Entrevista com Luc Moullet

março 11, 2013 em Colaborações especiais, Em Campo, Entrevistas

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Cinema e crítica – uma conversa com Luc Moullet e Antonieta Pizzorno
por Francis Vogner dos Reis (colaboração especial)

A entrevista realizada com Luc Moullet para a revista Cinética, em Fevereiro de 2011, na ocasião da Mostra Luc Moullet – Cinema de Contrabando, sofreu problemas de percurso desde seu início. Foram problemas de ordem técnica (o equipamento de som não funcionou) e de entendimento (nós não falávamos francês e ele não falava português, como o casal de Capito?, duas personagens que se cortejam sem falar a mesma língua) e mesmo de transcrição/tradução (demorou dois anos exatos para vir à luz).

Havia uma equipe com duas câmeras e um equipamento de som. O hotel não permitiu que a entrevista fosse realizada no hall, mas não se opôs que ela acontecesse no quarto em que Luc Moullet e sua esposa, Antonieta Pizzorno, estavam hospedados. Muito generosamente, e sem cerimônia, o entrevistado não hesitou em pedir para que todos subissem ao quarto. Ao chegar ao andar, Luc Moullet errou todas portas e parecia não se lembrar qual era seu quarto. Só acertou na última tentativa, pois Antonieta abriu a porta antes que ele batesse, e reclamou da demora. Parecia uma das performances que vemos em seus filmes. Aliás essa dicotomia entre o supostamente autêntico e o francamente encenado (entre o homem e seu personagem/criação) foi uma polêmica na entrevista e motivo de divergência entre o casal que – mais uma estranha coincidência (ou não) – reproduziu nessa discussão uma das cenas finais de Anatomia de uma Relação, filme que dirigiram em 1975. A língua também foi uma variante deste imbróglio, porque a intérprete se esforçava para resumir minhas longas perguntas ao cineasta e Antonieta se esforçava para compreender literalmente o que eu perguntava (ela entende espanhol) e, não raramente, interpelava o cineasta para que ele respondesse direito às questões. Por mais que Luc Moullet negue as semelhanças, um cineasta nunca pareceu tão próximo e parecido (e integrado) à sua obra. O personagem/ator é tão formidável (e incomum) quanto o crítico e o cineasta. Na verdade, não pareciam haver fronteiras muito claras entre um e os outros.

// tradução de Luiz Soares Júnior //

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Cinética: Eu queria falar de seu trabalho como crítico e realizador, e de como ambos se constituem de uma mesma característica iconoclasta. Fale sobre este processo iconoclasta de seu trabalho, através do qual você apreende e relê a tradição e a técnica cinematográfica de forma livre e dialética.

Luc Moullet: Nem sempre meus filmes são iconoclastas, mas com freqüência sim. Fiz filmes nada iconoclastas, como O Fantasma de Longstaff, ou O Litro de Leite, filmes mais tradicionais; ou mesmo Gênese de uma Refeição, do gênero militante. Por outro lado, há filmes extremamente iconoclastas, como o curta La Cabale des Oursins

Não por acaso, você é o único crítico-cineasta da geração dos Cahiers du cinéma que filma com freqüência e ainda curtas-metragens.

Moullet: Eu também faço longas metragens; fiz três há pouco tempo. Mas quando as pessoas vêem que você é crítico e cineasta, elas acabam por desvalorizar um ponto, ou não levá-lo em consideração.

É que hoje os curtas, principalmente no Brasil, são considerados meios para realização de longas. E você nunca abandonou este trabalho que aqui é considerado de iniciantes.

Moullet: Comecei fazendo críticas, depois curtas-metragens e finalmente longas. Mas não estou certo de ter tido sucesso como cineasta, então continuo escrevendo críticas porque pelo menos neste ramo tenho certeza de trabalhar bem. Ao contrário da realização de filmes, é um ramo com pouca concorrência. Então, há muita gente que execra meus filmes, mas gosta de meu trabalho como crítico. A Revista Positif, por exemplo.

Há diretores que alternam curtas e longas, como Jean-Marie Straub, Godard, Agnès Varda. Então, passa por algo normal, que não choca as pessoas, como um escritor que escreve romances e novelas também, como Joyce ou Lewis Carrol. Relacionando aqui meus curtas e minhas críticas, e deixando claro que para mim não há exatamente uma separação neste domínio, em um de meus últimos curtas, Balance et Cécité (Equilíbrio e Cegueira) eu quis fazer um estudo da figura do “delator cego” no cinema, através das obras de Lang, Buñuel, Carné, Pasolini.

Mas os cineastas citados – Straub, Varda, Godard – criaram um micro-sistema de produção que lhes possibilitou alternar a criação destes longas e destes curtas, enquanto que outros cineastas da geração deles, como Truffaut ou Chabrol, estavam ligados a um esquema de produção maior que não permitiam esta flexibilidade, esta alternância.

Moullet: Chabrol também fez pequenos filmes… filmes para televisão, baseados em Maupassant, de meia hora ou cinqüenta minutos. Esqueci de lhe dizer, ainda me referindo à relação entre curtas e minhas críticas, que eu analiso ao final do meu curta Obra-Prima? um trecho do Viagem à Lua, de Méliès. Então, para mim também é uma crítica.

Obra-Prima? (2010), de Luc Moullet

Obra-Prima? (2010), de Luc Moullet

Onde o trabalho de crítico e de cineasta se encontram e se distinguem, se diferenciam? Porque, em seu trabalho, a crítica e a realização são membros, são extensões de um mesmo corpo…

Moullet: Eles não necessariamente se diferenciam. Neste filme de que falei, o Balance et Cécité, temos basicamente a forma de um artigo. A crítica se adequa bem a um filme documentário, porque tanto quem escreve quanto quem realiza um filme documental tem de se ater a uma realidade já existente, quer seja a realidade que o filme vai estudar – o meu filme no caso, que se debruça sobre filmes de outros diretores -, quer seja a realidade social ou econômica com que o documentário terá de se haver. Enquanto que no filme de ficção, temos mais espaço para a imaginação.

Sim, mas Godard continua a fazer este trabalho crítico também…

Moullet: Godard dizia há quarenta anos: meus filmes são documentários sobre Ana Karina.

Seus textos têm a virtude da clareza e, em um mesmo movimento, questionam a obscuridade teórica. Até que ponto os estudos analíticos e acadêmicos sobre cinema tem atrapalhado nas últimas quatro décadas o exercício crítico?

Moullet: Os estudos acadêmicos não captam nada muito certo, porque eles buscam estabelecer um sistema, e acabam não captando aquilo que se mantém à margem do sistema, que recusa se enquadrar nos “estudos de caso” do analista. É o caso do fracasso de um estudioso como Deleuze, que se empenha em colocar etiquetas e definições em tudo… “imagem-tempo”, “imagem-pulsão” são, por exemplo,  etiquetas… quando na verdade, o cinema é algo de muito mais amplo. É claro que há os recortes possíveis a serem feitos, por exemplo por linhas temáticas. Sabemos que grandes filmes da metade do século XX foram feitos a partir das relações entre senhor e criado; Buñuel, Renoir, Lubitsch, De Mille. Ou então, os diversos filmes realizados sobre cidades soterradas, soterradas por construções de barragens: Wild River, de Elia Kazan; Poema do Mar, de Alexander Dovjenko; Still Life, de Jia Zhang-ke.

Última questão sobre crítica, pergunta de um amigo crítico de São Paulo, chamado Cléber Eduardo, sobre aquele seu texto sobre “Da inutilidade da linguagem cinematográfica”. Como esta questão da consciência da linguagem assumida pelos filmes, em oposição à arte, é aplicada a cineastas como Godard?

Moullet: Godard sempre tentou refutar as bases da linguagem cinematográfica. Ele não a refuta sempre, mas ele a confronta. Eu mesmo não me considero um grande cineasta, porque sempre respeitei muito a linguagem cinematográfica.

Francis. Agora sobre os filmes – o método. Eu queria saber um pouco deste trabalho em conjunto entre você Moullet e a Antonieta Pizzorno. Eu vejo que ela acaba sendo uma espécie de mediadora. Queria saber como isso funciona no trabalho efetivo da filmagem.

Moullet: Trabalho de desemprego? (risos) (n. do tradutor.: Jogo irônico de palavras entre “travail de filmage” – trabalho de filmagem” – e “travail de chômage” – trabalho de desemprego).

Antonieta Pizzorno: Nos filmes, eu apenas faço o que ele me pede para fazer como atriz. Mas na vida em comum há espaço para discussões que podem se estabelecer em relação ao que ele me pede. Com freqüência, dialetizamos as coisas. E este foi um pouco o ponto de partida de Anatomia de uma Relação – no nosso cotidiano, eu falo pra ele o que não concordo, nós discutimos. E por exemplo, a última cena da Terra da LoucuraTerre de la Folie (n. do editor – cena em que Pizzorno se insurge, de maneira bastante cômica, contra o discurso de Moullet como narrador do filme e termina por tentar empurrá-lo de cima de um morro) – foi efeito de uma discussão que tivemos em casa.

Terra da Loucura, de Luc Moullet

Terra da Loucura, de Luc Moullet

Antonieta falou em dialética. Pois é isso: acho que o cinema dele é um cinema sobre dialética.

Pizzorno: Talvez. Não sei se, fora as discussões comigo, podemos dizer que teu cinema é dialético.

Moullet: Nós do cinema – pelo menos em relação a tudo de que gosto – sempre fomos pró-Hegel e contra Kant.

Você é um cineasta que filma muitas vezes em primeira pessoa. Podemos ver que você intervém, se expõe e assim cria uma relação de seu olhar com o que olha. Me parece que os seus filmes em que as contradições da realidade do cinema aparecem com mais força são aqueles em que vocês usam suas próprias imagens- tanto você, Moullet, quanto Antonieta Pizzorno. Vocês concordam? Por que?

Moullet: É algo muito freqüente nos dias de hoje, com cineastas que fazem documentários – caso de Rabin em Israel, Marcel Ophuls e Pierre Carles na França, Michael Moore nos Estados Unidos, Nani Moretti na Itália… portanto, é algo muito comum hoje, que corresponde a uma linha autobiográfica na literatura, gênero “Confissões”, de Jean-Jacques Rousseau, os “Ensaios” de Montaigne. É menos comum no cinema, mas a cada vez torna-se mais freqüente.

Mas eu vejo, por exemplo, uma diferença na imagem que você coloca de si em seus filmes e o Michael Moore. A imagem do Moore ajuda a reforçar a tese dele. E a sua imagem mostra com mais força as contradições do cinema e da realidade. A imagem de Moullet é um princípio de contradição.

Moullet: Bem, adoro mostrar todos os aspectos da realidade, que são com freqüência muito contraditórios. Em Gênese de uma Refeição, filme que trata da exploração do terceiro mundo pelos países ocidentais, mostrei um pobre trabalhador que tinha um empregado. E isto é contraditório – que alguém de muito pobre queira ter um criado. Me divertia mostrar as contradições da vida.

Pizzorno: Eu estava tentando refletir aqui sobre o fato de que quando ele se mostra diante da câmera provoca uma distância entre o que se mostra e quem se encarrega de mostrar, porque quando Luc aparece é sempre “enquanto ele mesmo”. Enfim, estou enganada?

Moullet: Nem sempre, pois por exemplo nos filmes de ficção eu me escondo sob os personagens femininos.

Pizzorno: Qual?

Moullet: Por exemplo: na Comédia do Trabalho, Sabine Haudepin sou eu.

Pizzorno: Sim, mas neste caso você se encontra atrás da câmera. Quando estás diante da câmera, qual a relação entre o que queres mostrar e você? Enquanto que com Michael Moore, ele está presente no quadro para sustentar uma tese… para reforçá-la. Você, quando aparece, provoca sempre outra coisa.

Moullet: Sim, acrescenta-se algo de humorístico. Muitos dos filmes de que falei falam da busca do jornalista em sua relação com a realidade. O filme progride à medida desta “busca”, desta pesquisa.

Pizzorno: Sim, mas por exemplo no Prestígio da Morte… (n. do tradutor: No filme, Moullet, parte para o Sul da  França para pesquisar a região com vistas a um próximo filme, e encontra o cadáver de um cineasta famoso, com quem troca o passaporte, para que a confusão com o ilustre nome lhe permita difundir melhor suas obras e patrocinar seu próximo filme).

Moullet: É uma ficção!

Pizzorno: Não, não. Porque você diz que no Prestígio da Morte, trata-se de um personagem, mas não é verdade. Ninguém acredita nisso!

Moullet: Sim, mas o personagem é muito diferente de mim, porque quer aprender a nadar bem. Enquanto que eu, pelo contrário, não estou nada interessado na idéia de saber nadar.

Pizzorno: Ah, não, não!

Moullet: Neste filme, eu sou um diretor autoritário, por exemplo, enquanto que na verdade tendo a ser um diretor dócil, simpático.

Pizzorno: Não, não, tu não respondes de forma certa, direta esta questão. Tu estás enrolando. No Prestígio da Morte, esta questão é evidente, é clara.

Moullet: Não, porque, no caso, a idéia correspondeu no máximo a uma projeção da minha cabeça, não se trata de identificação. Aliás, trata-se ali não de um roteiro meu, mas de Cecil B. De Mille. (n. do tradutor: Inspirado em The Whispering Chorus, de 1917).

O Prestigio da Morte, de Luc Moullet

O Prestigio da Morte, de Luc Moullet

Eu vejo, por exemplo, que nestes filmes em que a imagem dele – como a do Tati, a do Jerry Lewis, de Buster Keaton e outros cineastas cômicos – aparece diante da câmera e gera uma diferença… é algo distinto. Nós, ao assistirmos o filme, percebemos que, mesmo quando desempenham papéis de personagem – quando não aparecem como eles mesmos –, é diferente. Existe uma relação entre ambas as funções – estar atrás e à frente, atuando e dirigindo? Minha impressão é de que os filmes em que ele aparece, que lidam com a imagem dele, são mais fortes do que os filmes em que ele está apagado.

Moullet: Sim, porque torna a coisa mais pessoal e cômica, sobretudo num filme documentário. É algo novo, diferente.

Sim, mas o que acho é que são justamente teus filmes mais cômicos…

Moullet: Às vezes meus filmes têm um lado de “filme de tese”. Raramente, mas têm. Em Toujours Moins (Sempre Menos), eu denuncio a mecanização e diminuição dos postos de trabalho. Os espectadores viram com justeza que se tratava de um filme contra o progresso. E sou realmente contra a noção de progresso. Acho que o que o se chama progresso é um parênteses na história da Humanidade. E quando vamos esquecer isto?

Pizzorno: Acrescentando a isto, mesmo no cotidiano Luc é uma pessoa sempre meio deslocada, diferente; ele não tem o mesmo comportamento que a média das pessoas. Diante da câmera, mostra-se esta “diferença” (n. do tradutor: “décalage”), esta particularidade, e isto provoca este efeito de que ele fala.

O humor de seus filmes – sejam os documentários sobre cidades, as crônicas da vida íntima ou os filmes sobre as contradições da vida capitalista – transfiguram o real com o humor. Me parece que o humor é a maneira mais interessante de tratar o mal-estar da civilização, de Chaplin, passando por Tati e Jerry Lewis até você. Acredita que o humor no cinema está em crise hoje em dia? Este humor transgressor, digo.

Moullet: O grande período do humor foi o período dos anos 10 aos 30, no fim dos anos mudos, e talvez ele tenha diminuído quando os filmes se tornaram falados e de maior duração. Porque geralmente a metragem dos filmes de humor é muito curta. O espectador tem dificuldade de suportar um filme de humor por muito tempo, por três horas digamos, porque já não tem forças para rir. E nem o diretor tem mais idéias. Então, com a diminuição de filmes curtos, houve menos humor no cinema.

Para mim, os anos 20 foi o período dos filmes mais transgressores. Se quiser discorrer sobre isso, eu completo depois. Minha impressão é que a falta deste humor transgressor mostra um estado de coisas mais apático.

Moullet: Mas ainda há cineastas que trabalham no registro do humor, como Blake Edwards, Nani Moretti em Palombella Rossa, Coline Serreau na França. Hoje, a tendência é fazer filmes em aparência muito sérios, muito sisudos. Há muitos realizadores conhecidos que não possuem um pingo de humor, como Tarkovski.

É possível ver em seus filmes o que você ama e o que você odeia. Você acha que a incapacidade de declarar seus amores e seus ódios em boa parte dos cineastas atuais é índice de uma crise política?

Moullet: Pra que os críticos tenham o que fazer da vida, é preciso sempre que eles descubram cineastas novos, interessantes; ao mesmo tempo, é preciso uma certa mistura – que tenham também cineastas pouco interessantes, como Almodóvar, mesclados a alguns realmente interessantes, porque se o crítico falasse apenas dos interessantes estariam todos desempregados. Porque há muitos poucos cineastas sobre os quais podemos dizer alguma coisa. Na França, por exemplo, fizeram retrospectivas sobre cineastas como Mitchel Leisen, Gregory la Cava – que às vezes fizeram filmes interessantes –, mas há, por parte dos críticos em geral, uma necessidade de serem reconhecidos, de chamar a atenção para eles, assinalando cineastas pouco reconhecidos ou esquecidos. Geralmente, é uma espécie de jogo de azar, pois os críticos jamais sabem o que acontecerá com os filmes de que falam: por exemplo, falam mal de três cineastas, falam bem de outros três; o que der certo no futuro, eles dirão: ah, não avisei? É uma forma de se proteger. Ou então, para darem-se ares – a ilusão da objetividade – de que estão certos e definitivos, escrevem em períodos bem curtos.

Muitos críticos são administradores de valores cinematográficos. Queria falar um pouco sobre seu método, seu micro-sistema de produção. Seu filme me lembra uma frase, recorrente no cinema brasileiro, que fala em transformar a falta de recursos em elemento de criação. Este seu método artesanal é importante, pois criou uma obra com grande número de filmes. Por outro lado, há uma dificuldade na circulação desses filmes; os curtas, os médias não estão num esquema industrial que lhes permitam uma boa distribuição. Então, ao mesmo tempo em que temos quantidade generosa de filmes, não temos acesso a eles.

Moullet: Não é algo exclusivo meu. Há vários outros cineastas franceses que trabalham com poucos meios e conseguem fazer filmes com Alain Delon e Catherine Deneuve e Romy Schneider, mas que trabalham no mesmo espectro limitado que eu, talvez porque gere algo mais interessante. Jean-Marie Straub produz filmes que não custam muito caro, assim como Eric Rohmer, à parte outros filmes mais caros. No começo, é limitador em termos de público, mas melhora com o tempo. Digamos que, em relação aos meus filmes, eles acabam tendo um certo retorno econômico ao fim de 24 anos. Há alguns filmes que chegam agora ao Brasil, mas eu os fiz 50 anos atrás.

E chegam pela primeira vez, em quase cinqüenta anos, né? (risos). Falando um pouco sobre os filmes, minha impressão, é que eles são bastante pouco usuais, mas muitos são filmes de encomenda, para a TV, por exemplo. Muitos cineastas ainda hoje acham que fazer filmes de encomenda – assim como documentários institucionais – é algo que limita a criação, enquanto que no seu caso é o contrário. Ao mesmo tempo, você não está no grande sistema de Hollywood; está numa indústria onde há espaço para burlar e ser um contrabandista. Queria que você falasse um pouco deste trabalho, a partir destes filmes de encomenda.

Moullet: É por isso que muitos diretores americanos foram para a Europa rodar romances, como Robert Kramer, Samuel Fuller, Jules Dassin… sim, sobre os filmes de encomenda: me encomendaram fazer um filme sobre a barata, e eu tentei fazer o filme mais original que pude (n. do tradutor: Nous Sommes Tous des Cafards, 1997). Também sobre o Centro Georges Pompidou, em Paris, um filme sobre a noção de obra-prima, que se chama Obra-Prima? (Chef d’oeuvre?)… fiz também um filme sobre a passagem na França do poder de direita ao Socialismo. De vez em quando estas coisas me divertem; eu as trato de forma mais convencional. Fiz também um filme de encomenda sobre Godard. E um outro sobre a vida no Le Havre. E alguns outros…

Nous Sommes Tous des Cafards (1997), de Luc Moullet

Nous Sommes Tous des Cafards (1997), de Luc Moullet

Já que você não escreve com tanta frequência, o que te agrada e desagrada no cinema hoje – cineasta, filme, discurso…

Moullet: O que amo são filmes que respeitam o tom da vida real e cotidiana, e que são fundados sobre um espectro limitado… Kevin Smith, de que gosto muito, Isabelle Prime… Isabelle Prime em particular, pois ela roda em digital e tira partido de todas as vantagens do digital, como Godard também em Filme Socialismo. Ou Jorge Furtado, que pra mim é o cineasta brasileiro modelo. O que não gosto – e escrevi um artigo contra ele – é Almodóvar, que pra mim é um enrolador. Porque seus filmes são mal concebidos e mal encenados. Neste Tudo Sobre Minha Mãe, ele tenta encenar o jogo do melodrama, manipulando a emoção do espectador, mas ao mesmo tempo coloca comportamentos tão aberrantes que impossibilita qualquer emoção por parte do espectador, e destrói o filme.

Pizzorno: Ele busca a identificação do melodrama, mas com elementos de tal modo bizarros que não dão em nada.

Moullet: Sim, penso que no futuro será um cineasta completamente esquecido, como Pudoivkin ou Feyder que desapareceram completamente das telas.

Têm alguns cineastas franceses que fazem sucesso aqui… um que acho que só faz enrolar, como Christophe Honoré, por exemplo.

Moullet: Honoré é um cineasta da moda, fez alguns filmes péssimos, mas ainda assim é interessante, porque se funda sobre os atores e sobre a humanidade dos personagens. Não gosto muito da Sentinela – Arnauld Desplechin –, mas gostei muito do seu primeiro média-metragem, La Vie des Morts, Ester KhanReis e Rainha gosto muito, porque aí ele achou um “motivo central”. E o último, com Deneuve e Amauric (n. do tradutor: Um Conto de Natal) é admirável.

Você acha o Kechiche “tudo isto” que estão dizendo lá na França?

Moullet: Sim, gosto muito de dois de seus filmes, A Esquiva e O Segredo do Grão. Não estou nada convencido com seu último filme, mas os precedentes são admiráveis. Seu Vênus Negra me parece um erro de percurso, porque, embora tenha uma idéia de base, o filme não traz nada de mais além disso. Há também Michel Leclerc, cujo Os Nomes do Amor é admirável, e que representa uma pequena revolução, como Acossado em outros tempos.

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Agradecemos à produção da Mostra Luc Moullet – Cinema de Contrabando, em especial a Rafael Sampaio, Maria Clara Escobar e Francisco César Filho, ao crítico Cleber Eduardo, e também à equipe que gravou as imagens, os sons e ajudou na elaboração das perguntas: Gabriela Wondracek Linck, Allan Peterson dos Reis, Katherine Weber, Olivia Pedroso e Caio Campos

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