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O trauma, a fala

“O pior é essa raiva, que nunca passa.”

Desde A vizinhança do tigre (2014), Affonso Uchôa vem compondo um repertório de vivências marginais ancoradas no universo masculino. A começar pelos adolescentes deste último filme, cultivando uma liberdade ociosa na qual a zombaria e a alopração funcionavam como expressão de camaradagem. De maneira muito diferente, Arábia (codirigido com João Dumans, 2017) também lidava com um mito que poderíamos chamar de “masculino”: aquele do homem sem amarras, avesso ao pertencimento do universo doméstico e cuja solidão anônima terminaria por se dissolver na paisagem política. Sete anos em maio nos apresenta Rafael dos Santos Rocha: jovem, negro, homem. No entanto, como nos outros filmes, não se trata aqui apenas de retratar personagens homens, mas – é o ponto em que gostaria de insistir – de dar vazão a um tipo de experiência eminentemente masculina (e heterossexual, que fique claro), na qual encontram-se interpenetradas camaradagem, solidão e agressividade.

Sete anos em maio é o filme mais abertamente político de Uchôa até agora, na medida em que é uma obra com um alvo: a violência policial, ou seu resultado mais concreto, o genocídio negro. Mas falar em genocídio negro pode soar demasiado generalista para um filme tão circunscrito como Sete anos em maio. O termo, como se sabe, remete antes a um dado estatístico: que de todos os homicídios do país 70% são cometidos contra pessoas negras; que um jovem negro tem 2,5 chances mais vezes de morrer que um jovem branco. Porém, se a estatística, por mais eloquente que seja, pode convenientemente se transformar em abstração, Sete anos em maio nos incita justamente ao movimento contrário: ele torna impossível tratar esse genocídio como abstração. Não apenas porque os fatos narrados por Rafael dos Santos Rocha são incontornáveis, mas pela própria dimensão de sujeito que o personagem adquire através do processo de escuta articulado pelo filme.

Trata-se da escuta de um trauma: sete anos antes, Rafael dos Santos Rocha chegava em casa do trabalho quando foi abordado por quatro policiais. Tomado por traficante, foi ameaçado, extorquido e torturado. Fugiu desorientado para perder-se no mundo. O filme revisita esse trauma da violência policial em três etapas. A primeira sugere um pesadelo ou, antes, uma espécie de psicodrama em que quatro sujeitos esfarrapados – que em outro contexto poderiam ser pares do próprio Rafael – disfarçam-se de policiais e o abordam em um descampado. A cena do trauma é, assim, refeita. O dispositivo da farsa é anunciado no início do filme, quando os sujeitos vestem peças de uma farda encontradas casualmente em uma mala. O que essas figuras, surgidas do nada, como sombras formadas no escuro a partir do fogo, encarnam é a maldade e o sadismo corrente das abordagens policiais. Essa maldade pura e gratuita constitui o evento traumático que é revisitado aqui e que servirá de impulso para o restante do filme.

Corte para Rafael vagando pelos lugares onde foi torturado. Passada essa revisita ao lugar do trauma, tem início um segundo momento do filme, em que o trauma é novamente revivido, mas agora com a ajuda da fala. É uma espécie de momento divã, em que Rafael narra sua história e as frases fluem com a naturalidade de um testemunho. A fala aqui não é apenas um relato do que ocorreu. Ela é o território no qual efetivamente se revive o trauma. Nesse sentido, ela adquire o caráter de um ato do presente. Um presente que é dado pelo plano-sequência, com uma fala ininterrupta de mais de dez minutos sustentada pelo desejo de contar, de externalizar a própria história. O que a verborragia expressa é essa vontade de pôr para fora, a ansiedade diante da revisita do trauma. A fala dá corpo à violência do evento traumático, estabelecendo um terreno de pathos que mobiliza menos comoção ou sentimentalismo do que o medo, a revolta e o ódio.

Até que chegamos ao fim do relato, e o fluxo de palavras até então ininterrupto vem suscitar um contracampo que revela um ouvinte. Esse ouvinte (Wederson Neguinho) funciona a um só tempo como espelho e como um portal que repercute a história de Rafael. Como este último, ele também é jovem, homem e negro. Estabelece-se uma relação de identificação entre os dois: “Sua história é igual à de muitos que encontrei por aí.” “Você também já apanhou da polícia?”, pergunta Rafael. “Já apanhei.” Mas esse espelhamento não é apenas uma duplicação: de certa forma, ele multiplica a história de Rafael. A figura do ouvinte, cuja interpretação, aliás, é significativamente menos naturalista que a de Rafael, tem como função amplificar e tornar geral uma história particular. Refletida nessa figura, a história do personagem reverbera como uma entre muitas de outros jovens homens negros como ele.

Há uma tentativa por parte do filme de criar um sentido de comunidade entre esses dois jovens. No entanto, diferentemente de outros filmes de Uchôa, aqui essa comunhão se dá menos nos termos de uma camaradagem do que de uma “assembleia”, na qual experiência de Rafael será analisada, elaborada, para que o relato individual possa ascender à arena do político. Sob a luz da fogueira, eles discutem como se sentem diante do mundo, da injustiça, da violência. Imaginam como seria um mundo em que houvesse justiça. Há um sentido quase “cívico” na cena, ainda que tímido, mas que é reforçado pela diferença de registro nas interpretações de Rafael e do ouvinte. Essa elaboração da experiência individual, no entanto, permanece fiel à órbita dos personagens: os dois rapazes refletem sobre o lugar que ocupam no mundo, mas a partir de uma ótica própria e não da perspectiva “do mundo”. Não há o sentido de vitimização que seria conferido pelo olhar da sociedade sobre eles. Pois esses jovens não são dados estatísticos (“vítimas sociais”), eles são sujeitos: têm anseios, emoções, sentem vergonha, paranoia, medo. Sentem raiva.

O encontro com o ouvinte, e o sentido de comunidade suscitado por ele, conduz à terceira parte do filme, que inicia com um plano de pés de uma multidão. Como um exército de zumbis sem sapatos, eles marcham para uma praça onde tem lugar uma brincadeira perversa: um jogo de Morto-Vivo conduzido por um policial fardado, que vai eliminando progressivamente aqueles que erram. Se o plano dos pés parecia anunciar para este ato final um movimento em direção ao revanchismo catártico – numa via mais populista, baseada na associação automática entre coletividade e resistência e da qual Bacurau (Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019) é o emblema mais recente –, aqui fica claro que a escolha de Sete anos em maio será pelo luto: reviver o trauma, mais uma vez. Somos obrigados a assistir aos jovens serem eliminados um a um pela voz de autoridade odiosa do policial. Como se o filme nos posicionasse à força como testemunhas das mortes dos jovens negros. É uma cena desconfortável, cujo mérito está menos no achado da metáfora do que no próprio constrangimento de seu desenrolar – sem o qual a metáfora facilmente se esfacelaria no ar como uma bolha de sabão.

Mas a cena não deixa de criar um certo impasse. Se, por um lado, o desvio do populismo fácil e triunfalista pode ser visto como demonstração de maturidade, por outro, o aspecto anticlimático da cena deixa patente um represamento da energia produzida pelo relato de Rafael – a violência, a raiva e o ódio mobilizados por ele. Aqui talvez quiséssemos voltar para aquele momento de assembleia um pouco antes, para a conversa entre os dois jovens. Talvez quiséssemos saber um pouco mais sobre eles, o que pensam, como veem o mundo. À luz do dia, sem nenhum véu entre nós e eles.


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