A Pele de Vênus (La Vénus à la Fourrure), de Roman Polanski (França/Polônia, 2013)

maio 5, 2014 em Em Vista, Luiz Soares Júnior

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O xadrez dos deuses
por Luiz Soares Júnior

A nascente desaprova quase sempre o itinerário do rio”
Jean Cocteau, Le Rappel à l’ordre

E se a filmagem se constituísse igualmente em uma violação do real? (…) isto significa que a violência cinematográfica não se efetiva apenas no nível da prática da montagem, (…) mas também no nível da filmagem (…)”.
Pascal Bonitzer, A tela do Fantasma

Corpo, texto, encarnação; a tríade baziniana conheceu uma insuspeita posteridade nos modernismos cinematográficos: Oliveira, Straub e Syberberg levaram a sério a idéia de que é possível conciliar o teatro e o cinema ao se intensificar o hic et nunc teatral das adaptações. O filme se torna assim um documentário sobre uma representação do texto, e a démarche ontológica baziniana reconcilia-se enfim com o artifício: Méliès e Lumière, ainda e sempre. A Pele de Vênus, de Roman Polanski, trata em pianinho desta mesma trindade, mas em chave superficialmente fantasista – ou, antes: mediúnica? (É preciso aqui retomar o panegírico da superfície, tal como entendida por Deleuze e Kleist: uma extensão horizontal a perder de vista, ou o eixo estratégico onde se amealham as forças para a retomada do combate).

O tema secreto ma non troppo do filme é a possessão de um corpo por um texto: a vulgaríssima aspirante a atriz (Emanuelle Seigner), anarquista e arrivista, surpreende o autor e atual partner (Mathieu Amalric) na leitura da peça, ao mostrar-se uma verdadeira máquina de adaptação, fisiológica e fenomenológica, às rubricas implícitas no texto de Sacher Masoch. Inesgotáveis virtualidades de dicção, postura e apetrecho cênico afloram à superfície daquela besta loira, transtornando a nossa primeira visão, embaralhando as cartas. Ao final, o xeque-mate: um texto a anima, mas quem sofrerá as sevícias deste demônio será o Outro. O filme se constitui no registro sinuoso, irônico deste cerimonial de feitiçaria em huis clos, mas tudo se dá na arena dos embates entre os atores; e a atmosfera mágica é sugerida pela incidência da luz sobre o cenário (a cenografia da luz, de que Fellini tirou tantos efeitos barrocamente glutões, readquire sua aquarelada transparência: como estes papéis que se superpõem à superfície e revelam sob a crosta da rarefação o bico-de-pena de tudo o que restou da densidade, no traço do desenho).

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São, todos, recursos infra-estruturais, de base: corpos, texto, madeira, papelão. O fascinante em A Pele de Vênus é o fato de ser um filme que versa sobre magia, possessão, encarnação – temas que flertam com a metafísica, que roçam o imponderável, que poderiam estar num filme de horror (supra-natural) – mas o faz da forma mais artesanal possível, reivindicando, não apenas no tema e no cenário, mas em princípio e por princípio, a idéia do teatro como um lugar mediúnico e transfigurador, onde o imaginário é o grande Próspero. “We are such stuff as dreams are made on. And our litle life is rounded with a sleep”.

O último Resnais e Rivette entenderam o teatro como um espaço de jogo, como uma oferta de plus (de fora de campo, em suma) que serviria para ativar as virtualidades de encenação desta “fábrica dos sonhos” (ênfase no primeiro termo) com que convencional e ideologicamente se identificou o cinema. O teatro não necessita do quociente de realismo que é indispensável ao cinema; nele, o imaginário é criador de ser, imediatamente: uma pedra de papelão é aceita por nós “como uma pedra”, porque o contrato que o teatro estabelece com o espectador inclui o imaginário, o onírico, supra e infra percepções; afinal, ele se dirige ao olho humano, tecido de simbólico. No cinema, pelo contrário: um fundamento realista é indispensável ao pacto de crença, já que o olho primeiro a capturar o real é o “órgão” implacavelmente mecânico da câmera, que não perdoa tão facilmente os arabescos e artifícios – os frutos mediados do imaginário… E os autores que encareceram a teatralidade em seus filmes necessitaram chegar até nós através de um outro pacto – cheio de parênteses, de mediações: o contrato que se estende ao espectador culto, pós-pós, aquele que “entendeu” que arte é também (antes de tudo?) uma questão de linguagem. Mas não se trata disto aqui, porque, em A Pele de Vênus, a câmera não está a serviço do décor – do paradigma do teatro como representação – mas dos corpos dos atores; das personas propriamente. E não estaria assim tanto mais próxima do cinema, ao incidir basicamente sobre a matéria-prima humana essencial do teatro: um corpo e um texto? O realismo já está dado de antemão – ou não? – pois o raio que assombra o cenário do filme já aparece no travelling dianteiro pós-créditos – antes de entrarmos no teatro, portanto, o teatro já nos possuiu também. A coisa começa a complicar…

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O raio de Minerva inicia e acaba o filme (em uma rima inversamente proporcional: travelling dianteiro; traseiro): sobre o palco e diante da câmera, estamos destinados ao mesmo comensal de deuses, decalques dos mesmos arquétipos. Mas um espetáculo teatral possui senões e cisões que nenhuma outra arte pôde encenar sem prejuízo: o teatro sempre me pareceu uma experiência assustadora justamente por sua essência mediúnica – um ringue de presenças (contando o público). O cinema, por sua vez, me protegia com sua tela-cache (aprendi por instinto Bazin antes de lê-lo). Polanski elimina tudo o mais, e permanece no quadrante que outrora os deuses habitaram (na figura do coro); hoje, só temos uma câmera por testemunho. E o que ela acrescenta, em matéria de numinoso, de élan, de divino? A rigor, nada. Antes, menos: se a câmera é uma presença, é no sentido negativo (desmistificador) de uma quarta parede. Ficamos apenas com a nudez, mais ou menos marota, destes dois corpos, a princípio mascarados em demasia: ela, a estreante histérica que vai se revelar a mestra do jogo, a que detém o poder do coringa; ele, um auteur comprometido com tantos papéis, servil à la lettre do texto e à mulher que o espera, aos horários e às interpretações vigentes. Mas quem nos fascina ao final como sendo a senhora dos disfarces – quantos! – é ela. E ele, sob tantos jogos de cena e de senhor (passivo sempre, é necessário creditar), aparece ao fim como a mais arquetípica das figuras: a virgem sacrificial. Correlata a esta troca improvável de papéis, temos as prestidigitações da luz, que transfigura a planura monocromática do proscênio italiano em uma profundidade de reentrâncias assombradas: todo cenário de teatro secreta uma cave expressionista, um duplo que se esgueira sob a sombra do Mesmo.

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Um espetáculo teatral é um ménage a trois: cenário, ator e público. Aqui, falta o terceiro vértice. O Duque de Blanchis foi passear… Mas uma câmera – por mais infra-estrutural (leia-se: realista) que seja a sua tarefa, deve ser incluída no rol do Desejo. Em A Pele de Vênus, é a alcoviteira que nos adverte das inflexões brejeiras da mulher e dos recuos intimidados do homem – a árbitra deste jogo de esconde-esconde essencial às paixões humanas e aos conluios entre o campo e o fora de campo. Quem “segura” a máscara por mais tempo? Quando Amalric começa a se travestir (e é claro que lembramos nesta hora do fantasma de Simone Choule, que assombra outro travesti na história de Polanski: o próprio, em O Inquilino), revemos o início do filme e vemos que este travesti é a consequência lógica, causal, do princípio; todo aquele que abdica da “letra” de um texto está condenado (ou salvo?) às libações do espírito, à vertiginosa ronda da interpretação: à casmurrice do erudito, à brejeirice da criança, ao bricolage do amador. O teatro, como a vida, é um jogo perigoso, pois implica uma incondicional abertura aos lances dos Outros – a como vão ler e aplicar as regras. E a nos transformar em peões, não? O destino de Amalric está selado a partir do momento em que admite que o texto seja lido pela atriz – canibalizado por um outro status de ser, de Desejo, de leitura. Sim, aqui como em tudo, Deus (leia-se: o Autor) está morto. E, como aqui, crucificado sobre um cacto fálico.

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Se Seigneur vence o jogo e domina o predador (autor e encenador, ator aqui) é porque assenhora-se do conjunto das máscaras, do princípio de sua ronda: atriz, co-autora, iluminadora… Talvez à “política dos autores” seja necessário acrescentar, a esta altura da História e da arte cinematográfica, uma “Física dos atores”, pois não há injunção política que não se sirva desta arte lambisgóia que se aproveita do corpo como o decisivo instrumento de persuasão sensualmente mágica – e quem negará que precisamos mais dos arautos midiáticos de Eros e Prosérpina que dos legisladores de Júpiter e Minerva, pelo menos nos dias que correm e nos atropelam?

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