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Antiestética da voracidade

I. (desdobramento)

A construção de uma misantropia contraditória, mistura anômala de ingredientes que não se encontram em qualquer prateleira: no caldeirão fervendo, jogue uma caricatura do Übermensch nietzschiano, uma visão bizarra da Virtù maquiavélica; uma pitada de Conde Drácula, uma de Dr. Frankenstein, outra de delírio solipsista, acrescente a sociopatia típica da classe média brasileira — paranoia armada, misoginia, homofobia, racismo… À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), o terceiro longa lançado em cinema dirigido por José Mojica Marins – o “cineasta do excesso e do crime” – é o primeiro a apresentar a perturbadora personalidade de Zé do Caixão. Não seria exagero afirmar que assistimos ao processo de desgraçamento do referido personagem. Sua busca pela eternidade se apresenta não como o signo de um ideal religioso, mas através de uma representação canhestra da filiação procriadora, da continuidade consanguínea, da hereditariedade. Zé do Caixão anuncia aos berros, logo nos primeiros minutos de filme: “O sangue é a razão da existência!”

A imprevisibilidade e a ignorância das causas de nossos suplícios nos leva à insegurança e ao medo: eis o ciclo infernal que nunca se encerra. Seus filmes veem e projetam o ciclo como delineação criadora, a criação espantando as boas intenções, e não cessam de nos advertir para o que será mostrado de forma mais crua e sem véus possível: “não fiquem, abandonem esse filme”, nos aconselha a cigana, a única personagem que conhece a história do princípio ao fim. Segue-se o primeiro de uma série de enterros. Pois Zé do Caixão é, antes de mais nada, um assassino. Tudo o que lhe parece frágil soçobra à sua frente. As mulheres são vistas apenas como um meio para a realização de seu ideal de eternidade. Ele as violenta sucessivas vezes e não para: simula suicídios, cega e ateia fogo ao médico da cidade, agride um indivíduo com a coroa de espinhos de Jesus, promove carnificinas reais e espirituais, desafia os mortos, a Umbanda, a Igreja Católica, sua própria cidade que detesta e despreza. A sanha assassina e o ódio ao ser humano contrastam com seus desejos de perpetuação da existência. Mas se coadunam com a necessidade de destruir os mitos em torno da vida, da morte, da religião e da fé, para ele símbolos da ignorância e da fraqueza humanas que pretende superar.

[Demarca-se, desde já, uma oscilação entre criador e criatura que atravessará toda sua obra, sem que as posições necessariamente se misturem ou se confundam. É o que chamarei aqui de desdobramento, como no termo psiquiátrico “desdobramento da personalidade”. Ora Zé, ora Mojica, misturados em proporções e sentidos diversos, ora nenhum dos dois, proclamam a destruição e, em alguns momentos, a autodestruição, o dilaceramento interno. Como arte da fantasmagoria e da abertura ao demoníaco, o cinema de Mojica se espoja em seu próprio caráter autofágico: toda imagem é póstuma, assim como todo ser vivo encerra em si mesmo o horizonte de sua própria morte.]

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No filme seguinte, Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967), abre-se o campo de possibilidades para uma tese psicológica: a exploração da culpa e da paranoia. Quando o filme começa, o letreiro anuncia que Zé do Caixão foi “assombrado por alucinações”. De fato, há um foco maior no processo de degeneração psicológica do personagem, sob a forma da angústia diante dos sucessivos fracassos. Assim que sai do hospital, Zé do Caixão olha sobre a cidade: “O povo continua o mesmo, ignorante…”. Também lançado em 1967, Terra em Transe (Glauber Rocha) traz uma cena semelhante — Jardel Filho (ou Glauber), tapa a boca do homem comum (Flávio Migliaccio) que balbucia conformismo e diz: “é isto o povo, um ignorante, um analfabeto”. Em Esta Noite…, o povo segue manipulado, desta vez não somente pela fé, mas pela rede política formada pelos coronéis, padres e policiais. O enredo se volta para os contrastes sociais e para a forma como os poderosos manipulam a imagem de Zé do Caixão com o objetivo de usá-lo como bode expiatório para seus interesses pessoais.

Ao mesmo tempo, Zé renova seu projeto: encontrar a “mulher ideal” para gerar um “filho perfeito”. Surgem os bichos da criação, cobras e aranhas usadas tanto para satisfazer seu apetite científico (“sadismo não, ciência!”), como para aplicar testes nas pretendentes — “pequenos sustos para medir a coragem”. O verme, contudo, não é metafórico, mas real. Corrói a carne, bebe o sangue e nos enreda nos ciclos inexoráveis da existência: ”a vida é o início da morte, a morte é o fim da vida”. Como em À Meia-Noite…, a imortalidade está no sangue, na procriação da espécie, assim como nossas virtudes e defeitos. O sangue é tanto condutor moral, como lacre de segurança nobiliárquica. Essa premissa permanece, mas sofre um reajuste: desta vez, Zé do Caixão não deseja viver através de um filho, mas gerar toda uma raça superior “que se tornará imortal pela doutrinação dos instintos”, libertando-se do círculo infernal da ignorância e da superstição. Zé do Caixão adquire as feições tanto de um “espírito livre”, um fora da lei, como também de um eugenista, um misógino genocida em busca da depuração da raça. A partir daí, submete os indivíduos ao sofrimento excruciante até assassinar uma mulher grávida. Zé do Caixão passa, então, a sofrer as mutações da culpa. Escuta a maldição de suas vítimas, despenca em um inferno multicolorido e asfixiante. Intensifica-se a contradição entre o agnóstico radical e o ser macabro que invoca as “forças do além”: a intervenção sobrenatural como delírios de um anormal. Em Ritual dos Sádicos (1970), o longa seguinte a ser protagonizado por Zé, emerge a fórceps uma terceira personalidade a partir de um jogo de espelhos autoconsciente. Logo nos primeiros minutos, o desdobramento da personalidade se materializa na sucessão acelerada de imagens de Zé do Caixão. “O meu mundo é estranho”: MojiCaixão, o patológico.

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A patologia se radicaliza. A invenção radicaliza. O desdobramento da personalidade se adensa: Finis Hominis (1971) encarna uma quarta personalidade, além de José Mojica Marins, do personagem Zé do Caixão e dos desdobramentos. Um homem aparece nu e depois, com suas roupas hippies e ares místicos, põe em andamento ações contrárias à misantropia de Zé do Caixão. Finis Hominis faz justiça e intriga a população. Os clichês do gênero do terror — por exemplo, a alusão aos cemitérios — são reorientados dentro de uma lógica de invenção, por exemplo, a partir de movimentos de câmera em vai-e-vem, utilização do still, alternância P&B/colorido, intervenções na própria película, ritmos imprevisíveis — por exemplo, no início do filme, a bunda masculina que atravessa o plano em movimento intermitente, parecido com os movimentos que veremos mais tarde na introdução de Salve-se Quem Puder (A Vida) (Jean-Luc Godard, 1979). Sobressalto dos humores, do solene ao jocoso, do tenebroso ao singelo, da piada à desgraceira. O patológico se renova através de um personagem anticapitalista, que defende ideias pueris, segundo as quais as pessoas deveriam se orgulhar do que são, construindo uma felicidade autêntica sem prestar contas à hipocrisia dos valores sociais. Emerge uma outra faceta de José Mojica Marins, o desmistificador enquanto inventor: “Não fui eu que inventei o horror: o horror existe no cotidiano. Meu filme apenas reflete um pouco desse horror. O que eu inventei é o filme. Tive garra pra fazer esse filme, inventando sempre o que ainda não foi inventado, porque aquele que inventa o que já existe deixa de ser inventor.”

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II (fulleragem)

Parece que hoje se torna cada vez mais necessário evitar pensar Mojica à luz da lógica asfixiante do cinema de gênero. Há comparações possíveis com o Cinema B norte-americano, com Romero e Roger Corman; com os filmes da produtora inglesa Hammer, giallos, slashers e splatters. Há também o Mojica da “fulleragem” (já explico), capaz de evocar um grito tenebroso de vitalidade através de excessos e contrastes berrantes. Mas o que nos seduz e intriga é o Mojica demiurgo, inventor do que ainda não foi inventado, seguro de suas próprias invenções. Seria preciso então, continuamente, recapturá-lo das associações precipitadas ao primado do gênero e reinscrevê-lo na potência política do Cinema Brasileiro. Para isso, me parece necessário distanciá-lo da tradição referente ao horror e realocá-lo nas tendências mais inventivas do século XX. Restringi-lo a um “Mestre do Horror”, além de incorreto (pois dedicou-se a extrapolar esse papel), implica em situá-lo sempre em relação ao cinema de gênero, sob o primado hegemônico anglo-saxão. E isso, na maioria das vezes, a título de comparação, que, devido às idiossincrasias terceiromundistas, acabam por diminuir seu trabalho, associando-o ao registro cômico do “Cinema Trash”.

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Em uma aproximação mais justa com sua grandeza, ele extrapolaria o epíteto atribuído ao “mais marginal dos cineastas”, Samuel Fuller, e “seu cinema físico, rude e simples”, capaz de “fabricar emoções com personagens sem prestígio e com situações sem glória.” Há uma linha comum, ainda que sutil, atravessando o trabalho dos dois: são cineastas do Patológico, ao passo que Ray, Candeias, Glauber são cineastas do Mitológico. Entre os cineastas do patológico, não se trata de uma história a ser narrada, mas de formular canções devotadas à desgraça, canções com estrofe e estribilho. Suas aparições e discursos empolados, o medo e a intriga que provocam, a crueza terrível da violência que praticam, ideias recorrentes, funcionam como recorrência patológica. Como se diz em poesia, Mojica entoa um canto de júbilo pela imbricação entre a desintegração psicológica e a mágica fantasmagoria do cinema. Um canto desprovido de aspectos épicos, devotados à impossibilidade da pureza, às terríveis manifestações do instinto humano e das personalidades singulares. Um canto à desgraça coletiva, canto de lamento por uma pureza bárbara que atravessa todos os movimentos da realidade, incidindo sobre aspectos dramáticos, cênicos e, acima de tudo, técnicos.

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Um canto, porém, deve ser o portador de um senso de pertinência e, para isso, deve manifestar sua própria forma de expressão. Sob esse aspecto, Mojica é o cineasta da ameaça — “ele ameaça as relações normais entre os atores, entre a câmera e o décor, o diálogo e a realidade” — sendo igualmente o detentor do “segredo da comunicação”, uma forma de acessar o coração do público pelo susto e pelo contraste. Os efeitos especiais, muitas vezes desconsiderados por insuficiência técnica, atingem na tela uma alta carga expressiva, partilhando com o espectador o sentimento dilacerante de seus anseios. A procissão dos mortos em negativo, o efeito de stop motion para criar a imagem da aura da primeira alma penada, a imagem terrificante de Lenira enforcada, constituem visões situadas entre o terror real de uma linguagem comum. A mitologia do horror rural, por exemplo, em paralelo com o terror provocado pelo cinema e os artifícios que fundamentam o gênero. A forma da montagem em Mojica é disjuntiva, simbólica: a noite, a coruja, o tempo. Efeitos e procedimentos, portanto, que não simulam uma irrealidade, tampouco representam imagens do transe, do inconsciente, do sonho. Pelo contrário, Mojica – ainda mais explosivo que Fuller – enquadra como quem apreende um rasgo, um acorde afetivo, e joga com sua intensificação às raias do exagero, entranhando na imagem cinematográfica a desfragmentação de personalidade de seu personagem.

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Trata-se, então, de vincular Mojica aos traços de um cinema que reporta a uma imagem mais física do que semiótica, de um cinema que busca uma “antiestética da voracidade”. Esse termo, utilizado por Rogério Sganzerla de forma pejorativa em uma entrevista realizada em 1987, pretende expor um modelo industrial de cinema-chamariz, de cinema a qualquer custo nos estertores da Embrafilme. Pode, contudo, nos servir aqui, de forma positiva, para formular uma hipótese: e se esses cineastas da exposição seca e dura dos conflitos, das expressões patológicas simples e diretas, desprovidas de adornos atenuantes, da crítica à moral por dentro de seus embates mais mesquinhos e seus anti-heróis deslocados, esse cinema não seria voraz por abrir mão de se utilizar dos aspectos mais “artísticos” da mise-en-scène, substituindo o apuro técnico por um recorte bruto, uma visão que se projeta violentamente sobre quem vê? E essa “antiestética” não poderia designar a aposta redobrada desses artesãos da “emoção rude” na reapropriação e na reinvenção dos primados fluentes, “estéticos”, do cinema clássico, revirando pelo avesso o arcabouço técnico e teórico europeu dos séculos passados?

Se esta hipótese tem fôlego para seguir, é importante notar que um cinema de “grossura total” não faz uma antiestética. A linha de fuga em Mojica, uma visão divergente — isto é, não empática — da percepção, parece atender, simultaneamente, a dois axiomas contraditórios postulados por Rogério Sganzerla (apud Jairo Ferreira) sobre Mojica:

Primeiro: “O natural é tão falso como o falso. Somente o arqui-falso é realmente real”.

Um cinema que não mantém nenhum compromisso com o naturalismo, seja da forma, seja da situação. Ou melhor, forma e situação se imbricam para revelar aos espectadores as visões de uma mente conturbada. O inferno colorido em Esta Noite… e o delírio lisérgico de Ritual dos Sádicos, interpretado muitas vezes como insuficiência técnica ou estética, constituem exemplos cristalinos das funções do “arqui-falso” em seus filmes. Mas destaco um exemplo especial: em À Meia-Noite…, valendo-se de uma entonação exagerada, propositalmente inverossímil, Zé do Caixão adentra em uma espiral delirante de culpa e decepção através de um admirável plano contínuo que acompanha seu processo de esgarçamento psíquico. Um raio estoura à distância: tempestade, ventania, portas batendo. Zé do Caixão ouve ameaças advindas diretamente do além. Ele se movimenta pelo espaço, explorando e dilatando a profundidade da sala. Vemos sua agonia enquadrada por uma mobília pesada, estátuas que aos poucos adquirem feições de elementos vivos. Ele fala com as estátuas, confundindo-as com as mulheres e homens que assassinou. Depois, interage com um lustre, esmerando-se em uma interpretação arqui-falsa, shakespeariana, que responde pela ambiguidade entre ódio, culpa e expiação. Zé do Caixão implora para que os fantasmas do passado levem sua alma ao mesmo tempo em que se desespera por não conseguir realizar seu objetivo. “Eu quero o fim do mundo!”, e, desafiando a criação, bebe um gole de vinho no gargalo: “nada é mais forte do que a minha descrença!”. A instabilidade toma conta de sua personalidade. Na expressão arqui-falsa, inverossímil, de suas visões, reside a estrutura visual patológica de uma psique.

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Segundo: “Quanto mais realista a atmosfera em que emerge o absurdo, mais absurdo será o resultado.”

O realismo da cena, do próprio acontecimento filmado, desdobrado em um antinaturalismo, em um cinema absurdo, um teatro de sombras que é, provavelmente, o reflexo das tendências autodidatas, antiestéticas, de todo o contexto instaurado por Mojica, envolvendo técnicos, atores, etc. Realismo e absurdo não se ligam diretamente à ideia de representação do real, mas podem ser pensados sob dois aspectos:

a) A captação da unidade espacial-visual no preciso momento em que a câmera começa a filmar. Nesse momento, a mise-en-scène já foi formulada e há algo no processo-Mojica que depende unicamente dos movimentos captados nesse espaço; ou, melhor, do escoamento temporal e das modificações daquilo que está sendo filmado. O plano contínuo em À Meia-Noite…, descrito acima, pode servir como exemplo de um realismo radical, “realismo absurdo”. O filme onde esse procedimento parece atingir seu auge é Finis Hominis, sobretudo nas cenas iniciais, em que o personagem Finis está completamente nu.

b) Poucas vezes na vasta história do cinema de horror vimos um procedimento como o que assistimos em Ritual dos Sádicos. Mojica suspende provisoriamente a história para exibir a simulação de um programa de televisão, como quem convida a realidade para julgar o valor de sua ficção. Recorrendo ao modelo de sabatina característico dos programas brasileiros de TV dos anos 60, Mojica cria uma linha narrativa acessória, uma linha de comentário que incide sobre a ficção. Entre os entrevistadores, a turma “experimental” da Boca do Lixo: João Callegaro, Maurice Capovilla, Carlos Reichenbach, Jairo Ferreira e Walter Portella. Ao ser chamado de “Sr. Zé do Caixão”, responde: “Me desculpe, mas Zé do Caixão ficou no cemitério. Você está falando com José Mojica Marins”. Esta linha opera a função de multiplicação de perspectivas. O realismo literário exacerbou a perspectiva individual autoral, enquanto o hiperrealismo de Mojica, o anti-autor, multiplica as formas de se verinventar o mundo e o cinema.

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III. (Mojica inventor)

Hoje parece inegável que, nas mãos de Mojica, o cinema adquiriu alta voltagem política em uma forma jamais vista anteriormente. Em George Romero, o corte político associava-se a uma estratégia de renovação do cinema de horror através do tensionamento racial. Parece justo afirmar que Mojica acrescenta a esta tensão um elemento catártico capaz de evocar imagens prementes das desigualdades brasileiras, ainda mais concretas do que algumas paisagens humanas, às vezes por demais esquemáticas, pintadas pelo Cinema Novo. “São invenções do Glauber”, dizia Candeias sobre os filmes de Mojica. Gustavo Dahl acrescentou: “Com suas componentes megalômanas e messiânicas, Zé do Caixão atende seguramente a um sentimento revanchista do lumpesinato contra a ordem estabelecida. É através da manipulação de poderes sobrenaturais que ele se opõe a valores estabelecidos.”

Inventor e invenção passaram desapercebidos? A invenção foi registrada enquanto invenção? Parece que diferença não é algo que se “reconheça”; no plano da invenção, não há espaço para “reconhecimento”. Ou, a partir de uma outra maneira de ver: para um pesquisador e crítico como Paulo Emílio Sales Gomes, que buscava a especificidade do cinema brasileiro como quem escavava uma flor no lodo, estranha e muito não ter considerado devidamente a obra de Marins. Não há praticamente menção em sua atividade crítica no Suplemento Literário (1956-1965) e demais colaborações, como Revista Realidade, A Gazeta e, por fim, Jornal da Tarde, onde não se furta a tecer comentários precisos sobre filmes de Tonacci, Candeias e Trevisan. Por sua vez, Jean-Claude Bernardet zombou de seu primeiro longa, A Sina do Aventureiro (1958), para ele um filme de “péssima qualidade, com finalidades estritamente comerciais”; atribuiu a Mojica a característica de um “revoltado raivoso e primário” e dispensou comentários acerca de sua obra posterior. Estava posto o problema-Mojica, para alguns um cinema sem eira nem beira, sem lugar, sem sentido e pertinência e, sobretudo, incompreensível. A descoberta internacional no início dos 90, com boom de reedições e homenagens, trouxe novas abordagens e novos problemas. No Brasil, surgiram textos com funções analíticas mais interessantes e interessadas nas revistas eletrônicas Contracampo e Cinética, marcos na renovação crítica em relação à recepção de seus filmes.

Se como afirma Welles, apud Jairo Ferreira, “um filme não é realmente bom senão quando a câmera é um olho na cabeça do poeta” — e, nesse caso, a câmera VÊ —, então as visões de Mojica referem-se a quê? Ele mesmo se explica na epígrafe de Manchete de Jornal – Mundo Mercado do Sexo (1978): “Respeitada seja a visão de quem quer ver; mesmo que essa visão provenha das projeções mentais de um cego”. Um cego poeta inventor, pintando em cores e contrastes, as agruras e bizarrices dos tempos modernos. “A invenção é essencialmente uma remodelação de estruturas e de funções por encadeamento no tempo”, considerando o tempo como devir, isto é, como processo de passagem e modificação das coisas. Pode-se dizer então que a invenção não se resume a uma expressão de criatividade, tampouco se dá ao acaso, por experimentação ou por variação espontânea. A invenção responde sempre como resolução de um problema, capaz de criar algo realmente inédito. A invenção concretiza um ser novo, um acréscimo de realidade objetiva. A filmografia de Mojica apresenta o gênero como suporte para um manancial aparentemente inesgotável de movimento, constituindo um vasto território de invenção que se posiciona em relação a problemas fundamentais do cinema e da política-poética brasileiras: a vertigem do nacional-popular, do “cinema industrial”, da espetacularização da miséria, da estética e da cosmética da fome, da estética do sonho, do cinema como “linguagem”, linguagem como experiência, experiência como relação…

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