parte 3 FINALIZADO

Conversa ao redor de uma nova cinefilia| Parte 3 – Autorias e políticas

Terceira de quatro partes da conversa da redação da Cinética a partir do texto “Por uma nova cinefilia”, de Girish Shambu. A conversa ocorreu em modo anônimo, via documento compartilhado online, entre 24/03 e 08/04 de 2020. Participaram Calac Nogueira, Fabian Cantieri, Francisco Miguez, Hannah Serrat, Ingá, Julia Noá, Juliano Gomes, Maria Trika, Pablo Gonçalo, Raul Arthuso e Victor Guimarães. A edição do material bruto foi realizada por Calac Nogueira, Ingá, Juliano Gomes e Victor Guimarães.

Parte 1 -Binarismos e cisões

Parte 2 – O filmes “problemáticos”

Parte 4 – Pontos de fuga

Tradução de “Por uma nova cinefilia” (Girish Shambu)


 

– Há um problema muito comum quando se aborda a questão do que se convencionou chamar de “Política dos Autores”. Este esforço empreendido por um conjunto de pessoas na França dos anos 50 e 60 tinha uma finalidade radicalmente conjuntural. Queria-se ali mudar o status quo, estabelecer novos critérios, alterar a norma. De certa maneira, a coisa mais importante é este gesto, o que deve ser cultivado do acontecimento. Foi uma jogada que mudou a história do cinema, a formulação de critérios, e fez com que o trabalho de um grande artista como Hitchcock tivesse a atenção que os filmes merecem. Havia todo um vasto repertório de filmes sendo exibidos no pós-guerra e que os critérios vigentes não davam conta, então era preciso inventar palavras e medidas. Este tipo de desnível histórico que pede a intervenção é importante de ser farejado. Aqui, estamos num momento dessa natureza, penso. Onde se procura critérios, formas de valor, meios de vínculo e relação, para que se institua um conjunto de ideias que fertilize tanto os filmes vindouros quanto a malha de textos e materiais que são seu pólen.

– Ali foi tática, para que se percebesse um outro tipo de contribuição. E, de certa maneira, a coisa pegou. Foi uma ferramenta importante no estabelecimento do valor cultural do cinema. Tanto que a até a hoje a palavra “autoral” circula com certa naturalidade … Modificada, mas não abalada no seu cerne.

– Apesar do Shambu fazer um enorme esforço em traçar essa oposição e descontinuidade, há uma continuidade muito interessante entre a “nova” e a “velha”: a ênfase nesta pessoa, nesta individualidade que encarna a responsabilidade social do que o filme faz. A ênfase nas discussões de raça, de gênero, e por outro lado na radical homogeneidade masculinista da “velha” se alimenta da ferramenta do autor como elemento centralizador da agência do filme. É uma semelhança curiosa, que merece atenção. É uma zona de discussão fértil hoje. Uma genealogia da função da autoria como chave de leitura. Um retorno à autoria contra sua velha forma, mas não contra seu conceito e função.

– Onde que está o apagamento do autor na nova cinefilia, como afirma o texto? Vejo isso funcionar num ambiente de vídeo e multimídia como na Bienal do Sesc VideoBrasil em São Paulo e Festival Valongo-Festival Internacional da Imagem em Santos, onde se vê muitas vezes um rolê de vídeo coletivo e declaradamente ativista, com causas demarcadas; estratégias antropológicas que tentam embaralhar a relação sujeito/objeto; formação técnica dos grupos filmados para que retratem a si mesmos. No ambiente de festivais de cinema – aqui e mundo afora – vejo as produções que identifico com as propostas da nova cinefilia ainda se apresentando através do autorismo, sim. É verdade que mais diverso, com muitos realizadores fora do “velho esquema homem branco”, e é também verdade que isso bagunça bastante as coisas, mexe nas bases da cinefilia, no ambiente crítico, nas histórias do cinema, nos ambientes da produção. Mas vejo autorxs se apresentando e se afirmando como autorxs.

– Uma pergunta sobre isso: a nova cinefilia vem mesmo tentando criar novos critérios? Quais?

– É uma questão importante essa. Levantar isso, perguntarmos e tentar elencar.

– Criar critérios é oferecer ferramentas. Semear coletividades, né?

– Por outro lado, é curioso que a distinção principal da “velha cinefilia” no Shambu seja a autoria. É a característica principal da objeção que ele faz.

– Sim. Nitidamente. Tem nó aí.

– Falando da realidade brasileira, acho que certos critérios vem sendo automaticamente aplicados, na vibe do que faz o Shambu, por gente que está afinada a esta “nova” que ele relata. O primeiro é esse critério de produção (e aqui eu vou diferenciar “produção” de “representatividade”): “tokenismo” por parte da produção de um filme tem servido facilmente de isca pra um mar de peixe-crítico morder. Escriba que não consegue formular uma visão atravessada dos elementos estéticos-políticos daquele mundo fílmico, cai na preguiça do checklist. E assim, uma parceria, um consenso danoso se forma. Tem prosperado.

– Sim. Nessa discussão sobre novos valores e critérios, me lembrei imediatamente dos textos e falas da Amaranta César em defesa da categoria do reconhecimento como critério curatorial. No texto “Que lugar para a militância no cinema brasileiro contemporâneo? Interpelação, visibilidade e reconhecimento” (2017), por exemplo, ela escreve: “Num exercício curatorial que tome o reconhecimento como princípio orientador da pesquisa e seleção de filmes, permite-se que o desejo de visibilidade e escuta dos diversos, múltiplos e novos sujeitos históricos que estão produzindo filmes afete ou mesmo altere os desejos em relação às obras a serem exibidas, ensejando um movimento reflexivo sobre os parâmetros de julgamento crítico”. Percebo nessa reflexão um benfazejo questionamento de um ideal de pureza estética de uma velha cinefilia engessada (que é uma caricatura, mas por enquanto trabalhemos com ela). Mas a questão da valoração continua sem resposta. Se adotamos o reconhecimento como uma categoria, como separar um filme do outro? Como julgar a importância relativa de uma luta em relação à outra, como comparar as produções desses novos sujeitos históricos? Em qualquer processo de curadoria essa questão vai se impor. O mito da escassez funciona também aqui. Num momento em que havia poucos filmes realizados por pessoas negras no Brasil, era relativamente fácil adotar o critério do reconhecimento para selecioná-los para um festival, por exemplo. Mas e quando esses filmes começam a surgir numa proporção considerável, de modo que muitos deles precisarão ficar de fora? O critério não parece ser autossuficiente. E aí talvez a gente perceba que jogar fora o bebê da estética junto com a água da bacia das opressões seja impossível.

– Exatamente!

– A questão do critério me leva a criticar o texto pela via de que ele talvez não seja sobre a “velha cinefilia”, mas sobre o “velho cinéfilo”. E aí sim, ele está discutindo com uma caricatura, que existe, se faz presente em muitos momentos e que tem voz. Mas não com critérios, com ideias, nem mesmo com práticas de fruição, observação e discussão sobre cinema. Porque faz parte de uma crítica da cinefilia e uma colaboração à sua historicidade diferenciar a caricatura, o cinéfilo apegado a um ideário descontextualizado de seu tempo histórico ou ainda o “cinéfilo do mercado” (aquele que consome milhares de filmes) do que a cinefilia realmente pode ser. Pra mim há três palavras-chaves nisso: curiosidade, multiplicidade e plasticidade. Se pensarmos a partir dessas três categorias, talvez possamos ir além da caricatura e pensar a cinefilia como uma práxis e não um código de conduta.

– Taí uma diferenciação importante.

– Estão fora dessa narrativa a todas as experiências coletivistas e internacionalistas do final dos anos 60? Grupo Dziga Vertov, SLOM? E toda a correspondência do cinema terceiro-mundista? E toda invenção estético-política dos cinemas novos mundo afora? Prazer visual? Armadilha do novo?

– Sim, sem contar os movimentos, tanto individuais quanto coletivos, de produção de cinema por mulheres e negros em vários momentos da história do cinema. Esse “adanismo” (esse sentimento constante de que tudo isso parece ter sido inventado ontem) é um problema grave do texto aqui em questão, porque é historicamente muito problemático, quase a-histórico. Por exemplo: um problema da “velha cinefilia” não é apenas que ela ignorou os filmes feitos por mulheres ou pessoas negras, mas que ela ajudou a apagar histórias que já foram pujantes. Por outro lado, essa face a-histórica do texto faz coro a um “adanismo” que me parece muito frequente em expoentes da “nova cinefilia”. Lois Weber já foi a diretora mais bem paga de Hollywood, entre homens e mulheres. Quem sabe disso? Quem conhece Oscar Micheaux, Spencer Williams, todo o circuito de produção dos race films? Isso existiu, está largamente documentado. Boa parte dos filmes existem. Mas o que mais vejo por aí são discursos cinéfilos que atuam como se o cinema feito por mulheres ou por pessoas negras tivesse começado ontem (ou, no máximo, nos anos 1960). É muito fácil trocar os 1.900 textos escritos para elogiar Pantera Negra (Ryan Googler, 2018) por um texto que preste escrito sobre Na Boca do Mundo (Antônio Pitanga, 1978). Mas eu tenho a sensação que a nova cinefilia defendida pelo Shambu me parece muito pouco preocupada com isso.

– Com se historicizar, né?

– Sim, com atuar sobre a história, com uma releitura efetiva, crítica, inventiva do passado em relação ao presente.

– Historicizar é ação coletiva.

– Quais são os filmes do passado que essa “nova cinefilia” reconhece como parte de seu repertório? O que ela tem feito em relação a eles? Penso, por exemplo, num esforço como Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. Com todo o dogmatismo de Glauber (ao rechaçar Limite, por exemplo), ele propõe uma releitura ativa do passado em relação aos critérios formulados pela geração do Cinema Novo. Contemporaneamente, esse tipo de esforço, ao menos no Brasil, ainda me parece muito tímido. Há um risco iminente em formular critérios que só valham para filmes realizados hoje (e que, muito frequentemente, parecem não trabalhar as contradições históricas do momento em que os filmes do passado foram realizados). Há um esforço louvável, por exemplo, de recuperar filmes realizados por cineastas negras e negros no passado. Mas aí nos deparamos com um filme como As Aventuras Amorosas de um Padeiro (Waldir Onofre, 1975) e o que fazemos diante dele? Consideramos um episódio superado, um filme cheio de “defeitos de representação” que “não nos servem mais” e portanto deve ficar enterrado, museificado, morto? Tenho a impressão de que se filmes como esse fossem levados mais a sério hoje, correríamos o bom risco de fazer filmes menos normativos amanhã.

– É mais fácil ignorar um filme como Ódio (Carlo Mossy, 1977) e Giselle (Victor di Mello, 1980) do que enfrentá-lo, né? Manter conscientemente certas “insuperabilidades” distantes ou no limbo: talvez seja o gesto reacionário por excelência dos tempos atuais.

– Temos sempre que ter cuidado de não soar como nostálgicos. “Tempos atuais”…

– O mainstream domou o imaginário coletivo ainda mais intensamente na última década. Observo isso em aulas.

– Na busca de outros caminhos de leitura, tenho cada vez mais apostado na noção de acidente como fundamental na história do cinema. O que não é atribuível à intenção (portanto, ao autor) talvez tenha uma importância muito maior do que a que lhe foi reservada até hoje. Falando na Lois Weber, tava vendo Hipócritas (1915), e tem um momento em que um espelhamento acidental mostra a própria câmera de filmar, com manivela e tudo, no interior de um olho. Aparentemente foi uma tentativa de sobreposição que acabou, por acaso, revelando a própria câmera. Só que isso acontece num filme que tem o “desvelar” como dado de enredo central (o filme se passa quase inteiro dentro de um sonho de um pastor que quer “desnudar” – inclusive literalmente – a hipocrisia de seu entorno). Chamo esses poucos segundos de acidentais porque são realmente um detalhe, não trabalhado pelo filme depois. Por outro lado, as consequências desse acontecimento visual para a história do cinema (com toda a conversa sobre a reflexividade como traço aparentemente “moderno”) me parecem bastante relevantes. É um filme de ficção de 1915 e está trabalhando formalmente a reflexividade do cinema com uma sofisticação enorme (a revelação do aparato cinematográfico participa do desvelamento que o filme quer operar no plano do enredo). É bem provável que isso não possa ser atribuído a uma intenção da autora, mas isso está lá, existe materialmente, faz parte da experiência de quem vê o filme.

– Sim. Os exemplos poderiam se multiplicar. A famosa vista Lumière do muro sendo destruído (e “reconstruído” magicamente na projeção, por um erro do projecionista) desaguaria, por exemplo, nas teorias vanguardistas de figuras como Jean Epstein e Germaine Dulac sobre a manipulação do tempo e da causalidade no cinema. Ou aquele filme da câmera caindo de um helicóptero num chiqueiro e sendo farejada pelos porcos, que pra mim é um acontecimento decisivo na história do cinema experimental. Quem é o autor daquilo? Precisa? Uma lida frontal com uma genealogia desses “acidentes” não poderia destronar de uma vez por todas uma política dos autores e substituí-la por uma política das obras? Por que substituir a política dos autores por uma absoluta falta de critério, ao invés de radicalizar a impropriedade como potência?

– Concordo plenamente. Acho a ideia de impropriedade poderosa.

– “Impróprio” também no sentido de “aviso de censura”, “inapropriado para menores”. Porque esse chamado por uma limpeza é uma intervenção na direção do “próprio”. A palavra incide em termos morais e em termos de patrimônio.

– Sim. Contra essa tendência radicalmente “pessoalizante” e antropocêntrica que o neoliberalismo adora. Há inúmeras contribuições na literatura sobre cinema que enfatizam sua face anônima, maquinal, objetual, involuntária. Inclusive feito por mulheres, como Germaine Dulac ou Maya Deren. Num momento de pandemia, pensar antropocentricamente é um desastre político. A inflação narcísica do “humano” é que fomentou essa hecatombe.

– Poderia um cinema não-humano provocar uma radical da desmaterialização do indivíduo?

– Todo cinema é, em boa parte, não humano.

– As câmeras nunca ligaram para o indivíduo. Mesmo os dispositivos de reconhecimento facial, eles estão atrás de formas ovais que se mexem e pontos escuros simétricos. O cinema do James Benning é também sobre isso, por exemplo, Farocki também, sobre essa indiferença dos objetos técnicos e seus processos…

– Isso de um cinema antropocêntrico é muito doido. Talvez até no aspecto narrativo, ficcional clássico… Como se a mudança se operasse somente a partir do tema, dos personagens, da história e não considerando o aparato como um todo, para além daquilo que o carnal. Tem muito de máquina a ser incorporado enquanto gesto político.

– Hackeamento.

– O desenho da “nova” em Shambu parece nutrir também uma hipertrofia da consciência, do self consciousness. Aqui no Brasil houve uma fala – feita numa universidade dos EUA – chamada EZTETYKA DO SONHO. Discorre, entre outras coisas, sobre o primado da razão como um traço colonial. Para minha tristeza, não é hoje um texto canônico, no sentido de ser lembrado, praticado, incorporado. É só um exemplo. Tá aí.

– Sim. A “patologia” crucial da “nova cinefilia” é sua não rara repulsa aos objetos e materiais, ao que não se pareça com uma imagem idealizada dela mesma, afinal. Um certo narcisismo de base assombra os debates, onde muitas vezes os objetos e suas possibilidades ficam a ver navios. Tudo tende ao pessoal, à pessoa, reputações e auto projeções.

– Que objetos e materiais?

– O que não são “as pessoas”, o “autor”, a “diretora”. Um filme é também um objeto, uma coisa que tem um espécie de vida, com um razoável potencial autônomo, atravessado por coletividades. Feito pelo uso de objetos técnicos. Esse papo mesmo da impropriedade, que rolou aqui. A câmera, o microfone, “me obedecem”, mas não sei se, quando filmo, são meus “escravos”. É um imaginário da dominância, esse. Tenho que compor com as possibilidades que os objetos técnicos sugerem. Eles também não são neutros, foram criados por pessoas e corporações, tem manuais de uso. Isso tá relacionado com o papo da dimensão de acidente que falou-se aqui. É uma ideia que abre caminhos contra-hegemônicos, acho. Não que com isso tenhamos que esquecer a história macho-colonial e suas incidências, mas é preciso cruzar uma coisa com a outra. O humanismo não pode ser o preço de uma virada decolonial.

– Mas quando se fala de compor com os objetos, com a técnica, você quer dizer das limitações que eles impõem? E, por consequência, de onde se produz e a quais desses materiais se tem disponível?

– Falo de praticar dentro de outros pressupostos. Tem a ver mais com “ilimitações”. Um filme é objeto exposto ao tempo, é dinâmico, reage diferente a cada mergulho, apesar de guardar sua materialidade. Carrega marca de muita coisa, é um palimpsesto. A cópia em película evidenciava isso materialmente – a virada pode ter paralelo com a limpeza estável do vídeo HD também, sua limpidez cristalina. O involuntário é uma dimensão essencial das coisas, inclusive da gente mesmo. Ninguém é tão senhor assim do que faz. Rola uma judicialização do pensamento nessa individualização tão intensa das ações. A droga mais viciante que tem é “sentir a justiça por dentro”, como diz o texto Vaga Carne, da Grace Passô. Que por sinal, é um texto que fala muito sobre a vida dos objetos, das coisas. Talvez seja uma peça sobre crítica, ou sobre arte: essa voz que atravessa. E que na hora em ela vai finalmente “dizer”, acaba, como no Livro dos Prazeres da Lispector.

– O pensamento não é “meu”, mas algo que me acontece.

– Pensei aqui que talvez a ideia de “cinefilia” não seja uma ideia a cultivar. No mínimo, sugere uma relação um pouco endogâmica como ideia do que é o cinema e com o quê ele, potencialmente, tece relações.

– Narcisismo é mesmo um tema importante, que atravessa mais de uma dimensão. Talvez “cinefilia” revele um pendor narcísico da ideia de uma comunidade do cinema, voltado pra si. Também não sei bem para que serve a frase “o mundo é mais importante que o cinema”. Soa como a lógica daquele que questiona a construção de mais um teatro quando poderia ser mais um hospital. Ou seja, falsa comparação. A equiparação furada é uma arma política essencial pro caos neofacista hoje.

– Tenho a impressão que o imaginário do texto coloca a questão em termos de substituição de hegemonia. Há setenta e cinco anos uma domina, agora é a gestão de “outra dominância”. É um problema do imaginário. A escassez como modelo único, excludente.

– A forma da “dominância” num território como o Brasil é um assunto que me interessa. E me parece ser o limite de vários textos que se dedicam a coisas análogas. Pegar os diagnósticos sobre Hollywood ou Paris e “aplicar” aqui me parece deixar muita coisa importante de fora.

– É urgente um esforço amplo coletivo para reverter essa máquina do “Mesmo”, é um problema do imaginário “dominante”.

– E como fazer isso? Porque a urgência é perceptível, infelizmente a reversão e dissolução dos problemas, nem tanto. Isso está no próprio texto, pois suas ideias e inquietações talvez entrem em contradição ao escrever-se um manifesto. É derrubar uma barreira erguendo outra. O resumo, a gente já sabe: a história da arte e do cinema é uma grande “cagação de regra”. A liberdade não seria um pouco mais revolucionária do que uma simples repetição mudando somente os dogmas?  E como podemos pensar uma reversão que não passe nesse mesmo caminho? Pode quebrar essa máquina a tamancada?

– Sinto haver um enorme medo de afirmar, de fazer juízo. Isso tem a ver com a escassez de práticas de coletividade e com esse imaginário da exclusão. Também rola uma fobia da violência inerente deste tipo de gesto. Bordar uma aposta não é cagar regra, é jogar uma isca pro futuro.

– Outra coisa me veio sobre o que falaram: a palavra “identitário” é uma cilada conceitual. O país nasce com uma invasão que assassinou seus habitantes nativos, com sua caça e escravização. Em seguida, o mesmo rola com populações descendentes da África. Não me parece adequado chamar de “identitarismo” que quem descenda desses povos queira seus direitos e reparação. E aqui chegamos a uma questão crucial – já abordada aqui na Cinética: como produzir cultivos e coletividades a partir do consenso sobre a multiplicidade perspectiva? De fato, uma unidade foi forjada a sangue. Entretanto, o que agora se descobre é que é necessário produzir agenciamentos coletivos e não somente coleções de individualidades “na sua”, impermeáveis. O blefe branco universalista produziu no cinema também materiais aproveitáveis, hackeáveis, ou no mínimo que sugerem armas que podem ser úteis eventualmente, vide a permanência da ideia de autoria como ferramenta motriz do debate. É uma arma branca.

– Cuidado com a burra: pode ter várias cinefilias num só corpo? É porque acredito que a primeira noção de cinefilia que tive se relaciona com os afetos com o filme, depois vem A Cinefilia que começa a dizer que filme x e y são filmes que você TEM QUE ver, amar e idolatrar. Aí depois tem uma outra cinefilia que mostra que tem MUITOOOO mais coisa que não é facilmente vista, aí se descobre que o cinema é quase infinito. Para além disso, tem a cinefilia relacionada à crítica e então, compreende-se uma certa posição cinéfila. Ao mesmo passo, existe a cinefilia relacionada à curadoria que diz de um gesto de cinefilia e suas reverberações. E em meio a tudo isso, mantém e se recria a todo instante a primeira cinefilia, de afetos e mistério com todo esse universo que se abre e se retorce a todo momento.

– Sim.

– Digo isso, porque para além da “nova” e da “velha” interessa também a própria e a dos outrxs e como elas podem se unir e criar juntxs ou não.

– Acho que “cinefilia” é um estranho sinônimo para “comunidade”. Nunca me senti em paz com a ideia de me pensar “cinéfila”. Apesar de ter um certa sugestão involuntária na ideia que acho bonita por um lado, como uma doencinha.


Leia também: