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Conversa ao redor de uma nova cinefilia | Parte 4 – Pontos de fuga

Última de quatro partes da conversa da redação da Cinética a partir do texto “Por uma nova cinefilia”, de Girish Shambu. A conversa ocorreu em modo anônimo, via documento compartilhado online, entre 24/03 e 08/04 de 2020. Participaram Calac Nogueira, Fabian Cantieri, Francisco Miguez, Hannah Serrat, Ingá, Julia Noá, Juliano Gomes, Maria Trika, Pablo Gonçalo, Raul Arthuso e Victor Guimarães. A edição do material bruto foi realizada por Calac Nogueira, Ingá, Juliano Gomes e Victor Guimarães.

Parte 1 – Binarismos e cisões

Parte 2 – Os filmes “problemáticos”

Parte 3 – Autorias e políticas

Tradução de “Por uma nova cinefilia” (Girish Shambu)


– Quando o texto se limita a um diagnóstico excessivo e individual da situação sem conseguir ensaiar gestos mais coletivos, ele esbarra em uma pergunta: como criar comunidade com tantas fraturas expostas? O vínculo comunitário na discussão identitária tende a ser mais automático, o que nos acomoda a não se esforçar para lidar com um campo heterogêneo, com a irredutibilidade da diferença.

– Você formulou o que me parece ser a interrogação-chave do nosso contexto.

– Sobre isso, penso que o caminho seja a abertura de espaço. Para as fraturas, para os buracos para ausências e até mesmo para as repetidas presenças. Quando algo ocupa e habita um espaço, é visto, posto em diálogo, ganha corpo e voz de uma forma mais institucional nesses lugares hegemônicos (e não só), as transformações começam. O caminho se constrói andando, sabe? Mais importante do que uma excessiva preocupação com a forma que as coisas sejam planejadas é, talvez, uma atenção e disposição para que as coisas comecem, tornem-se ações e então, a partir disso, desvendemos suas formas.

– Ação é pensamento!

– Gosto quando cê diz da crítica como visão de mundo + corpo a corpo. Acredito que isso é um caminho a ser retomado. Quando li o texto escrevi isso aqui: “penso na crítica e a cinefilia de corpo a corpo, sabe? O corpo é trajetória de quem assiste, escreve com aquilo sobre o que se debruça, somado ao que produz – a palavra, a crítica, o afeto e a ideia (e cada subjetividade – junto ao lugar de onde fala e sua vivência de mundo – cria um encontro único que possui a força de influenciar, desconstruir, abalar e recriar outros e um ‘todo’). Me interessa pensar na relação do cinema como uma suruba ou, no mínimo, um ménage. Olhar para o corpo mesmo, pensar no gosto que a carne e o sangue tem (refiro-me a olhar para a estrutura desde o lugar que se ocupa, a como o filme se apresenta ao mundo e como o mundo devora ele. E aí pensar em como vomitar isso de uma forma que a excreção torne-se um monstro, um corpo outro que devora e cospe na nossa cara e na do filme de volta). O afeto, para mim, faz mais sentido dessa forma do que na pira de falsas e belas revoluções. Ô, to ligada que falo meio bruto, mas é com respeito, até porque admiro muito as ideias construídas, mas, para mim, elas precisam ser também gesto (ou um convite à). A questão é uma outra postura de corpo perante ao cinema (e ao mundo).”

– Dá pra comer o cânone até para vomitar algo diferente, né?

– Vai que dá. Mas eu ainda me pergunto sobre as formas de sociabilidade que revelam hegemonias e se elas podem também se apresentar nas interações de “uma revista online de cinema”, sabe? Em algum ponto podemos enxergar nossa maneira de lidar coletivamente com os filmes aqui a partir de uma chave racial, por exemplo?

– Certeza que sim. Exemplos são vários de hegemonias e contra-hegemonias. Como: numa perspectiva racializada, o repertório de obras abordado pela revista talvez não contraste radicalmente com seu entorno hegemônico, do ponto de vista de olhar pra quem dirige os filmes. Entretanto, as chaves conceituais muitas vezes contrastam, a ideia do que é cinema. Seria preciso fazer esse trabalho retrospectivo objetivamente e não de orelhada. Há mais de uma década, por exemplo, que há textos aqui na Cinética que não trabalham sobre a forma moderna da divisão sujeito/objeto. Se a gente pensar, como a Denise Ferreira da Silva, que todo esse arsenal moderno de ideias é racial, temos um cruzamento complexo aqui. O mundo é emaranhado, como ela mesma diz. A racialidade atua multifocalmente, nas presenças e nas maneiras. Ao que parece, o capitalismo prefere fingir que atua pelas presenças do que pelas maneiras. Enfim: o trabalho é duplo e o diagnóstico é menos simples do que parece.

– Nesse caminho, é preciso colocar a pergunta sobre quais são os obstáculos que impedem mulheres no trampo da crítica, qual a forma real disso, onde incide, e como trabalhar sobre esses processos, e também o mesmo em relação às pessoas negras. De certa maneira, já que não se ganha dinheiro aqui, se oferece interlocução atenta, certo? A “troca atenta”, do ponto de vista do desenvolvimento das ideias e de material conceitual, o machismo faz se concentrar nos boys e suas rodas, não se imagina outros corpos nessa. Isso se “naturalizou”. O que gera esse efeito altamente destruidor, produzindo falsos sinônimos, que tem também a ver com o texto do Shambu, que é uma certa aversão a expressão de certas complexidades, a um uso de vocabulário não hegemônico ou direto. Isso me parece uma vitória da hegemonia, entende? Não amo a palavra “intelectual”, ela produz uma separação na qual não acredito, mas o anti-intelectualismo é algo fácil de entender e de perceber os danos. “Trocar uma ideia” não significa substituição, mas uma prática de atenção mútua, reposta interessada e possibilidade de contágio. O bolsonarismo, por exemplo, requer novas formas de entendimento, uma movimentação do intelecto, portanto. Ele apresenta um problema no jeito de “fazer sentido”.

– O Édouard Glissant curte os rizomas do Deleuze e Guattari, a Denise Ferreira da Silva e bell hooks dialogam intensamente com Foucault, o que quero dizer: isso não são fatos ameaçadores. Isso ajuda quem quer estudar estes autores, fertiliza caminhos, elucida esse trânsito e os hackeamentos. Dissolve os adanismos. É um tiro no pé temer isso, porque se o não hegemônico não está plenamente inscrito nas línguas correntes, necessariamente ele será algo que precisa ser explicado, pensado, cujo vocabulário precisa ser inventado… Inventar isso é a coisa mais importante e não começou com a criação do Twitter. O que estou dizendo: o feminismo, o antirracismo, por exemplo, são materiais conceituais altamente complexos. Exigem revirar as categorias violentamente, ao lado de uma reforma das práticas. Então, quando fica essa coisa de “quem é, é”, “quem é, sabe”, me parece ser algo que diminui a intensidade fértil da coisa. Tem que soltar, as palavras, os delírios, as viagens, e as cabeçudices também. O que Grande Otelo e Antonio Pitanga fizeram no cinema brasileiro é matéria conceitual. A maneira como articulavam signos corporais, faciais, de tempo, entonação, a maneira como às vezes dobravam a aposta da estereotipia… Isso é altamente complexo! Tanto que é pouco sacado. Enfim, viajei aqui sobre a coisa da hegemonia, sorry.

– Vejo sentido.

– Existe trabalho. Há textos e filmes. São materiais imensamente multifacetados, que produzem uma série de traços, signos, matizes, a partir dos quais podemos chegar a lugares extremamente inesperados em relação às suas próprias origens. Fábio Andrade me falava de um comentário de Fred Moten numa aula dizendo que importa menos  o que os inimigos fizeram com que o é nosso, do que o que nós fazemos com as armas deles. É preciso que no mínimo se estranhe a circulação da ideia de propriedade dentro da crítica cultural sem com isso ignorar que a riqueza do hemisfério norte é quase toda constituída por saques coloniais e genocídio. Na maioria das culturas afrolatinas a ideia de propriedade não existe ou é irrelevante. Portanto, como diz Audre Lorde, as armas do inimigo são um empecilho para chegarmos em outros lugares. Pegando novamente o Moten, ele diz no livro Black & Blur que o trabalho de reparação é prática, e a ênfase dele deve ser justamente nesta dimensão e não na suposta reconstituição de uma origem. É um fazer, uma lida, não uma regressão nem exatamente uma conservação inerte.

– Isso me pega. A lida com as armas também não quer dizer mais uma recusa de sua existência e força. Identidade, propriedade: existirá uma forma de trabalhar com elas sob rasura? Vejo que é mais fácil para alguns sujeitos abdicar “integralmente” desses termos. Mas se eles não cessarão de operar no mundo, talvez existam forma mais astutas de lidar com sua existência a partir da negação.

– Ainda digerindo esses dois comentários. São questões que me tocam.

– Recordo-me de uma orientação que tive para um filme guiado por um (quase) mantra na negativa. Meu orientador sempre me questionava sobre a escolha do uso de uma negação, pois sempre trata-se de uma afirmação também. Outra forma de apego à ideia. Acredito que a negação tenha, sim, suas potências, no entanto não seria o momento do salto? De outros terrenos e formas? Digo isso, entendendo e acreditando que é impossível, desinteressante e infértil abandonar por inteiro o que já foi. Refiro-me ao salto como uma transformação. Não é abandonar o que já foi. Mas buscar ver de outras formas, suspender seus significados e dogmas por outros, refazer uma linguagem com as mesmas palavras, mas com um pensamento e postura outros. Em alguns momentos, sinto isso no desejo do texto (mesmo acreditando que, em sua forma, ele diga mais do velho do que de algo novo).

– É que essa ideia do “novo” já ficou velha. Me animo mais em saber como é que certas obras reinventam o terreno de onde partem quase que por acaso, uma contingência como a que gera Alma no olho (Zózimo Bulbul, 1973). 

– Sim! Lembro de alguém que mencionou Alma no olho e a causalidade do seu processo aqui na conversa. Vocês conseguem imaginar quais filmes em 2020 evocam estratégias presentes nele? Me pergunto por onde buscamos essas obras.

– O Kbela (Yasmin Thainá, 2015) é o caso mais evidente. Esse mote do corpo frontal à lente, essa confrontação, é um signo altamente enraizado na história dos corpos subalternizados tornados imagem, né? É sempre um instante onde uma expressão de olhar pode se plasmar numa arma eterna, fixada. Seria preciso entender mais o contexto do filme do Zózimo, sua impropriedade conjuntural. Mas ali me parece que ele liga certa produção radicalmente experimental da época com uma discussão super terrena e palpável, ele desfaz o antagonismo entre as correntes, o que é historicamente crucial. Abriu uma estrada cujo tráfego certamente não é devidamente documentado, mas que, na sua atualização recente não conjuga frequentemente as mesmas características. Quem quer fazer filme como Coltrane faz música, de verdade, em termos de técnica, procedimento, opacidade? Não é coisa de entender, não sintetiza hashtag nem engaja seguimores. O filme é também um estudo técnico, sobre o contraste, a latitude da película, sobre a própria branquitude da fotometria e das emulsões. Há uma negritude experimental fora de onde se espera, fora dos circuitos de “respeitabilidade” (onde acho que o Alma estava na “sua” época): no Youtube, no “Q q pega zé”, nos vídeos do Kaique Brito, na Leona Vingativa, nos meninos do Fundo de Quintal OFC, naquela performance épica do “Me libera, nega” do Mc Beijinho… É a força do impróprio, dessa presença instável.

– Vejo aí um ato crítico-cinéfilo muito mais a fim a dar rasteiras sensíveis a qualquer hegemonia do olhar.

– Concordo. Essa ideia de rasteiras sensíveis me parece uma boa coisa a ser incorporada. Não acredito num completo cancelamento, mas também seguir cegamente essa cinefilia me incomoda profundamente. A experiência feminina, LGBTQ+, negra e periférica de cinefilia sempre passa por um não reconhecimento (com a imagem, a forma e principalmente, o gosto) e esse amor pelos filmes somente sobrevive pela persistência e, principalmente, por esse gesto de rasteiras e desvios (quem elabora isso maravilhosamente melhor e de forma extremamente potente é bell hooks em seu texto o olhar opositivo).

– E o tal problema da patologia masculina? Faz-se necessário uma rasteira nele?

– Questão difícil. Talvez seja impossível falar disso sem usar exemplos e objetos. Se nós estamos falando, por exemplo, do cinema de Abel Ferrara, me parece que há muita coisa ali misturada que um desejo de cinema não normativo deve cultivar. A patologia afeta a forma do filme. A maneira como a questão está formulada me causa uma impressão de cruzada moralista. Um encaminhamento possível seria: por mais patologia feminina. E não por extirpar a figura da doença ou da violência do mundo das representações. Mas sim, variar seus tipos, seus modos e modalidades, cultivando anormalidades. É essencial a presença do elemento da violência no âmbito das trocas simbólicas. Num mundo radicalmente fundado sobre a violência real e sua repetição ad eternum, a representação dela é um lugar privilegiado de sua redistribuição, digestão e alocação na comunidade.

– Essa ideia de uma redistribuição das patologias fundamental.

– “Por mais patologia feminina” – taí um manifesto que me interessaria mais do que esse do Shambu. Taí um objeto a se explorar no cinema. Temos essas obras? Quais seriam?

Desejo e obsessão (Claire Denis, 2001)? Exilados do Vulcão (Paula Gaitán, 2013)? Cleo das 5 às 7 (Agnes Varda, 1962)? Mar de Rosas (Ana Carolina, 1977)? O tema da patologia feminina – se pensarmos pelo viés da histeria – é altamente recorrente. Isso pode ser convertido numa potência? Ontem vi Minha Mãe é um peça 2 (César Rodrigues, 2016): o filme é sobre isso  – ela fala “tô nervosa” de um em um minuto. Talvez haja a possibilidade de um mergulho feminista na doença. Dobrar a aposta do machismo, entende? Descreio da associação arte-cura. As coisas não funcionam assim, me parece uma comparação ruim, que não explica bem nem arte, nem saúde. Um filme é um vírus, essa coisa não viva, vidrada por um meio, um corpo, pra ser, e se propagar. Arte e bem estar se encontram mas não são sinônimos literais.

– O cinema brasileiro, o “cinema ocupado” do Paulo Emilio, está mais preparado para lidar com essas patologias, historicamente. E aí é uma redistribuição anarquizante das patologias mesmo, não só femininas.

– O cinema queer não tem medo de lidar com suas patologias.

– Taí uma ótima questão, concreta.

– “Queer” é uma ideia patológica. “Filia” é sufixo patológico.

– Franco Berardi diz: “O terror é uma condição em que o imaginário domina completamente a imaginação. O imaginário é a energia fóssil da mente coletiva, as imagens que a experiência colocou nela, a limitação do imaginável. A imaginação é energia renovável e imparcial. Não utopia, mas recombinação dos possíveis”. Velha cinefilia, nova cinefilia, nova música, velha música, nova onda, bossa nova… tudo isso serve muito bem para marcar rupturas e posicionamentos. Mas pra mim cinefilia e crítica dão um abraço na imaginação. Novas ou velhas, as que interessam continuam um movimento que levanta perguntas e tenta responder os problemas para quem vem depois continuar a aventura. Esse movimento é o que me interessa como forma de historicização da cinefilia: uma história da imaginação. A crítica – e talvez a cinefilia também – do nosso tempo é muito hábil em dançar com o imaginário. Nosso baile (funk) tem que imaginar.

– Imaginar requer invenção.

– E, afinal, não seria a cinefilia moderna (e quando francesa), a “invenção de um olhar”? Não poderia ser essa nova cinefilia justamente o desmantelo de (parte) desse olhar? Agora: como se sustenta uma cinefilia que (apenas) desconstrói olhares? Como erigir novas comunidades cinéfilas que incorporem uma miríade de outros olhares?

– Bem, vejamos… O manifesto fala de uma dinâmica do local que se torna (ou se força) universal. A “velha cinefilia” se institui como dominante na incapacidade de reconhecer-se enquanto uma cinefilia – situada geográfica, fenotípica e sexualmente (pós Segunda Guerra, França, boys, brancos e HTs). Ou nas palavras de Shambu “Um truque mágico: o que era local se tornou, silenciosamente, universal.”

– Tem algo interessante nisso, ao mesmo tempo em que esse truque condiciona a existência do tal sujeito universal como hegemônico e agente das exclusões e opressões históricas, uma nova cinefilia, ao que me parece, não precisa necessariamente abandonar esse truque, mas fazê-lo por outros meios. Lembro da ideia de “transregionalismo” que Cândido levantava pra alumiar um paradoxo na escrita do Grande Sertão – “um enraizamento profundo no temário regional como linguagem transfiguradora que reconecta ao universal”. Se atém ao detalhe, ao documento: os acidentes geográficos, as alcunhas dos passarinhos, mas com um rigor que o libera. Localiza-se com tanto afinco os elementos que “são de lá” que, no ato, desorienta a própria diferenciação entre lá e aqui porque, ao atravessar a obra, a gente se torna um pouco “de lá” também. A contradição de uma extrema fidelidade com extrema liberdade nessa ligação obra-cosmos. Tudo bem que Rosa ainda era um boy diplomata cheio dos acessos, mas esse paradoxo também me recorda Francis Vogner falando pro Cinefestivais sobre No coração do mundo (Gabriel Martins e Maurílio Martins, 2019) e Bacurau (Juliano Dornelles e Kléber Mendonça Filho, 2019): “Se eles têm um sabor de novidade é porque conseguem expressar uma cultura local e torná-la universal. Não o contrário: se apropriar de signos ou de códigos do cinema internacional e moldá-los segundo um certo sabor nacional.”

– Tenho a impressão que, nos casos do Grande sertão: veredas ou No coração do mundo, parte da diferença se dá porque o referido truque não acontece silenciosamente.

– Sim, e no caso deles, isso que pode ser chamado de universal – como possibilidade de se conectar a qualquer um/a a qualquer tempo – deriva mais do contágio do que da ânsia de dominação. Ultrapassa inevitavelmente a matéria da obra, mas surge das entranhas dela, inclusive das entranhas de sua vulnerabilidade. Na experiência racializada e sexualizada de um corpo no mundo, por exemplo, com capacidade para infectar qualquer outro corpo em qualquer outro lugar.

– Me lembrou o Ismail Xavier em Sertão Mar sobre a potência do ir além do manifesto, que aquilo que se faz interessante e verdadeiramente um reflexo social muitas vezes reside justamente naquilo que não se encaixa no maniqueísmo típico desse tipo de abordagem. Em certa altura do texto encontra-se: “ Nesse aspecto, minha análise dos filmes de Glauber Rocha procura constituir uma evidência de que há algo neles que ultrapassa as proclamações, ensaios e manifestos. Ou seja, enquanto estruturas específicas, esses filmes não se pautam por aquela coerência que expressa univocamente as racionalizações da ideologia, mas o que há de problemático nessas racionalizações.”

– Escarafunchando um pouco esse mesmo texto de Ismail, e pensando se esse texto é para cineastas, cinéfilos, cineclubistas ou curadores, me veio uma certa sensação de insipidez que geralmente acomete aqueles que realizam filmes dentro de uma cartilha do certo e errado, do moral e amoral. Com essa leitura me veio com clareza que talvez esse texto realmente não se trate de como produzir esses filmes mas sobre como vamos realizar o visionamento de filmes como espectadoras atentas.

– Pois é, e ai eu acabo não vendo problema com as lacunas do texto do Shambu posto que é um texto conclusivo de uma era, dos seus impasses e suas insuficiências (e ainda curto muito como no final ele assume que ambas cinefilias, novas velhas, tendem a coexistir em cada um/a, mesmo que em realidades paralelas). A inquietude que ele me passa é mais simples, e diretamente vinculada à revista e ao nosso momento: como se relacionar a essa nova agenda?

– É curioso como vejo respostas plausíveis a essa indagação muito mais presentes nas curadorias atuais do que propriamente na crítica – e talvez estejamos passando por um momento que as artes visuais passaram há alguns anos, quando a crítica (não-acadêmica) praticamente derruiu em detrimento de uma (perigosíssima) inflação da curadoria. Os festivais estão colocando os filmes dessa nova agenda na pauta, e mesmo as obras que os cineastas mais antenados jogam na roda. Agora, ao menos no que venho lendo no Brasil e afora, vejo também uma certa crise da crítica, que muitas vezes endossa ou refuta, mas acabamos sendo um pouco comentaristas dos temas elegidos pelas curadorias.

– A “resposta curatorial” é de uma outra ordem, me parece. Organiza juízo e valoração de outro jeito.

– Por outro lado, acho que toda crítica já deve trazer consigo uma eleição curatorial que cause ruído em qualquer ranço oficial, que é inerente ao menos nas curadorias de festivais mais renomados.

– Voltando mais pro texto mesmo, eu acho ser um manifesto. Demodê. Ao mesmo tempo manifesto é um trem massa, né? É que esse povo escreve de um jeito lindo umas ideias que nem eles sabem o que querem dizer, cheio dos desejos e “A nova cinefilia irradia para o exterior, impulsionada por um espírito de busca e desejo de transformação social e planetária”. Cara, eu leio isso e saio pulando da cadeira com vontade de gritar e quebrar tudo. Dá um impulso na gente, mas, assim, o que essas palavras radiantes significam na ordem prática, não tenho a menor ideia.

– Eu bem que tenho uma série de problemas com esse texto. Mas acho ele muito importante ao mesmo tempo.  Digo isso, pensando muito sobre o Contra a velha cinefilia: uma perspectiva feminista de filiação ao cinema”, da Carol Almeida que, inclusive, reli em seguida. Lembro que a primeira vez que entrei em contato com ele, em 2017, fiquei pretérita. Foi como se um rio se abrisse e eu sentisse que poderia haver para mim também um espaço mais “habitável” em meio a essa cinefilia tão agressiva. Se não fosse por ele nem sei se teria mergulhado e me encontrado tanto no cinema e nessas coisas. Por isso acho mega lindo e importante que coisas assim sejam escritas e (principalmente) lidas aos montes. Mas acho, também, que pode-se partir dessas inquietações e reflexões buscando formas menos idealizadas e recheadas de frases de efeito. Textos que sejam, não só, um caminho, mas também, um passo.


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