parte 2 CERTO IRACEMA

Conversa ao redor de uma nova cinefilia| Parte 2 – Os filmes “problemáticos”

Segunda parte da conversa da redação da Cinética a partir do texto “Por uma nova cinefilia”, de Girish Shambu. A conversa ocorreu em modo anônimo, via documento compartilhado online, entre 24/03 e 08/04 de 2020. Participaram Calac Nogueira, Fabian Cantieri, Francisco Miguez, Hannah Serrat, Ingá, Julia Noá, Juliano Gomes, Maria Trika, Pablo Gonçalo, Raul Arthuso e Victor Guimarães. A edição do material bruto foi realizada por Calac Nogueira, Ingá, Juliano Gomes e Victor Guimarães.

Parte 1 – Binarismos e cisões

Parte 3 – Autorias e políticas

Parte 4 – Pontos de fuga

Tradução de “Por uma nova cinefilia” (Girish Shambu)


– Sabem, fiquei pensando no que o texto fala sobre primeiro plano e o fascínio que a velha cinefilia tem com um male bad behaviour: obsessivo, dominador, abusivo, violento. Me remontou imediatamente à experiência de assistir Iracema – Uma transa amazônica (Jorge Bodanzky e Orlando Senna, 1976) por indicação de um companheiro enquanto dávamos uma oficina de vídeo. Foi insustentável. Por mais que eu percebesse o valor das conexões engenhosas entre a prosódia do filme e o desdobramento da história do país na época em que foi feito, a aventura entre o fio de enredo ficcional e as veredas do direto documental, nada disso conseguia atravessar em mim a resistência com a maneira como o corpo da atriz, a presença daquela mulher era tratada e retratada pelo filme. Saí enjoada e sem conseguir proferir palavra alguma, mas reparava que os homens ao meu lado não compartilhavam do mesmo sabor amargo na boca. O trato do filme com ela não conseguiu largar o “primeiro plano” na experiência de assisti-lo nem por um minuto sequer. E aqui recorro a uma história muito pessoal e localizada para materializar essa sensação.

– É interessante isso que tu diz sobre Iracema. Aqui fala alguém que já viu o filme umas três vezes e nunca estranhou desta maneira. Uma certa da consciência – ainda que em menor escala – da violência acompanha a fruição do filme  e não a inviabiliza para mim. Fico me perguntando – e talvez essa pergunta não faça sentido algum – se isso que tu sentiu é “histórico”, no sentido afetivo-cognitivo? Tenho vontade de perguntar para, por exemplo, mulheres mais velhas, como elas organizavam isso. Me interessa saber este trajeto que conduz uma coisa a ser intolerável, e  como era numa época onde alguns critérios não estavam tão vivamente presentes numa esfera pública, coletiva.

– Sobre Iracema, já o mostrei em sala de aula e o debate foi bem por aí, sobretudo para as mulheres que estavam presentes. Discutir o filme incidia no limite do suportável. Acho que para um espectador masculino incomoda, sim, claro, dilacera, mas faz parte de um frame composto de olhar-corpo que precisa ser desconstruído de forma feroz. Em alguma medida, são olhares cinéfilos inconciliáveis, e nesta cisma me alinho ao Shambu.

Iracema seria então um filme que, dentro da perspectiva da “nova cinefilia”, impossível de uma fruição cinematográfica? Penso nisso ao mesmo tempo que me lembro da primeira vez que vi o filme o quanto aquilo me atingiu profundamente, principalmente por ser mulher. Mas na medida em que o filme é, de fato, violento, e é nessa virilidade pútrida que reside a beleza do filme. É um filme muito duro, apesar de ter gostado tanto.

Mujeres presentes aqui, cês sentem isso também? Esse sentimento descrito pela companheira acima me faz lembrar de sentimentos muito vivos em minha “cinefilia”. Meus passos sempre me puxaram para muita pornochanchada, giallo, trash, pornô, e um bocado de filmografias podres e renegadas, que sempre me deixavam com esse dúbio sentimento (e se mantém na perspectiva de um olhar que busca os escapes e margens, pequenos ruídos nas obras em que possa me conectar). E com isso cuméquefaz?

– Penso em ir um pouco mais adiante com um questionamento: será que a velha cinefilia – cis-branca-hétero – não foi por demais complacente com essa “cultura do estupro”? Sei que o termo é forte, mas é o estupro que perpassa esse filme e tantos outros. Não haveria uma excessiva complacência dessa velha crítica nessa naturalização de olhar o estupro? Ou uma forma de vê-lo como denúncia política – um filme como Baixio das Bestas (Cláudio Assis, 2006), por exemplo, faz isso – ou gesto de linguagem como uma forma de tornar o insuportável (do corpo feminino) tolerável (num olhar hetero-masculino e “pre-dominante”)? Esse conjunto de temas nunca inquietou de fato a crítica e a velha cinefilia e essa lacuna fez com que ela acabasse, talvez, por endossá-lo tacitamente.

– No Amarelo Manga (Claudio Assis, 2002), a Dira Paes usa o cabo de vassoura com Jonas Bloch…

– Essa experiência do Iracema é uma questão fundamental. Como lidar com esses filmes? A sugestão que ele faz em relação ao Polanski e ao Woody Allen me parece só arranhar o problema. Depositar menos atenção crítica e cinéfila nesses machos brancos específicos parece algo até salutar, num certo sentido, porque tem gente demais pra entrar no cânone e alguém precisa sair. Por outro lado, simplesmente abandonar essa experiência problemática com os filmes, torná-la um vetor de inércia ao invés de um vetor de pensamento é o melhor caminho?

– Escrevo aqui ciente que tô toda trabalhada na contradição: entendo esses pontos e até concordo com eles, mas na real não acredito muito nisso. Gosto de vários filmes desses caras. Só que morro de desprezo por eles. É aquele famoso “credo, mas que delícia”. Não acho que “alguém precisa sair”. Precisamos repensar os cânones (bixa cancela essa ideia na real); transformar essa visão linear da história, assumi-la e se relacionar com ela como um rizoma e os afetos como percursos que a influenciam; olhar para filmes e realizadorxs com a complexidade que sua obra e subjetividades tem “amo o filme, mas que deus te elimine seu boylixo“; e, principalmente (pois sem isso nada muda, bb), ABRIR ESPAÇO. DAR A VER ESCREVER SOBRE VER FILMES POSSIBILITAR A REALIZAÇÃO DE FILMES DE OUTRXS (refiro-me a minoria, viu, beloved’s normativxs?).

– Contradição é vida!

– Isso me recorda o debate em torno de uma suposta cultura do cancelamento. Me parece que ela não existe, não para nomes consagrados pelos circuitos de legitimação como Allen ou Polanski. O que efetivamente se sucede é uma repulsa que pode tanto fragilizar o valor relacionado às obras quanto lhes conferir mais visibilidade. Cancelar é coisa de amizade em rede-social. As obras e os nomes já consolidados seguem no mundo, constituindo o encalço-retrato desse olhar e desse período que a nova cinefilia descreve como quem deseja arremessá-lo numa fogueira. Lembro que algum dia durante um debate a respeito do ímpeto inquisitório dessa revolta com os “velhos” modos, alguém disse que o problema não era exatamente sempre haver uma fogueira para onde se desejavam atirar um novo culpado da vez, o problema seria quando não nos jogamos na fogueira junto. Que queime.

– Nessa conversa seria importante ir caso a caso. Não dá pra colocar no mesmo debate a questão do #MeToo. É claro que o que está em pauta são as demandas feministas, mas a questão Woody Allen/Polanski, pra mim, é muito diferente de lançar pra jogo um filme como Iracema… São questões muito, muito distintas. É incomparável. Acho inclusive Iracema um baita filme sobre a masculinidade reacionária que tem tomado forma e corpo de um jeito cada vez mais atual, sobretudo desde a ascensão do Tião Brasil Grande à presidência. O filme não é nenhum pouco condescendente. Inclusive, ele é bastante consciente de uma série de gestos e do modo com que aborda essa relação com a personagem… Não que eu esteja relativizando a questão, mas a recusa imediata de sustentar o olhar não pode também ser, algumas vezes, uma armadilha? Isso precisa ser nuançado e abordado com muito cuidado. Seria preciso ir caso a caso, filme a filme. Além disso, podemos discutir a perversidade de certas representações, mas me parece talvez um pouco inapropriado compará-las, por exemplo, a essas situações de abusos sexuais, de denúncias explícitas. Particularmente, sempre me recusei bastante a ver os filmes do Mojica… porque as cenas de estupro me doíam nesse contexto do terror – ainda que me pareça que o terror ali não se destinava propriamente a mim, enquanto espectadora… mas, ainda assim, seria o caso de fazer esse tipo de comparação? Ou, então, seria o caso de deixar de, de fato, ver os filmes? De início, me parece que não…

– Quem não pode com mandinga, não carrega patuá. É preciso afiar a lâmina para atravessar esses filmes. Deixar ou não de assisti-los me parece uma falsa questão. Iracema foi censurado pela ditadura, não foi? Não é disso que se trata, nem será essa a nossa tática. Muito mais importa nos perguntar, no dia em que decidirmos assistir ou lembrar desses filmes, como é que o incômodo e o sinal de insustentabilidade importam, como se fazem importar. E a demanda aqui nem é o florescimento de uma masculinidade empática com a eventual dor das companheiras diante das performances de violência. Essas imagens intervêm e constituem subjetividades, projetos e desejos. Tá na hora de aqueles que performam a masculinidade compreenderem melhor a sua própria vulnerabilidade diante delas. Por isso, suspeito que o problema em continuarmos vendo “esses filmes” seja menos sobre espectadoras toparem o tranco e mais sobre os olhares masculinos reconhecerem sua condição diante da pregnância – mais sorrateira na medida em que o prazer da fruição estética se afirma – das violências retratadas. Lembro aqui da redistribuição da violência defendida por Jota Mombaça quando diz que “há estratégias, técnicas e ferramentas que somente uma corporalidade e subjetividade capaz de habitar a fragilidade consegue desenvolver”. Sim, é preciso afiar a lâmina para atravessar esses filmes e as espectadoras perceberão quando sua lâmina não estiver afiada o suficiente porque vai doer. Me pergunto se o mesmo acontece ao restante da sala, seja no olhar masculino da “velha” que peita celebrar essas imagens e seus autores, seja na suposta posição de desconstrução daquele integrante da “nova” que publicamente as repudia. Existem formas de manifestação assintomática da doença.

– Sinto que há algumas discussões diferentes, mas sobrepostas: a discussão do #MeToo como corte histórico de relações de trabalho atravessadas por assédio; a discussão autor-obra em casos tão emblemáticos como de Polanski e Allen e como opera esse julgamento ou reparação, sobre suas pessoas e suas obras; e o problema do prazer na representação da violência macha no interior dos filmes como figura recorrente. Estava vendo alguns Cassavetes esses dias e ele é difícil de situar nesse sentido, sempre dobrando um juízo rápido. Tem uma violência masculina completamente desenfreada, mas as cenas têm uma instabilidade muito grande, um circuito de relações irresolvíveis. As personagens da Gena Rowlands nunca são o que se espera da figura feminina diante dessa violência. Enfim, são obras que me deixam incerto sobre esse juízo. Sobre o Iracema, presenciei também uma sessão em aula, muito dividida pela experiência das mulheres presentes. Estudei um pouco esse filme num contexto de Iniciação Científica e me deparei com um acervo de matérias da época que apontam para questões de produção que hoje seriam intoleráveis e lá no início dos anos 1970 já eram bem controversas, como a atriz ser menor de idade, acusações sobre um prêmio do qual ela nunca teria recebido o valor etc. E o filme trafega inteiro a partir dessa assimetria – digo isso sem um julgamento moral por princípio: ficção/doc, ator paulista branco mais velho/ atriz não profissional menor de idade belenense… Sei que a Livia Perez (Quem matou Eloá, 2015) tem uma monografia sobre a representação da mulher no Iracema em que ela faz uma defesa do filme, pode ser interessante para desdobrar. Enfim, acho que interessa muito pensar como se dá essa passagem entre o problemático – bom problema crítico – e o intolerável, inassistível. O texto fala em edgy como irritadiço, mas me remeteu a limítrofe. Onde acaba a ambiguidade? Como isso se dá historicamente/como a posição do espectador (no sentido do olhar opositor) reenquadra o filme?

– Existe uma espectadora que deseja enquadrá-lo como quem enquadra um material de estudo, seu ponto de fuga, um espelho: jogo de espelhos. As obras ainda secretam suas desobediências em relação à soberania do autor. Aquelas que violentam são também as que constituíram pedaços desse mundo que a gente vê, morde, beija, pisa e condena. Estudá-lo aumenta a possibilidade de criar fissuras nele. Afiar a lâmina para atravessar as imagens implica em se tornar mais capaz de perceber e investigar o gesto. Quando todo exercício crítico desemboca, no limite, em uma crítica de si.

– Sabem o texto que Paul B. Preciado escreveu por esses dias chamado “Aprendiendo del virus”? Ele lança a hipótese de um  tecnopatriarcado neoliberal que a Covid-19 ajuda a fabricar entre nós, tendo como reflexo precursor o modo de vida adotado por Hugh Heffner, o milionário norte-americano que dispensava qualquer saída de casa e passava o tempo a enviar longas mensagens de voz aos seus funcionários. O exercício de assistir ao material de vídeo transmitido pela mansão da playboy, onde ele residia, e a leitura da própria biografia de Heffner foram fundamentais para Preciado formular algo inquietante sobre nossa condição de confinamento nesses dias de recuo em pandemia. Ideias e conexões que não existiriam se o material fosse rejeitado por princípio, e menos ainda se fosse consumido sem algumas estratégias de guerrilha.

– Acredito que a questão não é sobre quem tem o poder de aguentar ou censurar a existência de certas imagens. É sobre autodefesa, esquiva e canivete.

– Na medida do impossível, acho importante estudar o inimigo.

– É uma boa questão, sobre os limites… sobre onde, propriamente, se situaria o inassistível. Tenho a sensação de que, se por um lado o texto convoca uma percepção ligada ao prazer estético para falar da “velha cinefilia”, por outro, uma grande questão ligada à “nova cinefilia” – quando espectadores não-brancos, não-héteros, não-homens-cis, não-europeus/estadunidenses e etc, entram na conta, com suas demandas de raça e gênero, por exemplo – talvez seja não apenas uma relação com o prazer, mas com a dor. Isso nos devolve um pouco à questão da recusa, de que falávamos acima, em torno de representações que, de algum modo, nos violentam. O que acontece, então, quando passamos a considerar a dor, seja ela a nossa ou a dos outros (das mulheres, dos negros, dos imigrantes, por exemplo)? Como continuar a ver os filmes, do passado e do presente? Me parece que há um debate complexo que passa por aí e que precisa ser pensado com cuidado… porque não é questão de, a partir de então, não ver mais certos filmes, negar de antemão certas representações, como já foi dito… Se a valoração da “nova cinefilia”, como o autor propõe, for automática, muita coisa pode escapar na adesão ou na recusa imediata. Mas o que interessa é, sobretudo, dar conta de virar essa chave, compreender uma relação com o olhar, que passa também pela dor, pela violência.


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