Samuel Fuller: violação da memória encarcerada

outubro 3, 2013 em Em Vista, Fabian Cantieri

Mortos que Caminham, Samuel Fuller

Mortos que Caminham (1962), Samuel Fuller

Isto é uma escrita factual, baseada numa vida-obra ficcional”
Fabian Cantieri

Parece que um epiléptico mora ao lado
A prisão dorme ao pé da noite de uma canção dos mortos
Se marinheiros na água avistam os portos se aproximando
Meus dormentes irão fugir em direção a América”.

Le Condamné à mort”, Jean Genet
(livre tradução)

Nenhum homem é obrigado a ser obrigado”, fala o judeu Nathan ao dervixe numa peça de Lessing, à qual Schiller responderia mais tarde “por isso mesmo, nada é tão indigno para o homem quanto sofrer alguma violência, pois a violência o anula. Quem comete não faz nada menos do que contestar nossa humanidade; quem a sofre covardemente abre mão de sua humanidade.” Esse equilíbrio delicado entre violência e não violência é a vida itself, diria Samuel Fuller, dedicando todo seu craft cinematográfico a essa estranha harmonia.

Mas, antes do cinema, Sam era um homem da imprensa.

Na Park Row, rodeado por adultos numa frenética busca por notícias, eu crescia rápido, aprendendo principalmente sobre o lado mais escuro da humanidade. Havia uma montanha de informações a serem recolhidas e organizadas a cada santo dia, mas o que realmente vendia jornal era violência, sexo e escândalos”*.

Dama de Preto (1952), Samuel Fuller

Dama de Preto (1952), Samuel Fuller

Dama de Preto (1952) era o filme-homenagem que desenhava o mundo de sua paixão precoce – ainda moleque já dividia o tempo entre o colégio e a redação para ser assistente do The Journal. Não tardaria para então virar arquivista – condição que viria a ser a aula prática de história que a escola nunca o ensinou – mas, para além do desenvolvimento de uma memória impressionante e um conseqüente retrato fílmico daquele universo de Benjamin Franklin, Pullitzer e a gangue da Park Row (contam os fatos que este era o único filme financiado exclusivamente por ele, adicionando a lenda de que, fora mil dólares reservados para cigarros e vodka, toda sua conta bancária havia sido despejada na produção), o jornalismo trouxe impactos ainda mais profundos e essenciais em sua obra: o desenvolvimento de uma espécie de materialismo poético, no qual a criação só é possível a partir da lapidação da matéria. Sua poética finca raízes num factum est – no fato, ato de fazer a partir do real – e germina sobre sua violação. Este corpus decorrente de uma transgressão se substancializa numa fabulação concreta, dura, muitas vezes suja. Quase todo filme de Fuller é uma porrada inaparente.

Isso se dá, em primeiro lugar, pelas estratégias de decupagem onde sempre um plano, um enquadramento ou um movimento de câmera se desencaixa do usual. Essas “invencionices” têm a ver com a criatividade do cineasta, claro, mas se sobrepõem especialmente por um fator pujante: Sam Fuller é um diretor de filmes B hollywoodianos e isso implica também saber se virar com o que não se pode conseguir. Seu primeiro filme, Matei Jesse James (1949) contém algumas das sequências mais escuras do cinema americano dos anos 1940. Uma delas, talvez a mais marcante, é a que retrata Bob Ford (John Ireland) saindo do bar, logo após ouvir um violonista cantando sua covardia, a receber tiros de um canto escuro – breu que nos impede (a nós e a Ford) de vislumbrar à primeira vista o atirador, mas que também implementa o tom soturno da sequência inteira entre sombras e luz dura, expressionista até a alma. E assim é com a montagem dos pés que correm em Renegando o Meu Sangue (1957), em que a idéia surge não por um insight demiúrgico, mas pela simples ausência do protagonista no set; ou com a coragem de filmar a cena da tempestade de Paixões que Alucinam (1963) sem ter um tanque subterrâneo de drenagem, transformando uma das cenas mais importantes do filme em uma one-time-shot que nenhum gerente de estúdio jamais aprovaria. É claro que, por outro lado, às vezes o sacrifício é pesado demais para salvações como o final claramente posto à força de Mortos que Caminham (1962), mas, no geral, Fuller sabia como poucos vandalizar a tradição e os mandamentos dos estúdios.

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Eu Matei Jesse James (1949), Samuel Fuller

Eu fiz Capacete de Aço em dez dias. Dez dias! Um set. Metade de um dia com toda a equipe no Griffith Park! Usei 25 universitários como figurantes. (Só) 25 homens! Não tínhamos dinheiro para mais nada. Eu os fiz parecerem umas 350 ou 400 pessoas. Às vezes, quando você não tem grana, você improvisa, e o resultado é melhor”.

Fuller é ainda um daqueles cineastas cuja vida se entranha pelas obras por uma inevitável imanência natural. Não há como dissociar plenamente um do outro e não há como pensar seu projeto artístico (e pode parecer uma insanidade incutir a idéia de um projeto embasado, quase como antevisto a fórceps, mas basta um breve olhar atento em sua carreira para percebermos tal coerência) sem ter em vista o grande corte epistemológico de sua biografia: a guerra. Depois de um período como repórter policial, foi escrever roteiros em Hollywood e, à notícia da eclosão da segunda grande guerra, Fuller não só se alistou como voluntário, como pediu para ser encaminhado para a Infantaria – lugar daqueles que não tinham muito como escolher seu regimento, ou dos lunáticos como ele, que queria vivenciar a notícia do século na linha de frente. Um dado curioso é que, diferente de Ford, Huston ou Capra, Fuller não estava lá, logo ele, para noticiar a guerra. Todos os outros iriam para documentá-la; Fuller iria pela experiência de vivê-la.

Voltar à civilização era o tema de todas as nossas conversas, de nossas piadas, de nossos sonhos. Mas a reentrada era assustadora também. Como podíamos contar ao mundo aquilo que vivenciamos? Aquilo que testemunhamos? Como cada um de nós conseguiria viver consigo mesmo?”.

Dessa experiência, evoca-se uma profunda compreensão de sua obra. Apreende-se primeiro que, dali, não há possibilidade de um retrato fiel (em suas palavras “para isso, seria preciso atirar nas pessoas dentro do cinema”), não há mímesis viávelhá uma fulguração daquele transe, fagulhas e centelhas de possibilidades imitativas. Em Spielberg, há uma imersão imaginativa que corresponde paralelamente ao simulacro da tela, um feeling de being-there; com Malick, há uma estesia a partir do espanto contemplativo daquela anti-Eudaimonia que impulsiona uma cadeia de insights-epifânicos; em Kubrick, há um bildungsroman exacerbadamente torto que ironiza a formação de um cenário político vigente; e em Fuller, há uma potência fenomenológica da experiência sensível mais radical do ser.

Essa combustão gerada é sempre impotente, conscientemente, pois não existe chave de compreensão do fenômeno da guerra para além dos combatentes, in loco, e até estes mesmos têm altas limitações de aliar tal phronesis a algo representativamente maior e mais significativo. Cabe aos soldados saber se desvencilhar do horror para sobreviver e sobreviver (na guerra, no pós-guerra); cabe a um verdadeiro artista como Fuller dar cabo dessa apreensão em imagens de outra natureza. A transmutação desse sentimento é feita com a consciência da impossibilidade; logo, tal vivência é re-transformada em um outro tipo de fenômeno. Não tem jeito: os modos de ser da aparência se revelam sob uma forma ante a violência do tiro, e sob outra ante a violência da câmera. Mas isso não impede que, como espectadores, possamos experienciar a guerra, o cinema, como poiesis, como uma reconciliação do pensamento com o tempo e a matéria.

Porque, se você tiver emoções, você não está na guerra. Não há tempo para emoções. A guerra vira um trabalho. Você acorda. Você trabalha um pouco. Talvez você saia em patrulha ou para a batalha. Sua luta é muito breve. Você descansa. Você caga. Você come. Então você sai e atira de novo. Você vai dormir. Então você acorda…”.

Agonia e Glória (1980) provavelmente é o primeiro lembrado nessa discussão, afinal é a bios grafia de seus anos de guerra, mas Mortos que Caminham (talvez uma das traduções mais geniais do cinema, mais poderosa, inclusive, que o original, Merrill’s Marauders) é um retrato ainda mais sintético dessa phronesis. O tédio, a agonia e o cansaço torturante daqueles zumbis que caminham e caminham e caminham… a fadiga que faz o sargento Kolowicz (Claude Akins), aquele soldado americano corpulento, o mais bem alimentado do mundo, receber comida de uma velhinha magricela é de uma vergonha e ironia sem tamanho. A dependência, o estar à mercê de um comandante invisível – os que têm o poder estão sempre do outro lado da linha telefônica – morrendo por suas ordens, sem nem ao menos saber o porquê. Tudo isso são pequenas gestalts daquele mundo gerado por quem nunca o pisa, vivido por quem nunca o pode questionar.

Mortos que Caminham, Samuel Fuller

Mortos que Caminham (1962), Samuel Fuller

Se você fizer isso por três anos, é só um trabalho. É uma máquina poderosa dentro de você. A única emoção que você tem é: ‘Quando vou sair daqui; quando alguém vai me substituir’. É a única emoção que se experimenta na guerra. Você fica ciente da observação. Muito ciente. Se eu souber que vocês dois estão à minha direita, então tudo bem. Se eu estiver preocupado com vocês, estarei em apuros”.

Desde que o mundo é mundo, existem os contadores e existem os agentes do conto. Desde Homero, já sabemos que os contos não são fatos, mas um olhar sobre eles. Os contadores tecem a História, os agentes tomam conhecimento dela e nem sempre se vêem como participantes dela. Esse é o buraco negro do tempo, sem muita chance de reparação. Hoje, qualquer conflito ou manifestação (e quem sabe uma futura grande guerra) é incessantemente filmada (e estamos falando aqui de um paradigma diferente até mesmo da documentação das grandes guerras do século XX). Essa imagem é posta como prova ou evidência de um discurso retórico, seja qual for o lado. Fuller filmou muita coisa da guerra e é curioso como nunca as usou para um filme em especial. Guardou até a morte, a sete chaves, as mais nefastas imagens que tinha de Falkenau. No filme em que as imagens de arquivo são mais expressivas para a conjunção narrativa, Proibido! (1959), o trecho final que convence o menino não prima pela ineditismo; pelo contrário, são as já clássicas imagens do Julgamento de Nuremberg aliadas a outras imagens bem propagadas das torturas nazistas, imagens de natureza consubstanciais mas que, quando impostas numa dialética privado-historicista, reverbera em algo muito mais acachapante. E é assim que o cinema ganha uma dimensão muito mais potente que o jornalismo para Fuller – através dele, nunca vemos a reportagem da violência, mas sua natureza fenomênica pela imagem. O documento ou a captação pura e simples da violência gera informação, às vezes espanto; a decupagem laboriosa de um estar-ali repercute num processo mais complexo de maturação desse tempo vivido.

Guerras continuam e continuam. Não há fim para a história”.

Assim, essa apreensão e aplicação naturalmente se desdobram para seus outros filmes que não só os de guerra. Uma estratégia comum em vários de seus filmes é a ideia de infiltração. Em Casa de Bambu (1955), livre remake de A Rua Sem Nome (1948), de William Keighley, o investigador Eddie Kenner (Robert Stack) se infiltra na gangue de Sandy Dawson (Robert Ryan) para desvendar uma grande operação no Japão. Dawson começar a criar uma relação de afeto com Kenner – “Não sei porque salvei seu pescoço” – que, em contrapartida, sofre com a dubiedade moral da Lei (que desenha a linha inimiga) e da amizade, que irrompe desatrelada a qualquer ordem vigente. Em Renegando o Meu Sangue, Fuller radicaliza ainda mais: cria um personagem que desestabiliza o estatuto conflituoso inerente entre índios e a civilização americana. O soldado O’Meara (Rod Steiger) não é só um descrente da identidade americana que quer viver entre os índios. Ele quer se tornar um, ser o mesmo, entre os outros e não ser um Outro entre eles. Quer ter uma filha Sioux, quer ter uma linhagem miscigenada. Não há dito mais simbólico, nesse sentido, do que a fala do Búfalo Azul (Charles Bronson): “Misturem o sangue!”. Paixões que Alucinam mostra que nem sempre essa abertura para o outro é propriamente saudável, em todos os sentidos do termo; às vezes ela nos desvia do rumo da sanidade, mas é nesse ato de se imiscuir que se estabelece um auto-reflexo de nossas próprias clareiras: sobre a imagem da desrazão, o racismo, o patriotismo e a guerra nos alimenta e sacia. Desta graça, regurgitai-vos.

House of Bamboo, Samuel Fuller

Casa de Bambu (1955), Samuel Fuller

Deste compêndio tripartido, recomeçamos a entender a necessidade do choque de sua câmera. Sua violência é para nos acordar de um torpor longínquo ante a bestialidade sacralizada. Cada filme de Fuller é um novo mundo criado para que nós possamos nos infiltrar, onde o statement, com exclamação, nos chacoalha: “existem as normas e as condutas, algumas são pura demência. Passe por cima delas”. Por outro lado, existe também a demência destrutivo-inventiva. Em sua obra-prima, Cão Branco (1982), é impossível não lembrar de um plano antológico: o do cão, de língua pra fora e em câmera lenta, correndo em direção à câmera. O jogo que Fuller cria ao fim, sem deixar o espectador saber se o cão irá realmente atacar (a nós e ao domador), nos amedronta e instiga: a memória da violência é impunemente implacável.

Bem, esta é a carreira cheia de altos e baixos de um ex-office boy. Uma carreira de trinta anos”.

* Todas as citações foram retiradas do catálogo da mostra “Samuel Fuller: Se você morrer, eu te mato!”, organizado por Ruy Gardnier. A mostra foi realizada no CCBB no ano de 2013.

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