olho no olho
Configurando um panorama - a curadoria da Mostra de Tiradentes
entrevista por Francis Vogner dos Reis, com participação de Lila Foster


O desafio de realizar uma curadoria é expor e fomentar a discussão sobre a produção audiovisual contemporânea. No caso de Cléber Eduardo e Eduardo Valente, editores dessa revista e agora curadores da décima edição da Mostra de Tiradentes, é também uma extensão do trabalho crítico realizado na Cinética e uma maneira de continuar a refletir sobre a conjuntura atual do cinema brasileiro. Em 2007, a mostra propõe uma revisão do cinema brasileiro da última década e Cléber Eduardo (curador da mostra de curtas e longas) e Eduardo Valente (co-curador da mostra de curtas) falam das principais questões referentes à curadoria deste ano (além de tematizarem o papel da curadoria, de modo geral) e do panorama formado pelos filmes presentes na Mostra.

Parte 1: O papel da curadoria

Essa incursão dos editores da Cinética pela curadoria de uma Mostra não deixa de ser curiosa, já que as mostras e festivais (e suas curadorias) vêm sendo tematizadas na revista há um bom tempo. A primeira pergunta é simples: como surgiu esse convite?

Cléber Eduardo: Eu fui duas vezes a Tiradentes: estava lá em ocasião no lançamento do livro da Contracampo, no qual eu tenho dois ensaios; e no ano passado tive uma participação bastante ativa nos debates de Tiradentes. Além disso, os organizadores da Mostra vêm acompanhando o trabalho que fazemos na Cinética nesse período. A partir disso, a Raquel (Raquel Hallak, coordenadora da Mostra de Tiradentes) fez esse convite. O espírito do festival, sobretudo deste ano em que faz dez anos e propõe um balanço da década, está de uma certa maneira sintonizada com o tipo de trabalho que eu venho tendo em relação ao universo do cinema brasileiro. Essa análise mais panorâmica de colocar as coisas em perspectiva histórica,  tem muito a ver com o que eles querem fixar como imagem de Tiradentes e sobretudo com essa edição, que tem estes debates sobre o que foi o cinema brasileiro dos últimos dez anos. O conceito que está por trás dessa edição é muito parecido com o próprio conceito do livro da Contracampo, aliás: o de tentar fazer um balanço da década.

A proposta foi nesse sentido, de liberdade concreta, para eu exercitar uma organização, um olhar sobre a produção que compõe essa programação, com essa preocupação de ser um painel do momento. O que eles estavam querendo era uma programação com um determinado perfil, um determinado conceito, e eu estabeleci esse conceito de um reflexo do instante da produção e tentei organizá-lo através dessas seções a partir do que se revelava na atual safra. O que Tiradentes está querendo com essa curadoria, seja ela só este ano ou que ela venha a continuar no(s) próximo(s), é buscar um perfil de festival que se diferencie do conjunto de festivais hoje no Brasil. Você tem hoje o Festival de Brasília, que é um festival lançador de filmes e trabalha com filmes que estão tendo sua primeira exibição em Brasília, algo que o Festival de Recife parece também estar querendo fazer. De uma maneira geral os festivais trabalham muito com os filmes que estão disponíveis apenas, não há muita preocupação em compor um perfil, acabam sendo um modo de escoar filmes que não chegarão naquelas praças ou vão demorar a chegar – ou seja: um compensador de uma falha de sistema de distribuição. O que eu busquei foi que ele não fosse só isso, que não trabalhássemos só com filmes que estivessem a disposição, mas sim, tentar compor algumas aproximações entre esses filmes.

Eduardo Valente: No meu caso, o convite surgiu de uma proposta do Cléber, que ao ser convidado pra ser o curador de longas e curtas, achava que eu conhecia a produção recente de curtas no Brasil de maneira mais abrangente que ele. A partir daí, eu insisti em fazer o trabalho, porque acho um dos cargos mais importantes e menos "usados" de fato no Brasil, e tanto me interesso por ele que automaticamente excluí meu próprio filme da Mostra ( O Monstro), que estava entre os inscritos, para poder fazer parte dessa curadoria.

A Cinética tem se posicionado muito claramente em relação a algumas instituições (Mostra Internacional, APCA, ineditismo do Festival de Brasília) e críticos. Esta movimentação de alguma forma pleiteia uma nova centralidade, seja na forma de se pensar o cinema criticamente, ou na relação do trabalho da crítica com o universo cinematográfico? Há uma vontade de confrontar um certo status quo?

Cléber: Não sei se concordo com essa noção de uma "nova centralidade". Prefiro trabalhar na idéia de uma configuração crítica representativa desse momento crítico, mais plural e multifacetado se comparado à crítica na primeira metade dos anos 90. Eu não me considero parte de uma "Nova Crítica", no sentido  histórico de zerar momentos anteriores e começar um outro momento em direção oposta,  mas reconheço o surgimento de uma Crítica Nova, no sentido etário (casa dos 20/30 anos) e no espírito de atuação, que se distingue por se relacionar com o cinema como pensamento em grupo (e não de "um grupo"), por ter um relação menos profissional com a atividade da reflexão, que escreve antes por uma necessidade de reagir ao cinema em forma de texto, não como parte de uma atividade profissional (ou não exclusivamente).

Esse pensar em grupo, se traz algumas afinidades de olhar e de aproximação, evidencia, sobretudo, as diferenças de abordagem e de estratégias de cada crítico, mesmo entre críticos de um mesmo veículo (Paisà, Contracampo, Teorema, Cinética, Cinequanon). Essa ação desse grupo, que se encontra frequentemente para discutir ações culturais, que produz mostras, programa cursos, que bebe cerveja junto, que debate o cinema com paixão e com razão, talvez seja algo novo, sim, mas só se o parâmetro for os anos 80, até metade dos 90, porque na verdade esse espírito de grupo é apenas uma recuperação progressiva de um espírito de cinefilia e de desejo de expressar-se criticamente como reação ao mundo por meio do cinema e ao cinema por meio dos textos. Isso que está sendo chamado de "nova centralidade" na pergunta é na verdade uma forma de atenuar a idéia de um centro e de se propor ações e intervenções propositivas no sentido de ampliar as ferramentas críticas.

Tiradentes reconhece com essa curadoria um trabalho amplo, não  apenas meu, que pude ampliar desde minha entrada na Contracampo, em 2002, e agora tem continuidade com alguns ajustes na Cinética. Essa forma de trabalhar criticamente ficou mais evidente, em Tiradentes, com os debates dos quais participei em duas edições (a de 2004 e a de 2006) e com o lançamento lá do livro organizado pelo Daniel Caetano, vinculado a Contracampo (o Ensaios Sobre uma Década), no qual tenho um ensaio sobre narrações em primeira pessoa e outro sobre a  "distopia na redemocratização". Esse trabalho consiste em permanentemente tentar analisar os filmes em suas especificidades, mas também em tentar ver como essas especificidades podem estar em diálogo com outras, em como essa soma de características recorrentes pode expressar algo da  mentalidade de um segmento em um momento histórico (o do cinema nos anos 90-2000). Essa busca de um olhar que vai do específico para o panorâmico, sempre tentando enxergar o conjunto, as pontes, as oposições, foi, talvez, o motivo central de minha escolha para essa décima edição. E essa característica está no catálogo da Mostra, com um ensaio meu conectando Central do Brasil, O Invasor e Cidade de Deus, escolhidos por 41 críticos ouvidos pela organização como os filmes mais representativos e expressivos dessa última década.

E isso porque essa edição é comemorativa de 10 anos, e, como tal, tem a disposição de pensar a última década em seminários, em perspectiva, de forma panorâmica, histórica, com reprises dos filmes mais votados pelos  41 críticos, ao mesmo tempo em que tem o empenho, que já tinha, de programar a organização de um instante histórico do cinema brasileiro, o dos últimos meses, apenas com filmes inéditos em circuito comercial e apenas com trabalhos cuja primeira exibição aconteceu de agosto em diante. Minha escolha, primeiramente, e na do Valente, como consequência, foi fruto dessa sintonia. Vínhamos procurando fazer essas pontes entre o específico de cada filme e sua localização no contexto estético-histórico e essa nossa disposição era exatamente a buscada pelo Festival.

Já quanto a uma suposta desestabilização de status quo, e de uma troca de centralidade por outra, é algo a ser discutido com cada crítico envolvido nessa "nova cena crítica", porque eu não tenho planos de desestabilização de nada, mas de uma proposição firme e empenhada de novas formas de praticar a crítica, de novos olhares e critérios de análise, de criação de espaços para essa atitude da qual falo, encontrar ressonância, sem depender de estar com a força de uma empresa de comunicação por trás. Isso não é desestabilização, tampouco novo centro, porque, convenhamos, nada será de fato desestabilizado, tampouco um novo centro surgirá, mas a configuração certamente está mudando se tomada de forma bem panorâmica, com esses críticos surgidos na segunda metade dos anos 90 organizando mostras, fazendo curadorias, propondo cursos e planejando seminários de discussões estéticas, com frequência, o que deverá ser o próximo passo a ser dado. Agora, faço questão de discordar da idéia de desestabilização e novo centro, porque não existe estratégia e desejo de"substituição de postos", mas de criação de campos de atuação nos quais não se tem atuado com a força, com a frequência e da maneira que eu considero importante atuar. 

A crítica (menos) e a produção cinematográfica (mais) são geralmente objeto de discussão na conjuntura atual. Já “curadoria” não. A seu ver, por que o trabalho de curadoria não é uma questão?

Cléber: Eu acho que a rigor não existe a figura do curador e nem o conceito de curadoria nos festivais de cinema no Brasil. Você tem ou um agrupamento de filmes, ou uma seleção dos melhores filmes naquele momento pra integrar aquele festival, sejam eles inéditos, como em Brasília, ou não necessariamente inéditos, como é o caso de Gramado. Ou seja: você trabalha com inscritos e, a partir dos inscritos, você escolhe o melhor entre eles – só que isso é feito por uma comissão, não por uma pessoa, por um curador, um olhar. O problema de ser feito por uma comissão – e uma comissão que muda todo ano – é que você não consegue estabelecer uma curadoria, você não consegue criar critérios e não consegue estabelecer a responsabilidade pelas escolhas. Porque o curador, além do conceito, tem de estabelecer os seus critérios, ele vai se responsabilizar. Em uma comissão de modo geral, não se vê ela se justificando, dizendo porque escolheu ou porque não escolheu, que é tudo que estou fazendo aqui e que também o que está no catálogo. Eu não tenho conhecimento de nenhum festival de cinema brasileiro que tenha um catálogo em que o curador se explique durante algumas páginas sobre seus critérios para escolher aquela composição de filmes, ou mesmo que a comissão explique seus critérios. Apenas se seleciona e pronto, e quando se vai reclamar da seleção, seja a crítica ou seja os realizadores, não se tem de quem reclamar porque é um grupo, e esse grupo não tem identidade e o critério de escolha não é de uma pessoa e não é de grupo também, porque é uma questão de voto às vezes. Não existe uma justificativa conceitual, é simplesmente uma questão de gostar mais ou gostar menos. O membro da comissão sempre pode justificar uma não inclusão polêmica ou uma seleção contestada jogando a responsabilidade nas costas dos demais da comissão. Nós não. A responsabilidade é nossa e temos de assumi-la, como fazemos quando escrevemos nossas críticas. A curadoria tem assinatura. Não que as pessoas das comissões não trabalhem com conceitos, mas isso não vem à tona, não se torna público.

Valente: Em alguns casos, como nos nossos maiores festivais de longas, a noção de panorama ficou tão inchada, que perdemos qualquer senso crítico do que significa aquele grupo, aparentemente aleatório, de filmes. Claro que isso tem efeitos, inclusive de ordem crítica, onde percebemos um aparente desinteresse pela discussão do cinema como discurso e linguagem hoje. Não por acaso, aliás, alguns dos curtas brasileiros mais exibidos e premiados em festivais internacionais importantes têm passado quase despercebidos nos principais festivais brasileiros.

Cléber: A idéia de curadoria de Tiradentes é bem diferente da que estamos acostumados a ver, porque, primeiro não se parte da idéia de que estão lá só os melhores, mas sim um reflexo de produção que tem de ser organizado. Por outro lado é uma idéia de curadoria arriscada, porque você está entregando na mão de um único olhar e de uma única pessoa todo o poder pra montar uma programação. Talvez a melhor solução seja trabalhar com dois curadores para haver algum tipo de choque, como aconteceu na curadoria dos curtas com o Valente. Eu senti falta desse diálogo na de longas. Mas, de qualquer forma, uma outra pessoa na curadoria de longas não iria alterar significativamente a programação, porque a gente também tem uma safra e não somos nós que inventamos essa safra, não se pode querer ter filmes que não existam. A safra como se apresentou esse ano permitiu pouca margem de manobra, por isso não sei se uma segunda pessoa faria muita diferença, mas acho que um segundo olhar é muito importante para você ter esse embate. Tiradentes tem um número de longas, 16 esse ano, que permite você montar esse painel. É claro que tem filmes que são escolhas minhas, filmes que não passaram ainda em outros festivais e que eu fiz questão que estivessem ali, primeiro porque se destacavam mesmo, e segundo porque eles têm um perfil que é o de Tiradentes, mais guerrilheiro, mais independente, de investigação estética, de risco, de projetos que podem cometer maiores ousadias, justamente por não terem compromisso com o mercado, com certo profissionalismo...

A curadoria também teria esse papel de fazer com que esses filmes existam ativamente?

Cléber: Eu não acredito que eu possa ajudar que eles existam no sentido de que, a partir de Tiradentes, eles venham a conseguir maior facilidade para circular. O que posso garantir é que eles sejam exibidos em Tiradentes e tenham um público bastante significativo, porque a Tenda e a Praça comportam muita gente, cerca de 800 em uma e de 4 mil em outra. Eles terão um número de pessoas reunidas para vê-los, que muitas vezes um filme brasileiro que entra em circuito comercial não tem. Não há nenhuma garantia que, a partir dessa única sessão que esses filmes vão ter em Tiradentes, eles venham a ter outras exibições em outros festivais e venham também a entrar em cartaz. Não tenho como garantir isso. O que tenho a garantir é o espaço deles em Tiradentes e só posso fazer isso porque a Mostra dá liberdade para que eu faça e porque ela tem um perfil e um público extremamente interessado e generoso com as propostas, que tem uma curiosidade para saber também o que é feito dentro de manifestações do cinema menos convencionais. Tiradentes permite colocar longas mais “miúras”, mas, extremamente interessantes na maneira como lidam com a linguagem, como Cine Tapuia, Acidente, Conceição, O Quadrado de Joana e O Céu está Azul com Nuvens Vermelhas. São filmes estranhos, filmes anormais, fora de uma determinada pauta de mercado e de uma pauta estética, mas que na minha opinião são o perfil de Tiradentes. Não sei se outros festivais teriam um perfil que desse pra exibir esses filmes, talvez um ou outro (como aconteceu com o Acidente), mas não os cinco juntos. O que eu acho que esses filmes vão ter como fortuna é um debate estético sobre eles, e, nesse sentido, essa existência que você colocou lá atrás acontece, porque o filme vai ser verdadeiramente discutido.

Qual a diferença da sua curadoria para a dos outros anos que você participou acompanhando a Mostra de Tiradentes?

Cléber: Muito pouca. Mas o que talvez tenha se salientado é o perfil do filme que tem uma independência estética ou uma independência de produção. Claro que isso não está nos 16  longas, mas esse é o tom. Acho que está amplificado com relação ao que era, só que isso também não é só uma opção de curadoria, mas é também um reflexo do momento do cinema brasileiro: eu não tinha filmes populares, por exemplo, como opção (não que se tivesse qualquer um entraria, mas se você tivesse ali dois ou três filmes populares interessantes, seria ótimo de botar na praça para quatro mil pessoas verem). Os filmes com esse suposto perfil mais popular são o Noel Rosa, o Antônia e o Proibido Proibir , que, dentro da configuração do mercado de cinema brasileiro hoje, não são considerados filmes de perfil tão popular. Isso acabou me estimulando a fazer determinadas operações para programar a praça, que são um pouco ousadas, mas que mudam um pouco o conceito do que vem a ser o popular também. Por exemplo, terão  exibições na praça, para quatro mil pessoas, dois documentários: um de Vladimir Carvalho (Engenho de Zé Lins) e um de Silvio Da-Rin (Hércules 56), que é sobre regime militar e o seqüestro do embaixador americano Charles Elbrick. Eu acredito que eles tenham, tanto no tema como na maneira em que se articulam, uma capacidade de diálogo, de informação e de contextualização que permite tranquilamente exibi-los pra quatro mil pessoas na praça.

Eu não preciso só passar o filme do Guel Arraes, nem só o Dois Filhos de Francisco, é possível passar o Vladimir Carvalho e o Silvio Da-Rin, porque acredito que as pessoas vão se interessar por esses dois filmes, não tem nada que dificulte o acesso a eles, então acho que também tem essa tentativa de quebrar determinados preconceitos, e um é esse do que vem a ser o tal “filme popular”. Se o filme do Vladimir Carvalho se comunicar com quatro mil pessoas na praça em Tiradentes, ele é um filme popular. Já O Cheiro do Ralo vai passar na Tenda. Não será só a presença de um astro como Selton Mello que faz o filme ir pra praça. Eu acho que o Zé Lins pode passar na praça, embora teoricamente ele teria de ir para a Tenda e o Cheiro do Ralo para praça. Eu acho que é importante a gente se atrever a fazer algumas operações que não sejam necessariamente as mais seguras e as mais convencionais. Ai tem o trabalho de curadoria que é o trabalho de arriscar uma programação.

Seria o papel de repensar o papel e o lugar desses filmes...

Cléber: Claro, e isso eu posso fazer em Tiradentes porque é de graça, não se cobra entrada – isso é fundamental, porque o que é necessário pra que você esteja na frente da tela é apenas você querer. Eu não conheço a fundo a relação de patrocinador com os orçamentos dos festivais, mas eu acho estranho que festivais de cinema, com tanto dinheiro público, ainda tenham que cobrar ingresso ao preço que se cobra, porque não é um ingresso simbólico. Tiradentes faz de graça e ainda com o diferencial de fazer em um lugar que não tem sala de cinema. Isso compõe uma certa singularização da Mostra de Tiradentes com relação a outros festivais. E é uma singularização que eles querem também na programação.

Qual a ponte que você faz entra a crítica de cinema e a curadoria? Porque, como numa critica você tem de fazer escolhas pra colocar o filme em crise ali na hora...

Cléber: Acho que é a mesma coisa, e ao mesmo tempo é completamente diferente. É a mesma coisa no sentido que a operação é a de tomar contato com uma totalidade de produção disponível, para tentar entender esse conjunto de filmes de um determinado momento histórico de seu país e tentar identificar alguns filmes que se conectem dentro desse momento – com a diferença de que não me interessa como curador pensar se o filme é bom ou ruim, porque a idéia de curadoria não é uma curadoria canônica, mas de tentar entender como esses filmes são expressivos de seu momento ou não. É um trabalho mais de entendimento, de análise do que de julgamento. E mesmo nas escolhas do que entra e do que não entra isso está em jogo, mas é claro que os filmes que me chamam mais a atenção acabam entrando – isso é inevitável porque estou trabalhando com um universo de menos de seis meses de produção, de filmes que tiveram uma primeira exibição a partir de agosto, por isso eu não tenho tantas dúvidas. Esse universo de 16  longas atende a uma produção que ficou pronta nos últimos quatro meses, portanto é quase impossível que filmes interessantes que não me atendam pessoalmente ou que não se configurem dentro desses painéis que montei, não entrem.

O Cheiro do Ralo, por exemplo, é isolado dentro do segmento que se chama “Poder e Degradação”. Ele ia compor esse segmento com o Baixio das Bestas, do Cláudio Assis, mas este foi para Roterdã, portanto, ele ficou sozinho. É o tipo de filme que se poderia cortar porque não dialoga com nada na programação, mas ele tem uma expressividade inegável: parte da crítica levanta bastante o filme, ele ganhou um prêmio e eu não poderia puni-lo porque ele não se comunica com os outros, acho que ele expressa algo de nosso momento, não seria justo deixá-lo de fora. A diferença da curadoria com o trabalho crítico é essa, mesmo que eu tenha que fazer seleções e chegar a 16 filmes, eu passo por aqueles que avalio de uma forma mais positiva, mas também penetra por uma série de filmes que não necessariamente fazem parte da minha preferência, porque se for só depender da minha preferência rigorosa não se tem 16 filmes. Nesse ponto, o curador é diferente do crítico. O que deve ser uma justificativa aos filmes que não entram, que é a maioria em qualquer lugar. Os que não entram, para o bem ou para o mal, não me desafiaram, provocaram, estimularam na reflexão estética sobre eles e acho que eles não tinham tanto material pra essa reflexão estética dos debates, ou eles não eram tão expressivos dentro desse painel de contexto, porque como a Mostra não é competitiva, trabalha-se muito mais com a idéia de painel do que de seleção. Não dá pra ter 16 longas impressionantes em quatro meses de produção em lugar nenhum do mundo.

Valente: O critico também "seleciona" e tenta criar um panorama com o seu olhar, mas o trabalho do crítico é sempre mais reativo, enquanto o do curador é ativo. Eu acho que poder fazer as duas coisas é o ideal. O curador tem uma missão importante que é a de criar uma amostragem, e dela fazer com que saia uma afirmação. Eu acho que no papel de curador (e mesmo, cada vez mais no de crítico) importa entender como estes filmes dialogam uns com os outros, com o cinema hoje e com o que eu entendo de cinema. Por exemplo, num festival como Cannes, seleciona-se 10 curtas de 3000 inscritos do mundo todo. Num caso como este, não se pode ter outro critério que não a escolha do que pareça excepcional para quem seleciona. Em Tiradentes, escolhemos em torno de 35, 40 curtas a partir de cento e tantos inscritos. Então, já se nota aqui um desejo de ser mais panorâmico do que um festival de excelências. Num caso como este, acho tão importante o meu gosto e do Cléber quanto ver o que o coletivo dos filmes nos indica ser o curta brasileiro em 2006/2007, para que o panorama que seja montado possa falar de nós como curadores, mas também dos curtas como um todo.

A impressão às vezes é que o curador é um ser invisível que simplesmente seleciona os filmes. Tendo isso em vista, como continua o trabalho do curador depois das "escolhas"?

Valente: Dentro do que eu e Cléber idealizamos e poderemos fazer em Tiradentes, através dos debates dentro da mostra, mas também com textos no catálogo e na Cinética depois da Mostra. Também acho que o trabalho continua nos realizadores que, vendo seus filmes em determinado contexto e com os diálogos que tentamos estabelecer na programação e nos debates, levam questões adiante para a continuação de seus trabalhos.


Parte 2: Critérios de curadoria e os longas

Parte 3: Os curtas, os debates e Minas Gerais em destaque


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