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Conversa ao redor de uma nova cinefilia| Parte 1 – Binarismos e cisões

Primeira de quatro partes da conversa da redação da Cinética a partir do texto “Por uma nova cinefilia”, de Girish Shambu. A conversa ocorreu em modo anônimo, via documento compartilhado online, entre 24/03 e 08/04 de 2020. Participaram Calac Nogueira, Fabian Cantieri, Francisco Miguez, Hannah Serrat, Ingá, Julia Noá, Juliano Gomes, Maria Trika, Pablo Gonçalo, Raul Arthuso e Victor Guimarães. A edição do material bruto foi realizada por Calac Nogueira, Ingá, Juliano Gomes e Victor Guimarães.

Parte 2 – Os filmes “problemáticos”

Parte 3 – Autorias e políticas

Parte 4 – Pontos de fuga

Tradução de “Por uma nova cinefilia” (Girish Shambu)


– O que achei interessante do texto foi o esboço de uma caracterização desses dois ambientes de cinefilia – que, de uma forma ou de outra, se fazem perceber. Noto esse contraste entre o ambiente da universidade de audiovisual, por exemplo, e o de um festival como Tiradentes. Existe realmente alguma incompatibilidade entre essas conversas. Isso fica nítido em certos contextos de aula, num embate professor-aluno que já vi muito, uma conversa que não move. Gosto desse exercício de distinção, de dar nome a esses mundos que convivem e se bicam.

– Também acho que o aspecto de diagnóstico do texto é muito valioso. O problema, pra mim, é transformar o diagnóstico automaticamente em manifesto. Ou seja: não apenas diagnosticar um discurso cinéfilo corrente (coisa que ele faz muito bem), mas endossá-lo sem nenhuma reserva.

– Quem é o velho cinéfilo? Quem assiste Fellini, Truffaut, Hitchcock, Ford, Kurosawa, Nova Hollywood? É sobre cânone? Não é melhor então chamar de “cinefilia canônica” e “não canônica”? Ou ainda, “cinefilia homevideo” e “cinefilia pesquisadora”, sei lá… Esse amante do cinema que ele descreve me parece ser só uma caricatura do boy que assiste Tarantino e Laranja Mecânica (Stanley Kubrick, 1971). Acho uma redução fácil, inventando o adversário.

– Gosto dessa distinção entre cinefilia canônica e não canônica, e acho que ela resume bem o debate entre a velha e a nova cinefilia. Agora, como construir valor desfazendo-se do cânone? Será que a nova cinefilia não quer exatamente “depurar” e atualizar o cânone? Se ela é anti-canônica, ela é iconoclasta, anárquica e desafia qualquer hierarquia de valores. Numa primeira pulsão, acho fascinante. No entanto, creio que assim tanto a cinefilia quanto a crítica tornam-se a sombra apagada num mundo pós-histórico.

– Me interesso pela provocação do texto e tenho adesão ao seu diagnóstico. Sobretudo a parte da perda do controle e da autoridade dessa “velha” cinefilia, e de um narcisismo que é caro a ela. Agora, se o manifesto acerta nessa desconstrução, para a qual eu pouco acrescentaria, eu ainda o acho vago nas proposições da nova cinefilia. Sua agenda é clara, a escolha por algo distinto de um preceito unicamente estético, canônico. Acho essencial, mas creio que o texto falha no que gosto de ler num manifesto: os rumos que sugere. Eu termino de lê-lo e fico com a mesma pergunta de antes: para onde ir? O que fazer?

– Que precisamos ir além da perspectiva branco-hétero-patriarcal já é um dado há algum tempo; que precisamos definir a cinefilia num plano cultural mais amplo e abarcar elementos para além dos autores, dos preceitos estéticos e num envolvimento comunitário político, também já acho um consenso, ao menos na geração mais nova. No geral, o que senti falta no texto foi de uma gama de proposições, mesmo de exemplos de obras, contextos e recortes.

– Curioso: pesquisando pra escrever isso aqui, descobri que o autor do manifesto dá aulas de Business Management. E, de certa forma, a figura da “gestão” é uma figura crucial no status quo atual. Gestor é quem “evita riscos” e não trabalha a partir de ideias. Projeta um ambiente “apolítico”.

– Eu acho que ele até trabalha a partir de ideias, mas quase abstratas. O “inimigo” (o concorrente) é uma ideia. Mas quase impalpável. Distante. O gestor é meio um R.H. pra toda hora, o senhor dos panos quentes. Aquele que cultiva pequenos consensos ao seu redor “pra construir um mundo melhor”. Um autor-gestor, nesse sentido, é a pessoa ideal pra convencer num formulário de edital. Ele tem ideias apaixonadamente não-afrontosas.

– Achei ótima essa expressão.

– Não-afrontosas? Acho que as pessoas que se formaram nessa relação íntima com a cinefilia francesa do pós-guerra, ao se verem sub-representadas pelas descrições chapadas da velha cinefilia, se sentem, sim, afrontadas. E muitas vezes me soam como aqueles comentários críticos a Bacurau (Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019) que repudiavam sua simplificação binária, simplificando, por sua vez, a crítica.

– Existe uma tendência que tem a ver com essa figura da velha cinefilia, que é um certo negacionismo revanchista. Um apego. Que é uma patologia macha, afinal. “Ninguém mexe no meu John Ford”. O problema não é o Ford, o problema real é o “ninguém mexe”, na velha e na “nova”. Comunidade é mexer. Tudo tem que mexer.

– Aqui no Brasil há muita resistência a se trabalhar a partir do consenso de que se você não for boy branco, você vai ter que trabalhar dez vezes mais pra afirmar sua voz no rolê. E aí a gente entra num jogo de twitterização dos debates, caricaturizações das posições alheias. Você vê, por exemplo, as matizes da crítica à ideia de lugar de fala que rolam por aí. Quem tava com a bunda colada no trono morre de medo e faz o passivo-agressivo. Seria interessante encontrar este traço dentro de filmes. Tenho certeza que está lá. Por isso, o involuntário é vital. Tudo deixa rastro.

– Outra coisa que me veio: há muito tempo existe uma cinefilia gay, com os seus próprios panteões (Fassbinder, John Waters, Andy Warhol, Jack Smith etc.), seus próprios critérios, muito diferentes da cinefilia masculina hétero, apesar de certas interseções. Essa cinefilia é um fenômeno bem antigo, não é “nova”. Não é também uma cinefilia que surgiu para se contrapor ou corrigir nada. Ela surgiu organicamente, fruto de uma certa comunidade que compartilha interesses e um gosto comum. É bom lembrar disso para perceber que a cinefilia francesa do pós-guerra não é a primeira nem a única cinefilia que já existiu. Essa cinefilia gay, como a cinefilia francesa do século XX, é um fenômeno concreto e localizável. A “nova cinefilia” que o texto apresenta, por outro lado, ainda me parece algo bastante vago, justamente porque é uma ideia concebida como negação da cinefilia francesa do século passado. Falta no texto um esforço de explicitar práticas em que a nova cinefilia se revele como uma experiência concreta e “positiva”. Pela estrutura argumentativa do texto, ela ainda é apenas um negativo da velha.

– O manifesto parece ignorar também experiências minoritárias como a cinefilia feminista ou a cinefilia negra que floresceram, ao menos nos EUA, ainda nos anos 1970 e 1980. Falo aqui de experiências como a Women and Film ou a Black Film Review. Seria importante fazer um exercício de pensar se o que estava em jogo nesses esforços críticos parte dos mesmos pressupostos dessa “nova cinefilia” atual.

– Mexer no passado obriga a balançar os pressupostos.

– Robin Wood já dizia num texto introdutório ao “cinema americano de terror” que o desenvolvimento mais significativo na crítica e nas ideias progressistas dos anos 60 e 70 era uma espécie de fusão entre as ideias de Marx e Freud: “não há revolução social sem revolução sexual”. Bem, até onde eu entendo, é esse o estalo da tal nova cinefilia.

– A forma “manifesto” acaba chapando as coisas. Descrever a “velha cinefilia” como baseada apenas no “prazer estético” é bastante caricatural. Como se a “velha cinefilia” fosse um bando de crianças diante de um espetáculo sem nenhuma relação com o mundo. Isso simplesmente não corresponde à realidade dos textos deixados por essa geração. Apesar de haver um acento infantil em muita coisa ali.

– Há mérito nisso. Tem humor. Manifestos têm isso: eles não necessariamente descrevem a realidade atual; antes, procuram entrever uma realidade desejada futura, mas colocando-a como dada (e inexorável) por meio de um deslocamento retórico. A gente tem que perceber o texto dentro desses deslocamentos retóricos, que têm uma intenção política. A nova cinefilia seria uma espécie de wishful thinking.

– Um grande incômodo que tenho é em relação ao agrupamento da nova cinefilia. Acho não apenas contraditório, mas, fundamentalmente, inconciliável, essa congregação uníssona daqueles que não se sentem representados pela velha cinefilia establishment. A mudança não seria justamente subverter essa forma unilateral de ver o cinema? Enquanto manifesto, a redução daquilo que ele nega (a velha cinefilia) se faz inevitável, mas ele coloca a nova cinefilia num mesmo balaio que existe apenas enquanto oposição, e não enquanto resultado de elucubração e reinvenção.

– É importante apontar certos aspectos bem saltitantes de uma geopolítica dessa nova cinefilia. O texto do Shambu ainda é muito vinculado a uma pauta dos países do norte, hegemônicos nas distribuições de filmes do mundo inteiro, que seguiram ora a velha, ora a nova cinefilia. Isso não diminui seus argumentos, mas o deixa melhor circunscrito. Dou um exemplo claro: a Criterion ou mesmo o Mubi, que são vetores de streaming canônicos das duas cinefilias, colocam agora uma plêiade de filmes de diretoras mulheres, o que acho louvável e urgente. Agora, essa inclusão é ainda manca numa reconfiguração tradicional do cânone. Nem obras clássicas latino-americanas ou africanas passam muito por lá.

– Creio que a pauta de “países periféricos” (e desculpe se sou démodé no termo, mas não vejo, agora, outro melhor) sempre precisa de certo cuidado, e de mediações. Lembro de um trabalho pedagógico que ainda é lacunar, no caso do Brasil e da América Latina, e mesmo da África, em descobrir e valorizar o velho cânone da velha cinefilia. Então, não consigo me desvencilhar totalmente dessa pauta canônica e universalizante e creio que é nosso papel sim, por meio da crítica, problematizar paradigmas, inverter pautas, gostos, eleições e ampliar, na força crítica, como as velhas e novas cinefilias ainda são, por assim dizer, bastante coloniais.

– Lá no final ele fala que não é sobre binarismos, mas só vejo isso por toda a parte. Por mais que ele diga que ambas as cinefilias convivem numa mesma pessoa em maior ou menor graus, as bases pela qual ele faz a diferenciação não são muito sólidas. A velha cinefilia é esteta e a nova é política. Que separação é essa? Não é isso que está no debate da Cahiers sobre o Hiroshima, Meu Amor (Alain Resnais, 1959): “esthétique et éthique, c’est la même chose” (estética e ética são a mesma coisa). Não é isso que está no “Da abjeção”, do Rivette, não é isso que está nas reflexões sobre o Neorrealismo do Bazin. Sempre um problema de mão dupla, o da linguagem.

– Então, onde é que essa crítica francesa é originária disso tudo, de uma crítica esteta, formalista? Na política dos autores?

– Tem um problema com o esquema comparativo que o texto nos oferece (e aqui ainda vale a afirmação de não se tratar de um sistema binário, afinal, cada um carregaria consigo as duas cinefilias em maior ou menor grau). Parte dele está nessa separação autolegitimadora entre prazer estético e engajamento com o mundo. Com eles, o prazer estético, “conosco”: “o encontro do prazer numa curiosidade profunda com o mundo e um engajamento crítico com ele”. Mas será que, quando eles escreviam que moral é uma questão de travelling (ou vice-versa indefinidamente), não se entendiam também como agentes de um engajamento crítico com o mundo?

– Armadilha de novidade.

– Aliás, uma dúvida: como pensar o fenômeno de radicalização maoísta dos Cahiers no fim dos anos 1960, começo dos 1970, sob a chave da “velha cinefilia”? Críticos como os jovens Daney, Comolli, Oudart, ou a jovem Sylvie Pierre, são representantes da velha cinefilia? Certamente não são da nova, mas como organizar uma cisão tão radical sob o mesmo guarda-chuva? Fico pensando num imperativo como o de Serge Daney: “Pôr o sinal de igual entre o critério estético e o critério político”. E dizer: “qualquer carência no nível formal deve necessariamente corresponder a uma carência no nível político’” (Fonction critique, 1974).

– É curiosa essa adesão e separação do “eles” e “nós”. Confesso que não sei me situar nem junto à velha cinefilia, nem junto à nova, tal como descritas no texto…

– Em relação à nova cinefilia, o texto parece colocar um acento muito pouco agudo na importância do prazer. A definição “ampliada” de prazer é interessante (embora já existisse antes da “nova” cinefilia), mas o problema são as consequências de uma baixa acentuação do elemento estético (ou de prazer, pra falar mais junto com ele). “Para a nova cinefilia, através da sua compreensão alargada de prazer e valor, os filmes que privilegiam vivências, subjetividades, experiências e universos de pessoas marginalizadas se tornam automaticamente valoráveis”. Automaticamente. Isso não existe em nenhuma cinefilia, nem nova nem velha, porque se existisse, como separaríamos a propaganda “inclusiva” do Itaú de um filme da Mati Diop?

– Opor prazer e engajamento é não entender nenhum dos dois.

– Cinema é a articulação do prazer, mas o prazer nem sempre é prazeroso… (a ideia não é minha, acho que é do Rohmer).

– As ideias nunca são “próprias”. As boas, ao menos. Teimam em escapar.

– O processo de haver o automaticamente valorável é necessariamente o inverso da crítica. Crítica é encontro, experiência e aposta. Mas o narcisismo hoje me parece uma ameaça central à crítica cultural. Pois cria-se assim a oportunidade perfeita pro sistema se reconfigurar, pois o que é “automaticamente” é perfeito para a gestão dos negócios, é algoritmia. Se perdermos de vista as condições, o BBB se iguala a Carnaval Atlântida (José Carlos Burle e Carlos Manga, 1952), e aí perdeu-se tudo. É evidente que os corpos figurados no cinema, a infraestrutura que possibilita uma carreira é altamente concentrada em certos tipos de corpos e perfis radicalmente homogêneos: brancos, herdeiros. Mas o preço desta percepção não pode se tornar o ônus de uma insensibilidade. Um dos objetivos da crítica é, ao expor-se como prática de observação e aposta, polinizar sensibilidades alheias. “Automatizar” é bom só pros negócios.

– Encontro, experiência e aposta – só para grifar. São palavras essenciais para a crítica.

– Acho essa questão do “automaticamente valioso/valorável/validável” importante. Porque me parece que tem uma lógica autolegitimadora na ideia de uma representatividade que se encerra em si. O que não reverte necessariamente em bons filmes, mas em filmes consensuais porque livres de contradição, “limpos”. Essa ideia de “valoração automática” me parece criar um ambiente crítico altamente complacente. Ou melhor dizendo: para além das credenciais ou validações a priori, as questões me parecem outras: como essa nova cinefilia reconfigura o visível? O que ela elabora ou torna enunciável, fazível, possível, que não estava ali antes? E aí o nó estética-política não tem como ser polarizado, como substâncias heterogêneas. Porque então podemos passar a perguntar: como se organizam as narrativas dentro dos filmes? Quais são as estratégias que os filmes utilizam e como isso revela uma outra economia de relações, entre equipe e entre quem filma e quem é filmado? Como essas estratégias e essa outra economia de relações são capazes de imprimir relações entre corpos, imagens, sons, ou seja, através do filme?

– Essa separação me parece furada. E, através dela, não vai dar pra entender nem o capitalismo. Porque se ele sempre foi “estético”, agora ele o é muito mais. Na verdade, sinto as bases das ideias do manifesto frágeis. Às vezes, tenho a sensação de que essa “nova cinefilia” que ele desenha parece um gesto discursivo análogo à “nova política”. Entretanto, ele levanta tópicos que urgem ser discutidos coletivamente, isso basta, para estarmos aqui discutindo. Não rejeito o movimento, mas o slogan.

– É um pouco pedante alguém definir aquilo que outras pessoas não-contempladas devem executar enquanto participantes e autores de uma nova cinefilia. Parece vertical e quase mimetiza a velha cinefilia com novas caras, novos representantes. É mudar sem mudar. Mas talvez eu esteja sendo um pouco mais ríspida do que gostaria, até porque eu nem desgostei tanto assim do texto.

– Pensar é sempre meio violento.

– Ali onde o texto quer celebrar a diferença, ele apaga todas as contradições internas entre essa nova cinefilia, que está longe de ser consensual em suas demandas. Tenho a sensação às vezes de que há um embate mais no campo do comercial do que do crítico. A quem esse texto se destina? Me desculpem estar sendo meio reducionista, mas tenho a sensação às vezes que o texto delineia inclusive pautas para a nova cinefilia, apontando para o que pode ou não ser sucesso comercial entre os amantes do cinema nesse momento…

– Olhando só pro cinema brasileiro, já que é pra traçar um ponto de vista localizado, posicionado territorialmente, a questão nunca foi da ordem de um prazer estético propriamente. O cinema brasileiro está olhando pro mundo, pro engajamento político há muito tempo, mas isso não fez com que a broderagem branca, classista, patriarcal não estivesse lá. Me parece, então, que não é o engajamento com o mundo que se ausentava. É o alcance e a força da perspectiva de raça e gênero, por exemplo, que têm nos reorientado de maneira geral.

– Falando do caso brasileiro, há uns exemplos interessantes. O filme considerado como marco fundamental do cinema negro brasileiro é Alma no Olho (1973), realizado por Zózimo Bulbul. O filme é uma ação performática, feita pelo próprio diretor, sob um fundo branco, onde ele encarna uma série de jogos de posturas corporais, gestos, variações de enquadramento, numa certa partitura muito particular de modulações, sem palavras. O filme é tudo menos uma propaganda, um slogan. É inspirado “na vida e obra de John Coltrane”, no livro do Eldridge Cleaver, e feito com sobras de negativos de outro filme, Compasso de Espera (Antunes Filho, 1973). Não interessa entrar aqui numa análise mais extensa, mas é evidente que ali dava-se a forma de uma luta racial, radicalmente baseada na experimentação, no investimento técnico e pictórico baseado numa ética da invenção. Hoje, em 2020, vejo muito mais gente falar do filme, do que vejo filmes que evocam, pelas suas estratégias o que estava ali no Alma. O que quero frisar é que se a “nova cinefilia” custar preço de separar superficialmente política e estética, ela funcionará somente como um braço de adorno do status quo.

– A cultura cinematográfica dominante é feita por homens brancos héteros: consenso, ok. Entretanto, se eu colocar a contribuição de Glauber Rocha no patamar idêntico do de Claude Lelouch, haverá muita terra fértil na lata de lixo. Crítica é visão de mundo e corpo a corpo com os filmes. É evidente que não se pode naturalizar que uma atividade como a da crítica de cinema seja exercida por um conjunto de pessoas que guarda enormes e esmagadoras homogeneidades. Isso não é natural e é produzido por um conjunto de mecanismos históricos, subjetivos, que atuam aqui, numa revista online de cinema, e que também já estão nas escolas primárias ou nos lares das crianças, onde não se espera que meninas tenham pontos de vistas relevantes sobre as coisas.

– Nesse sentido, fico pensando na historicidade da cinefilia. O que talvez só seja possível se voltarmos alguns passos e definirmos o que é quer dizer essa coisa ou (o que me interessa mais) o que pode dizer essa coisa. Porque me incomoda um pouco que a oposição entre “velha” e “nova” cinefilia que a gente encontra em alguns textos por aí se dê num espaço de 70 anos que separa a “era de ouro” (aff…) da cinefilia parisiense e o agora, desconsiderando tudo o que está no meio e tudo o que veio antes.

– Parece que a ideia de cinefilia brotou de uma árvore ou nasceu por geração espontânea.

– Há uma história da “arte de amar” o cinema que me parece muito romantizada, mas também tem um desenvolvimento das formas de olhar, das práticas de se relacionar com essa paixão e esse prazer. E elas não são estáveis, variam conforme diversos fatores sociais, simbólicos, geográficos e também econômicos. Por exemplo, por que vingou a fruição de um filme numa sala escura com um monte de gente sentada ao lado de uma porção de desconhecidos, mantendo um ritual de silêncio e atenção mais próximo de uma missa do que de um momento de lazer? Mas aí eu penso: vingou mesmo? Quando fui pro Festival de Havana, peguei uma sessão de Cemitério do Esplendor (Apichatpong Weerasethakul,2015) numa sala enorme, uns 800 lugares e a sessão tava meio vazia. Ou seja, tinha umas 100, 150 pessoas. Dois caras, sentados perto da tela, passaram a sessão inteira conversando, uma prática comum em todas as sessões de cinema em Cuba, aparentemente. Mas não era conversinha. Eles apontavam pra tela, discutiam, mostravam coisas do filme um por outro enquanto o filme rolava. O exemplo é simples e besta, mas notório: essa experiência de ver um filme tailandês contemporâneo dessa forma, nesse recinto, com essa disposição não me parece um modo de se aproximar do cinema que tenha relação com velho ou novo. É algo bem particular. E não está inscrito nos livros.

– Os entrelaçamentos de crítica e poder estão bem claros no desconstruir da velha cinefilia – e estou consciente que ele fala mais dela do que de crítica. Mas, e da nova? Vejo ambas cinefilias mega institucionalizadas. Mesmo essa cinefilia que desconstrói a hegemonia branca, hétero e masculina, já vem sendo incorporada em curadorias dos mais distintos festivais. Percebi isso ano passado em algumas linhas da Berlinale; que teve acertos e ousadias pontuais, mas que mostra, sobretudo, uma escolha de temas que negam, por mera oposição, os vetores dominantes. Na minha opinião, qualquer reflexão metacrítica que não incluir essa relação entre crítica e poder está fadada a uma substituição de agendas e de novas hegemonias. Tenho, por exemplo, pesquisado bastante um processo de “gatekeeping” – um termo muito presente no jornalismo – nos roteiros não filmados do cinema clássico de Hollywood. O que percebo é simples: antigamente o gatekeeping estava no instante da produção. Hoje, com zilhões de filmes na praça, esse gatekeeping migrou não só para a distribuição, mas para toda a cadeia de legitimação de uma obra, da curadoria à crítica! Como uma nova cinefilia lida com isso? Será que fazemos conscientemente esses jogos, como partícipes desse novo gatekeeping?

– Será que mudar a agenda também não deveria vir acompanhado dessa mudança de procedimentos crítico-curatoriais? Não seria um momento de realizar uma “contra-curadoria”? Ou de problematizar o “lugar de fala” do crítico? Gostava muito, por exemplo, dos esforços genealógicos da Cinética na época da editoria do Fábio. Alguns textos de filmes mais remotos da Andrea, do Luiz e de tantos outros, creio que faziam isso de maneira bem contundente. Sei que o projeto dali era outro, mas seria bom encontrar uma forma de colocar em crise ambas as cinefilias, ao menos nas suas facetas mais institucionalizadas.

– Outra coisa que acho incômoda é essa falta de espaço que o texto dá para ser contradito. Ele é meticuloso nisso, em ser inclusivo, em ser altamente polido e político. Me incomoda demais a falta de irreverência no texto, quase insípido. Se é um manifesto, eu queria ter visto um trem kitsch mesmo, sem vergonha de ser um revival dos Dez Mandamentos. O cara quer ser Moisés disfarçado, não colou.

– Talvez esteja falando como membro da “velha cinefilia”, mas me incomoda também o tom excessivamente correto, limpo de contradições do texto. A nova cinefilia vem para corrigir os erros (que todos conhecemos bem) da velha cinefilia. Há um impulso corretivo aí, uma tentativa de higienizar e tornar “saudável” uma prática que muitas vezes envolve afetos menos, digamos, “nobres”: vício, ociosidade, prazer com o contraditório, escapismo, o consolo através da identificação. Esses afetos são os “prazeres privados, pessoais e introvertidos” da cinefilia tradicional? Eles precisam ser eliminados no regime da nova cinefilia?

– Gostei muito dessa ideia da higienização de uma prática que envolve outros prazeres. Acho que dá pano pra manga.

– Sim! Até porque me provoca um singelo ranço, no fundo do peito, toda vez que alguém (principalmente, homem cis hétero branco) tenta definir o que é prazer ou como se relacionar com as coisas.

– Cê falando disso, dos white boys cis, fico pensando que crítica, ou cinefilia, é uma certa comunidade do “prazer junto”. Essa é uma barreira pra esses boys, pensando em ato sexual mesmo. Enfim, tô viajando mega longe aqui. Mas às vezes fico noiada em pensar como esse consenso sobre certo contexto de urgência cria ambientes propícios para o prazer, o prazer junto. Sinto que tem uma dureza(!) em toda essa discussão que deixa o principal de fora.

– Tô tendo prazer aqui agora, trocando sobre tudo isso. Prazer é prática.

– O texto fala que a “velha” é louca por estética. Este texto aqui se escreve em 2020. Ainda temos aqui, a título de exemplo, um presidente de outra ordem, que acima de tudo “investe em estética”. Fala de certa maneira, produz imagens de certa maneira, trabalha intensamente sobre os objetos que ornam sua imagem, escolhe as palavras com enorme singularidade. O que quero dizer: não me parece viável desenhar um domínio estético e um suposto domínio “aestético”, na arte ou fora dela.

– A própria performance de gênero trabalha sobre regimes que podemos chamar estéticos, evidentemente. Minha passabilidade racial é modulada por uma série de elementos altamente dinâmicos. Dou um exemplo: descolori recentemente o cabelo. Minha circulação aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, é muito mais “preta” quando estou assim. A polícia se assanha, os seguranças de mercado, as pessoas em situação de rua me pedem muito menos. O que quero dizer é somente sobre a natureza dessa matemática de signos ser altamente dinâmica, e que cada corpo tem, digamos, uma amplitude própria nas possibilidades de sua performance pública. Se minha pele fosse escura ou se eu tivesse uma vagina, todo esse desenho de possibilidades seria distinto. E, seguindo um pouco nesse campo, uma ideia como “montação” me parece extremamente fértil para pensar arte, como paradigma mesmo, através da sua ênfase radicalmente performática.

– Gosto bastante dessa ideia de montação. A fluidez da existência me parece muito menos burocrática do que a separação que ele propõe.

– É importante pensar a crítica também como um ato estético, que aposta no sensível, mais do que (apenas) no esclarecimento da estética, no pior sentido iluminista que esse termo pode vir a ter. Como elaborar uma crítica performática? Uma crítica da montação? Uma crítica que não tenha medo de se assumir como precária? Uma crítica que não gagueja diante da sua artificialidade?

– Num atual contexto de “pós-verdade”, a crítica não sucumbiria diante de uma insistência em ser um ato restritamente racional, esclarecedor, ranqueador e canônico? Existe um fervor de provocação, de irritação e de encanto que permeia as melhores críticas. Não seria um bom momento de assumirmos essa potência como um ponto de partida?


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