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Tradução de “Por uma nova cinefilia” (Girish Shambu)

Este texto  foi publicado originalmente na revista Film Quarterly em março de 2019. De partida, agradecemos a autorização do autor Girish Shambu e da Film Quarterly pela possibilidade de trazer aqui uma versão dele em português. A escolha deste recente manifesto sobre os ambientes cinéfilos atuais para publicação na Cinética se dá por alguns motivos. Interessou à nova composição da editoria pensar sobre as mutações que o campo da reflexão sobre cinema passa nos últimos anos e este texto sintetiza as linhas gerais de certos impasses de tal espaço discursivo.  O gesto da publicação desta tradução não é sinônimo de um consenso em relação ao que o texto aponta, mas sim uma aposta justamente no seu potencial de dissenso produtivo. Assim, ele oferece um conjunto de ideias que funcionou como eficiente disparador de questões na redação, que se materializou numa conversa coletiva que publicaremos em quatro partes logo em seguida.  O método da troca escrita feita pela redação discutindo o texto de Girish Shambu foi trabalharmos livre e anonimamente num documento compartilhado online entre 24 de março e 8 de abril de 2020.  Nesse documento coletivo, a diferença das vozes se afirmava não apenas nas posições defendidas e nas diversas referências convocadas, mas nas maneiras de dizer e no léxico particular de cada uma. Ao mesmo tempo em que o processo apostava numa variação das vozes, rejeitávamos uma vinculação estrita entre voz e personalidade, apostando em uma escrita coletiva que pudesse fazer vacilar um pouco a categoria da “autoria”, cara a ambas as cinefilias definidas pelo texto que vocês lerão aqui abaixo. Portanto, o texto de Girish Shambu é o primeiro de uma série de cinco textos, publicados durante esta semana e a próxima,  onde discutiremos tal estado de coisas.

Parte 1 – Binarismos e cisões

Parte 2 – Os filmes “problemáticos”

Parte 3 – Autorias e políticas

Parte 4 – Pontos de fuga


Por uma nova cinefilia (Girish Shambu)

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A velha cinefilia é a cinefilia que tem dominado a cultura cinematográfica nos últimos setenta e cinco anos. Sua história de origem narra sua ascensão na França, após a Segunda Guerra Mundial, com sua consagração do autor e seu culto à mise-en-scène. Ao longo dos anos, essa história produziu uma marca profunda na cultura cinematográfica da Europa Ocidental, e passou a se instalar como a narrativa hegemônica do amor ao cinema, ponto. Um truque de mágica: o que era local se tornou, silenciosamente, universal.

A nova cinefilia reconhece duas coisas sobre essa história de origem: que ela é uma narrativa de amor ao cinema entre inúmeras outras no mundo; e que foi criada majoritariamente por uma minoria: homens cis brancos. Em resposta a isso, a nova cinefilia quer multiplicar uma diversidade de vozes e subjetividades, e uma constelação de narrativas sobre a experiência cinéfila. A nova cinefilia, que vive confortavelmente tanto na URL (na internet) quanto na IRL (in real life, na vida real), é uma cinefilia consciente de si mesma, e que põe em evidência a situacionalidade social – a posicionalidade subjetiva – dx amante de cinema. Para isso, devo adicionar: escrevo essas palavras como um homem, hétero, cinéfilo do sul asiático que vive nos E.U.A.

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Os prazeres no coração da velha cinefilia são predominantemente estéticos. A nova cinefilia tem uma definição mais ampla de prazer: valoriza a experiência estética do cinema, mas demanda mais. Ela também encontra prazer numa curiosidade profunda pelo mundo e no compromisso crítico com ele. O cinema nos ensina sobre o mundo humano e não humano através de caminhos novos e poderosos. O prazer cinéfilo tradicional é privado, pessoal, interiorizado; é também isso que Laura Mulvey, em seu importante manifesto, pretende destruir. A nova cinefilia irradia para o exterior, impulsionada por um espírito de busca e desejo de transformação social e planetária. Não à toa, várixs realizadorxs enaltecidxs pela nova cinefilia – mulheres, pessoas queer, índigenas, pessoas não-brancas – se interessam pela militância e enxergam o cinema como parte de um projeto mais amplo de ativismo cultural. Também não é à toa que, comparativamente, poucos cineastas cis brancos compartilham dessa característica.

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O ato de avaliar é central para a velha cinefilia. Elaboração de listas, classificações, criação de hierarquias e níveis – essas atividades, em larga medida reconhecidas como uma propensão masculina, são importantes para a velha cinefilia. (Um dos seus textos sagrados, The American Cinema de Andrew Sarris, definitivamente ilustra este impulso). Na cultura cinematográfica, o valor flui do prazer e, visto que a antiga cinefilia privilegia o prazer estético, há muito tempo esse tem sido o principal critério de valor dos filmes. Para a nova cinefilia, através da sua compreensão alargada de prazer e valor, os filmes que privilegiam vivências, subjetividades, experiências e universos de pessoas marginalizadas se tornam automaticamente valiosos.

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O autorismo é a pedra angular da velha cinefilia. Ao sustentar a posição (como fez François Truffaut) de que o pior filme de um “autor” é inerentemente mais interessante do que o melhor filme de um “não-autor”, o autorismo se tornou um eficiente mecanismo para multiplicar sem cessar o discurso sobre um número limitado de realizadores, quase sempre homens. O autorismo, em outras palavras, se tornou uma máquina de manspreading[1]. O mito da escassez de filmes que não sejam de homens, tal como alimentado pela política dos autores, está finalmente sendo explodido pela nova cinefilia. A atitude da nova cinefilia perante o autorismo é ambivalente: por mais que tenha favorecido os realizadores masculinos até então, não há nada necessariamente masculino no autorismo. Ele também pode ser facilmente usado como um método fértil para gerar análises, textos e discussões a respeito, especialmente, de cineastas mulheres e cineastas não-brancos.

5

A velha cinefilia reivindica que é aberta e eclética. Aqueles que aderem a ela há muito se satisfazem em espalhar suas redes para incluir tanto o cinema comercial quanto o cinema de arte, filmes contemporâneos e antigos, nacionais e internacionais, além de uma variedade ampla de gêneros. Embora esse seja um impulso admirável, ele não chegou a cumprir, na realidade, suas promessas de inclusão. A cinefilia tradicional privilegia o formato do longa-metragem narrativo de ficção. Outras formas valiosas como a televisão seriada, os curtas-metragens, as séries e vídeos da internet, os trabalhos experimentais e até mesmo os filmes documentários não têm o mesmo espaço cativo. Realizadores de grupos marginalizados – isto é, que não são brancos ou homens cis – enfrentam barreiras muito mais altas na realização de longas-metragens de ficção, razão pela qual gravitam para outras áreas e plataformas. Isso atesta que as formas não-dominantes da imagem em movimento, nas quais esses artistas geralmente trabalham, não recebem a mesma atenção.

A nova cinefilia atende ao chamado de So Mayer pela “justiça representacional”, aspirando a uma verdadeira inclusividade e abraçando a maior variedade possível de formas e artistas que produzem imagens em movimento[2]. Isso não significa devotar a mesma atenção para todos os cineastas e todas as criações, já que esse seria o tipo de atitude morna e liberal que atribui “a mesma voz para todos os lados”. Em lugar disso, uma vez que a velha cinefilia há muito tem privilegiado cineastas pertencentes às camadas sociais dominantes, a nova cinefilia concentra seus esforços nos artistas social e politicamente marginalizados, assim como nas formas institucionalmente marginalizadas que lhes são mais acolhedoras. Cada ato cinefílico de falar, escrever e citar deve ser um ato que intervenha sobre um mundo desigual.

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Uma certa tendência da velha cinefilia: ela tem uma veia conservadora, nostálgica. Experiências cinéfilas (especialmente da infância à adolescência) são estimadas, sacralizadas, guardadas em um lugar especial ao longo da vida. Como Sarah Keller tem argumentado, cinéfilos frequentemente experimentam uma postura ansiosa e defensiva quando seus investimentos estão em perigo, quando seus prazeres estão ameaçados[3]. Para lembrarmos um conhecido exemplo: quando feministas demandaram uma redução da atenção crítica e cinéfila ao trabalho de figuras como Woody Allen e Roman Polanski, elas encontraram uma resistência poderosa e reacionária a qualquer sugestão que se insinuasse nas fileiras da cultura cinematográfica (especialmente a autorista).

A nova cinefilia reconhece a instabilidade inerente aos juízos de valor sobre artistas e seus trabalhos. O valor de um filme pode crescer ou diminuir com o passar do tempo, dependendo não apenas dos critérios formais, mas também dos ideológicos. Nós devemos sempre estar abertos à possibilidade de redimensionar valores ou até a renunciar aos nossos objetos previamente adorados à luz de novos conhecimentos, novas consciências e novos imperativos. Nesse presente momento, todo o corpus do cinema se mostra diferente para o olho da nova cinefilia em um mundo do #MeToo.

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A velha cinefilia é infinitamente fascinada pelas representações do mau comportamento masculino: obsessivo, dominador, abusivo, violento. A crítica cinematográfica deu apoio e incentivo a essa propensão, colocando a seu serviço um vocabulário de endosso, encorajamento e consagração. “Obscuro”, “distorcido”, “provocativo”, “disruptivo” são palavras usadas mais frequentemente para caracterizar um cinema feito por (e sobre) homens do que mulheres. A nova cinefilia está tanto atenta a ela quanto saturada dessa sobrerrepresentação, à qual ela responde propondo uma cinefilia da recusa. A nova cinefilia não sente qualquer desejo em continuar se sujeitando ao cinema da patologia masculina.

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Você já deve conhecer a velha cinefilia pelo som de suas preocupações: a cultura cinematográfica do nosso tempo é “politicamente correta demais”, “moralmente orientada” demais e “tudo é política identitária”. Supostamente fragmentada e atomizada pelas linhas da identidade, a comunidade dos amantes do cinema não está mais unificada como outrora (supostamente) esteve.

Para a nova cinefilia, contudo, essa unidade da cultura cinematográfica é uma fantasia nostálgica, uma ficção propagada e sustentada pela imposição de um falso universalismo. Somente privilegiando certas identidades (branca, masculina, heterossexual) em relação a outras é que a cultura cinematográfica Euro-Ocidental historicamente se capacitou para construir sua ilusão de integridade e coerência. O que está sendo verdadeiramente lamentado pela velha cinefilia é a (minúscula) perda de autoridade cultural e de influência por seus grupos identitários dominantes.

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A velha cinefilia e a nova cinefilia não são apenas práticas, elas são também ideologias. Cada cinefilia tem seus valores e crenças – maneiras de ver o mundo – a partir das quais fluem seus gostos e sensibilidades. Ainda assim, é importante perceber que as duas cinefilias não formam um sistema simples ou sequer binário. Ao invés disso, ambas vivem, em graus maiores ou menores, em cada cinefilia individual.

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“A vida organizada em torno dos filmes” é uma definição amplamente aceita para a cinefilia tradicional. Mas nesse momento, quando o mundo está em ebulição e o planeta à beira de uma catástrofe, tal concepção de amor ao cinema soa irresponsável, até narcisista. O que precisamos agora é de uma cinefilia que esteja em pleno contato com seu momento presente global – que o acompanhe, que se mova e viaje com ele. Não importa o quão ardente e apaixonado seja nosso amor por esse meio, o mundo é maior e vastamente mais importante do que o cinema.

Notas:

  1. Originalmente, o termo designa o hábito de homens sentarem com as pernas abertas, ocupando um espaço excessivo, especialmente nos transportes públicos.
  2. So Mayer, Political Animals: The New Feminist Cinema (London: I. B. Tauris, 2016).
  3. Sarah Keller, “Cinephobia: To Wonder, to Worry,” LOLA, no. 5 (November 2014), www.lolajournal.com/5/cinephobia.html

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