apatias. Há nisto uma proposição política, de fato. Mojica já havia retratado a tortura fingindo fazer filme de gênero em Ideologia, terceiro episódio do O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968), e foi censurado por isso. Nos anos 1970, seguiu fazendo filmes sobre o assunto, eventualmente até recolando os fragmentos censurados em outros longas-metragens. Só que agora, concentrando os seus esforços em afundar o espectador, cada vez mais, nestas imagens subversivas de seu inconsciente reprimido. Os gringos acertaram ao comparar José Mojica Marins com Buñuel: são dois desenhistas do inconsciente social, dos signos da morada proibida que insistirão em retornar enquanto a sociedade continuar a produzi-los. No limite, estamos mesmo próximos do delírio surrealista e da crença artaudiana na imagem como alegoria social reprimida. Mas a perversão para Buñuel irrompe como alegoria no cotidiano, na matéria da realidade. Não há loucura ou deformação na psiquê, mas um mundo concreto e estranho para caramba – a loucura está aqui mesmo ao redor de todos. Em Mojica, estas imagens ganham a forma de tormentos mentais kammerspielianos. No pesadelo, na alucinação ou na incorporação, a imagem revela aquilo que nos foi vetado ver até então, e por mais que proibida, ela sempre acabará por voltar.

Mas há também o que os gringos não entenderam sobre Mojica; e nem poderiam entender, porque não assistiram às pornochanchadas. A política do terror de Mojica é como a de muitas delas, só que às avessas, sua moeda contrária. Ou seja, a liberação delas persegue o que é da ordem do prazer. A dele, também o que é da ordem do abjeto. Cláudio Bertolhi Filho escreveu que a pornochanchada desafiava a moral e cívica dos milicos, a despeito dos seus desejos, simplesmente contando histórias do excesso de sexualidade contra o puritanismo e outras formas dominantes das estruturas sociais. O marido e pai de família, que parecia saído de um comercial de margarina em Ninfas Diabólicas (John Doo, 1978), revela-se um pervertido e vai para a putaria com duas ninfetas. Sem as críticas secretas da inteligentsia, sem as mensagens encriptadas dos versos musicais, ou as alegorias do subdesenvolvimento, o gênero mostrava, com certa naturalidade, aquilo que não pertencia aos códigos de conduta oficiais. Mas o fazia sempre pela paródia. O Brasil sempre teve uma capacidade ímpar de operar criticamente pela paródia e pelo exagero – da revista-do-ano às chanchadas, e então, às pornochanchadas. É a malandragem onde o que é mostrado se traveste de outra coisa, e, como se não fosse nada, às vezes escapa de ser pego pela polícia, mesmo que esteja a bradar tudo em alto e bom som. E Mojica foi definitivamente um grande ‘chanchadeiro’ do horror.

Mas o que me parece ser essencial, quando se fala em indissociação entre estética e política, é que cineastas como José Mojica Marins ou Ozualdo Candeias (entre outros dos mais brilhantes da nossa cinematografia) nos requisitavam um tipo específico de fruição, e construíam, para ela, uma morada em suas imagens. Podemos acessá-las como bem entendermos, afinal, toda obra é aberta. Mas sob o risco de perder de vista o lugar onde elas adquirem alguma potência, ao invés de servirem de ferramenta retórica. Este lugar tem a ver com a estética. Não vejo como, para a crítica séria, não ser ela que possa eleger ou descreditar as coisas do seu tempo. Platão expulsava poetas porque eles faziam ditirambos. O que Rousseau não queria em Genebra era o modelo de comédia de Moliére. Rivette condenava um filme por um travelling. A nova cinefilia, se há uma mesmo que virá, não pode se furtar a lidar com a complexidade de sentimentos que uma imagem pode suscitar, nem com toda a gama de formas de fruição que elas possam nos pedir, tampouco com as formas estéticas que fazem estas surgirem. Isto sob o risco de nascer já demasiadamente velha.


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