cabeçalho Vaga Carne

A fartura da fratura

[Os entretítulos em itálico são trechos do texto de base do filme]

Você quer que eu seja uma mera representação de você, carne: você é patética!

Vaga Carne é um texto escrito por Grace Passô, encenado como peça de teatro desde 2016. O filme aqui em questão a transcria durante pouco menos de cinquenta minutos e é dirigido pela autora do texto e por Ricardo Alves Jr – que também fez parte da equipe de criação da montagem teatral da obra.

Isso não é meu. Eu sou um fluxo sonoro.

A história que acompanhamos é a de uma voz. Uma voz que atravessa coisas, corpos, objetos e substâncias variadas. A vida dessa voz dentro do corpo de uma mulher em específico é a situação principal do enredo. O que vemos é a experiência dessa vocalidade encarnada num corpo e seu trajeto dentro da matéria, seus estranhamentos, prazeres e comentários. Nesse drama quem faz a jornada é a voz. O conflito do enredo é justamente um apego à matéria do corpo humano.

É um susto. É o diabo. É tudo junto.

No teatro, a força motriz da situação de presença – no caso do monólogo encenado por Passô – era ver e sentir aquele corpo em sua inteireza se explorar em seu vertiginoso potencial de estranhamento, naquele espaço nu. A tensão dramática se apoiava no fato de vermos ali uma voz – que seria “naturalmente” proveniente do corpo que também vemos – se comportar com singular inadequação em relação a sua matriz corporal. Esse cruzamento entre a inteireza da presença material sentida e a expressão de uma fratura encenada embalava o que entendo ser um dos trabalhos mais relevantes da arte brasileira do nosso tempo

Olhos são faróis? Ou são facas?

Um filme engendra em si inúmeros atos de recorte e recomposição. Daí, por exemplo, a tensão inerente ao teatro ou performance filmados. A premissa pictórica do cinema cria um dentro e um fora, cria uma dimensão de mostração ótica onde os dados gráficos e pictóricos organizam um vetor de energia inerente que cinde-se em pelo menos dois planos, aqui e lá. Enquadrar é escolher um ângulo e um conjunto de elementos, enquanto se deixa outros de fora. Um plano é sempre um ato de ênfase, de apontamento de uma concentração de forças – e também um ato criador de um “fora”.

Se virássemos este corpo ao avesso, vocês entenderiam: aqui é um lugar escuro, escuro.

Tornado filme, Vaga Carne escolhe o teatro como espaço. Assim como a obra recente de Eduardo Coutinho ou, por exemplo, Dois Casamentos (2016) de Luiz Rosemberg Filho, essa meta-locação se torna espaço de exercício de dobragens do imaginário, onde cada ação é também uma espécie de comentário de si, por conta de estarmos no templo do artifício.

Sei também que vocês têm dificuldades de entender o que não é vocês mesmos.

É nítida a afinidade deste média com boa parte da obra de Ricardo Alves Jr. para cinema. Assim como em Permanências (2011), seu trabalho se interessa pelo corpo filmado explorando potências vibráteis, delirantes, nunca aparentando centramento ou o que poderíamos chamar de “personalidade individual”. O trabalho de Ricardo Alves Jr. está interessado numa dimensão menor ou maior que o humano, sem que haja nisso um corte moralizante de “desumanização”.

Eu não gosto muito de nomes humanos, eu não gosto.

Há portanto, uma aguda crítica ao fato de que a ideia de humano – “são”, “sadio”, “dono de si”, “individualizado” – carrega uma carga ideológica que torna essa noção um vetor de poder e controle sobre o que pode um corpo. Ela produz norma. Não por acaso, Ricardo trabalhou com atores que eram usuários da rede pública de saúde mental em mais de uma de suas obras. A consistência em comum de seu cinema se dá a partir de uma pesquisa que busca formas visuais e sonoras justas para subjetividades que são usualmente alijadas da idéia de “humano”. A incomum potência plástica e coreográfica de seus filmes se apóia num agudo senso ético que entende que a questão política principal não é incluir estas aparições dentro de uma forma criada pela epistemologia que os subjuga. Mas sim buscar um entrelugar de expressão que respeite e potencialize sua linhas dissidentes, que esculpa uma beleza específica em contato com estas pessoas e lugares. O curta Tremor (2013) é um dos evidentes exemplos disto.

Vim até aqui proferir sons de vossas línguas limitadas.

O conjunto dos trabalhos de Ricardo trabalha a plasticidade dos espaços, onde o fundo da imagem é sempre agente de força expressiva, quando não o principal. A lida com as baixas luzes em Elon não acredita na morte (2017), aliada à persistência deambulatória do protagonista, faz com que, num efeito expressionista, a forma dos espaços apresentados se torne a apresentação material dos estados de inconsciência explorados pela narrativa. Desde pelo menos Convite para jantar com o camarada Stalin (2007), Alves Jr. investe num limiar expressivo onde personagens e espaços se confundem como agência principal da sensorialidade fílmica. Quase como se a missão plástica dos filmes fosse operar o deslocamento perceptivo de quem vê, de modo a perceber a vitalidade não vivente do que rodeia os corpos. Essa espécie de vigor mortuário atravessa a obra de Ricardo também no teatro. Não só na vagueza dessa carne aqui, mas também, por exemplo no Discurso do Coração Infartado (2013) – como o próprio título atesta. Tal estado é a zona performática a partir da qual Vaga Carne, filme, também se desenvolve.

O oxigênio é uma tragédia. O ar quer mandar em mim.

Esse ímpeto íntimo de flerte com o “depois da vida” ganha contornos ainda mais evidentes numa opção que o filme toma e que o texto original (publicado em livro pela Editora Javali), não indica: a inclusão da canção Juízo Final– também presente de maneira emblemática no curta Material Bruto (2006) de Ricardo Alves Jr. . Nelson Cavaquinho, em especial, se concentrou em constituir um universo poético de “afetos fúnebres” em boa parte de sua obra. Sua estética, já desobediente pela forma do canto e do dedilhar único do violão, violou mais esse tabu: tomar para si a elaboração poética frontal do morrer. À necropolítica, o ex-policial e artista carioca respondeu como uma forma de “necropoética”: um estado de elaboração abundante e íntima do tema da morte, do desaparecimento, acompanhada de estratégias expressivas desobedientes e desestabilizantes (o canto fora do padrão, o violão “dedado”, de cordas soltas, quase oriental), ligado a processos múltiplos de retenção cultural negra. É nesta linhagem que Vaga Carne se constrói.

Há outras formas de vida e isso é necessário ser dito.

O encontro das nossas principais personagens, a voz e o corpo, não nos dá nenhum indicativo de que isso se dá no “mundo dos vivos”. Tal estado de indecisão e de atravessamento que a voz possui coloca a linha divisória da vida e da morte no fundo escuro da imagem. A voz, dentro do corpo, na parte final do filme, insere uma espécie de cano perfurante dentro de si. Pela baixa iluminação não temos certeza se é sangue ou líquido preto. É suicídio ou mais um capítulo desse experimentar-se incessante, dessa odisseia material? (Afinal, essa distinção é factível aqui, se a ideia de “vida” não está posta?)

Você quer que eu te ajude a ser a imagem do que o outro quer ver.

A idéia de humano, de existência individual e centrada, pressupõe uma imensa sincronia entre nome, personalidade, background: um sistema excessivamente estável e uno. Vaga Carne trabalha sobre a zona de distensão e experimentação dos estados de dessincronia da experiência corporal. A marca da interpretação singular de Passô é justamente essa de separar o tom da intenção, a palavra do sentido, e trabalhar variações outras, que constituem, na verdade o centro do enredo: uma voz lidando com um corpo, sob o prazer doloroso do desacordo. Isso produz um ambiente muito fértil para a exploração performática, potencializada pelo mote metadramático que a embasa. A curva principal do enredo é a jornada dessa voz, sua inadequação e seus conflitos. E o problema é justamente quando coincidem.

Devo te agradecer, carne, sua máquina me ensina.

Além do corpo-enredo, a cena vai revelando outros elementos. O ambiente espacial é construído de forma a variar de maneira incerta. Num primeiro momento, só a voz, no preto, por minutos, apresentando a personagem. Depois, vemos uma outra mulher, flashes, logo depois, um refletor, um teatro vazio, Grace Passô sob fundo preto, e depois disso, aos poucos, sugere-se que há outras pessoas nesse teatro. Pessoas negras.

Está cada vez mais difícil me comunicar nessa língua de vocês.

Esses seres, depois de sentados como que assistindo à performance da mulher tomada pela voz, interagem com ela, num espaço comum, indeterminado. O cineasta André Novais Oliveira, parte dessa plateia, dá de ombros em certo momento de silêncio. Zora Santos se aproxima da voz-mulher num gesto que parece ser o contar de um segredo. Estas pessoas estão também tomadas por vozes? No filme, olham, mudas. No segmento seguinte, o corpo da voz vivido por Grace Passô adentra outros espaços, como que uma espécie de coxia maquinal, onde o filme termina. Neste lugar, se dá uma ação que sugere uma autoimolação, cujo sentido é transformado, porque, segundo o enredo, não parece correto chamar nossa protagonista de “vivente”, para poder então morrer. Morrendo, então, morrem o corpo ou a voz, ou ambas?

Eu já estou aceitando o tempo.

O que sugiro aqui como Necropoética, inspirado pelo trabalho em questão, é um conjunto de relações que não sugere, na arquitetura das autonomias que produz, a ideia de “humano” como horizonte. Portanto, soaria inadequado redizer aqui a bem intencionada cantiga “este trabalho humaniza a personagem”. Ao contrário, aqui não há humanidade nem mundo. Esta ficção especula sobre possibilidades que prescindem de tais ideias. Aposta em formas inconciliadas de ser e expressar. Neste sentido, o problema para a voz é quando ela se assenta com o corpo, gestante. Isso gera a crise, esse “apego”, essa aceitação de um mundo como o conhecemos.

Vozes existem vorazes pelas matérias.

Tal estranha forma de ontologia está também nas características visuais do filme. No longo início da voz sem corpo – tela preta – uma certa “escuridade” prevalece, atestada pelas baixas luzes que predominam depois. Estes estágios muito próximos da ausência de informação – como a tela preta e o silêncio, que são as duas pontas desta singular narrativa – são a evidência carnal de uma intimidade com o desaparecimento e um interesse nos seus efeitos expressivos de opacidade. Vaga Carne é uma interrogação encarnada. Tanto que termina na sugestão de um complemento que não vem. A mulher diz que “vai dizer” e não ouvimos o quê. No teatro, esta cena era escura; no filme, sua voz some, fica o alto ruído de fundo, tornado protagonista.

Que nome vamos dar a essa carninha?

No som, durante os créditos finais, ouvimos trechos emblemáticos das vozes de Marielle Franco, Nina Simone, Dilma Roussef, entre outras. Em uma obra que não trabalha nenhum signo tão fortemente histórico, tal detalhe se amplifica. De certa maneira, a força deste que é um dos mais originais trabalhos de um dos melhores anos do cinema brasileiro em todos os tempos – 2019–arrefece em sua qualidade de interrogação abundante e desobediente. A estranheza ativa do conjunto não se esvazia de todo, mas os signos “mulher”, “negra”, ocupavam, dentro da maquinação poética do filme, uma função ao mesmo tempo concreta e especulativa, cujo potencial é diminuído pelo suplemento de “compreensão” do ultimíssimo segmento. Tudo o que a “cena” da última mutação do necrocapitalismo quer é que uma mulher negra “diga”, que venda barato caminhos. Vaga Carne trabalha peristalticamente sobre o vigor da recusa em dar esse biscoito pro entendimento. Entender é incluir num sistema pré-existente, como afirma o escritor Édouard Glissant.

Você me quer como uma ilustração disso quem você chama de vida.

A transcriação desta mundana comédia pro cinema – meio maquínico e dessubjetivante – conduziu o drama numa direção onde o humano é um parâmetro – em comparação – mais ativo. Toda a presença material do espaço da sala teatral que era solicitada pela eventual ausência de cena (humana) não é objeto de investimento prioritário quando ganha as telas audiovisuais. Um flash de um cachorro no início, um refletor em close, não são sugeridos, pela constelação do filme, como figuras de autonomia, passíveis de voz, vetores de força. A voz, a protagonista, nos diz que já esteve em caixas de som, revólveres, projéteis. Tanto o texto original quanto a obra pregressa de Ricardo Alves Jr. abundam de movimentações na trilha deste descentramento das forças.

A máquina desta mulher está desviando o percurso correto do sangue.

A amplitude gramática do trabalho de Passô na trinca Temporada (André Novais Oliveira, 2019), No coração do Mundo (Maurílio Martins e Gabriel Martins, 2019) e Vaga Carne é mais do que expressiva. Será difícil encontrarmos alguma atriz que num espaço tão curto de tempo tenha podido trabalhar paletas tão diferentes. A presença aqui de Gabriel Martins (montagem), André Novais, Ricardo Alves Jr., além do fato de ser uma obra comissionada pela Mostra de Tiradentes – onde Grace foi homenageada – atesta algo extraordinário em curso em Minas Gerais, no cinema e nas artes em geral, neste século. Ficamos no aguardo dos próximos passos também de Grace Passô como realizadora em cinema, pois este é, sem dúvida, um dos filmes de estreia mais originais de que se tem notícia. E o diálogo entre as artes é muito menos frequente que o desejável. Que seja o início de uma fértil trajetória. Viva a mortal voracidade das vozes.


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