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Mojica, cronista atemporal da brutalidade

No dia 18 de fevereiro de 2020, a convite do projeto “Cinema Falado” em Belo Horizonte, fiz uma breve apresentação pós-sessão de À Meia-Noite Levarei Sua Alma a uma plateia no MIS Cine Santa Tereza. Na conclusão da minha fala, exaltei o fato de podermos celebrar a obra de José Mojica Marins com o realizador vivo entre nós, ainda que doente e fragilizado.

Menos de 24 horas depois, chegava a notícia de que José Mojica Marins tinha morrido, aos 83 anos, em São Paulo.

Não seria justo falar em coincidência, pelo simples motivo de que a celebração a Mojica, ao menos entre os entusiastas de sua obra e mesmo entre aqueles nem tão simpáticos a ela, vem sendo uma constante já faz alguns anos. Não é como se eu tivesse exaltado a vida de Mojica e, no dia seguinte, ele tivesse nos deixado. A vida dele era e continuará sendo exaltada independente do que lhe aconteceu. Sua partida naquele dia concluiu o ciclo biológico do qual todos fazemos parte, mas sua continuidade enquanto sentido e significado não segue esse tipo de contagem de tempo ou permanência terrena. Mojica era e seguirá eterno.

A sua partida, porém, serviu para ativar algumas inquietações. Porque agora José Mojica Marins é história e arqueologia. Portanto, exige ser revisto, retomado, reavaliado, reconfigurado sob outros olhares e perspectivas, algo que naturalmente vai acontecer (e já está acontecendo). Poucos realizadores, de fato, foram tão comentados, debatidos, estudados, descobertos e redescobertos ao longo do primeiro século de cinema brasileiro como José Mojica Marins. Sua morte cria um antes e um depois, e o impacto disso ainda está para ser escrito.

Nesse primeiro momento pós-luto, a obra de Mojica encontra respaldo em ao menos duas frentes de abordagem que muito me interessam e não são excludentes – pelo contrário: uma se serve da outra.

A primeira é mundialmente reconhecida: a do Mojica pioneiro e mestre do horror. O gênero, de fato, nasce por aqui com À Meia-Noite Levarei sua Alma (1964). Na criação do Zé do Caixão, Mojica usa arquétipos e ícones de histórias de horror que todos identificamos desde crianças, como a figura da bruxa, que segura um crânio e adverte o público sobre o que virá (“Não assistam a esse filme! Vão embora!”), os raios que cortam os céus na noite escura, os bichos peçonhentos, a ventania que sacode árvores no cemitério, os túmulos que parecem se mexer. Diferente de monstros clássicos como Drácula ou a criatura de Frankenstein, o Zé do Caixão é criação absolutamente de cinema – e de cinema brasileiro, com suas unhas gigantes, a predileção por carne na Sexta-feira Santa e a profissão de coveiro em algum canto do interior de São Paulo.

A importância e a genialidade de Mojica na reinvenção do gênero e suas contribuições criativas ao longo de décadas estão muito bem cobertas em livros e sites – e, espera-se, vão se ampliar depois de sua morte, já que o caráter vanguardista e inventivo dessa obra não se esgota (e Mojica figura hoje ao lado de outras lendas da criação audiovisual no gênero, como Terence Fisher, Mario Bava, Dario Argento, Jean Rollin e John Carpenter).

O que eu gostaria de tocar brevemente aqui é numa outra frente de abordagem, que me parece receber bem menos atenção e que se amplia na escolha pelo terror como expressão: a do Mojica cronista social e político de um Brasil adoentado. Pela vinculação ao horror, o cinema de Mojica passou anos sendo pouco abordado no que ele tem de tão ou mais essencialmente brasileiro, que seria a precisão no trato e na representação de uma sociedade patologicamente sádica e reacionária.

O ano de lançamento de À Meia-Noite Levarei Sua Alma é simbólico nesse sentido. O filme chegou aos cinemas em 1964, no meio das movimentações do golpe militar que desembocou numa ditadura de duas décadas. Diferente de colegas do Cinema Novo, que tentavam captar o comportamento do “povo” e os efeitos dos desdobramentos políticos em suas vivências, Mojica aparentemente só queria narrar um conto de horror. Acontece que, na sua sensibilidade insuspeita, ele compreendeu que tipo de “povo” estava ascendendo naquele momento para respaldar um regime de obscuridade e violência.

A selvageria de À Meia-Noite Levarei Sua Alma aparece de imediato na postura sempre agressiva do personagem Zé do Caixão, eternizado pelo próprio Mojica. Nos movimentos de corpo e de impulso, nas sobrancelhas irrequietas, nos lábios tremidos, na impetuosidade da provocação: trata-se, sem constrangimento, de um personagem desagradável, num filme que vai se modelando em torno dele e de uma série de relações destrutivas que ele promove. A violência perpetrada por Zé do Caixão não tem limites nem pudores. O filme tem total consciência disso e se aproveita do eventual choque do público para ir sempre um pouco mais longe (e não é de ficção que se trata?).

A perturbação às vezes pode ser grande pelo fato de o espectador enxergar um monstro brasileiro, falando português, desafiando as crenças típicas do catolicismo, desejando “perpetuar seu sangue” a todo custo, um sujeito eugenista e misógino, que se acha nobre e superior, que gasta desprezo e petulância com quem considera inferior e contra quem não mede escrúpulos para tirar do jogo em prol de seus interesses. Corta para hoje. Aos olhos do Brasil de agora, Zé do Caixão é o exemplar cidadão de bem.

O que aflige em À Meia-Noite Levarei Sua Alma – e o excesso de exposição de Mojica em anos posteriores, ao macaquear a própria criação, trajando e falando como o coveiro em programas de TV e esquetes de humor especialmente nos anos 1990, não diminui essa força em absolutamente nada – é o fato de o filme ser de e para Zé do Caixão. Ele é o protagonista absoluto, a narrativa o acompanha passo a passo, o arco de suas artimanhas (e posterior tragédia) é que move a ação. Se alguém ainda olha para o cinema como arte de empatia e identificação, bem… eis aqui um filme do mal.

Mas, como Hitchcock mostrara em Psicose (1960), a aproximação entre o olhar do personagem monstruoso e o olhar do espectador não precisa fazê-los necessariamente compatíveis. Quando Norman Bates espiona a nudez de Marion Crane pelo buraco da parede de seu escritório, a câmera “assume” a visão do personagem. Ali está um dos planos subjetivos mais perturbadores da história do cinema: o olhar que faz coincidir o espectador e o voyeur posteriormente revelado um psicopata. [No mesmo ano de 1960, outro filme fundamental fez movimento similar, porém com menos repercussão imediata: A Tortura do Medo, realizado na Inglaterra com direção de Michael Powell.]

A noção de “identificação”, tantas vezes imposta às narrativas cinematográficas, está muito mais no âmbito da convenção do que de alguma regra pré-concebida. Por sua natureza mimética, o cinema constantemente é cobrado por “representar” com fidelidade seja lá o que se chame de realidade. Pior: cobra-se que personagens de ficção façam as vezes de ponto de identificação positiva com o espectador e garantam um tipo de bem-estar artificial que sirva de expiação. Pois em À Meia-Noite Levarei Sua Alma, o protagonista só serve de “identificação” possível com quem pactuar de suas atrocidades. Mojica, no controle da criação, convida-nos a testemunhar o grotesco e desafia os limites do olhar e da representação como nunca antes fora feito na produção brasileira.

Talvez houvesse indivíduos em 1964 que viam em Zé do Caixão um cidadão de bem exercendo seus direitos, um homem que compreenderia a necessidade de uma intervenção autoritária quando necessária a algum bem superior. Se houve o golpe, é também porque havia esses indivíduos. Com seu filme, Mojica colocava na tela a alegoria desse tipo de sujeito. Fazia esse movimento abdicando de recalque, piedade ou qualquer tipo de subterfúgio ou afago. As imagens de À Meia-Noite Levarei Sua Alma (complementadas pelas de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967), sequência lançada, vejam só, um ano antes do AI-5) não se vinculavam a qualquer escola ou movimento expressivo e se diferenciavam de quaisquer outras que se produziam naquele Brasil efervescente. E mais: sem nem imaginar, Mojica fazia um filme que, revisto agora, parece, de novo, o instantâneo do Brasil – desta vez, no século 21.

Mojica Inferno Carnal

Por vários outros filmes, Mojica seguiu a crônica social selvagem que começara em À Meia-Noite Levarei Sua Alma. Ora refletindo sobre sua própria criação (Ritual dos Sádicos/ O Despertar da Besta, 1970; Exorcismo Negro, 1974; Delírios de um Anormal, 1978), ora retratando diretamente a classe na qual enxergava os malefícios sociais e econômicos, mas principalmente morais, que imperam no Brasil (O Estranho Mundo de Zé do Caixão, 1968; Finis Hominis, 1971). Esse conjunto de filmes explicita a percepção de Mojica de que o país historicamente se mantém por ações de opressão e violência, sejam diretamente contra a carne e a pele das pessoas, seja por discursos demagógicos, populistas ou autoritários. Dois filmes em especial, menos comentados que as incursões pela mitologia do Zé do Caixão, são exemplares nesse sentido. Os enredos de ambos, não à toa, parecem retirados das manchetes de jornais sensacionalistas – que, aliás, tanto exploraram a figura do Zé do Caixão décadas depois.

Um é Inferno Carnal (1976), no qual o cientista brilhante interpretado por Mojica quase não dá atenção para a esposa, que planeja matá-lo (com a ajuda do amante) e roubar sua fortuna. Como é relativamente comum na filmografia do cineasta, trata-se de um conto moral em que ações de destruição perpetradas pelo protagonista são devidamente punidas no desfecho da história. Era a forma mais direta de Mojica tratar das culpas e ressentimentos que movem as classes abastadas e anestesiam o indivíduo em relação às consequências de seus atos. O caráter de crônica da crueldade se amplifica no retrato falsamente caricato dessas classes, tratadas pelo olhar do filme como um coletivo de tolos superficiais dispostos a qualquer sordidez. No que isso se diferia da classe média-alta brasileira da ditadura, com empresários financiadores do regime denunciados tempos depois por filmes “corretos” como Pra Frente Brasil (Roberto Farias, 1983)? Em Mojica, a grosseria da representação era a chave para se apreender a representação da grosseria.

Esse processo se potencializa em Perversão (1979), certamente o melhor filme dentre os menos comentados da vasta filmografia de Mojica. Ele próprio interpreta um personagem tão memorável e detestável quanto Zé do Caixão: o playboy Vitório Palestrina, um predador sexual que vive de ostentar a fortuna, de promover portentosos convescotes e de abusar de mulheres física e psicologicamente. Num de seus ataques, ele arranca o mamilo de uma garota e depois o expõe num vidro, como troféu, para admiração de seus colegas novos-ricos, que o parabenizam pelo gesto e pelo “prêmio”. Por sua vez, a mulher violentada é desdenhada pelas autoridades, rechaçada pela comunidade e enlouquece. Ora, no que essa representação nega fidelidade às formas brutalizantes com que se constrói a sociedade patriarcal brasileira há décadas? Palestrina se legitima socialmente em sua violência predatória contra quem ele considera inferior. Novamente, se feito o corte temporal, aí está outro cidadão de bem do Brasil contemporâneo.

Para as ações monstruosas de Palestrina – a contraparte rica do pobretão Zé do Caixão –, existe a plateia que o aplaude e que se projeta nele (dentro e fora do filme). Essa plateia sedimenta as bases de uma sociedade adoentada. Mojica compreendia e abordava essa relação sem fazer sociologia ou discurso, nem muito menos se render ao bom-gosto. Perversão é deliberadamente desconfortável. E é também outro conto moral do cineasta, o que significa que haverá um plot twist para “ensinar” alguma coisa ao protagonista prepotente e violento, ao mesmo tempo em que se aponta o ciclo interminável de destruição como intrínseco à relação histórica entre indivíduos. Luta de classes e de poder, opressão, subjugação, retaliação: há um universo inteiro de emaranhados de composição social em Perversão que colidem na sequência final. Um curto-circuito entre sensualidade (é uma das cenas mais verdadeiramente excitantes no cinema de Mojica) e explosão de violência. O gozo se equaliza com o sangue, só que a inversão é total: se, no começo do filme, Palestrina obriga a mulher ao ato sexual para lhe arrancar o mamilo, no desfecho ele é levado a crer que chegou ao ápice da conquista, antes de ser emasculado. O urro do milionário – tão significativo que puxa outras cenas-chave do filme para fazê-lo se prolongar mais e mais – é tanto de dor quanto de derrota, humilhação e antigozo. A vingança é perfeita porque ela não se fixa no simplismo do “olho por olho”. Ela atinge a essência do que forma tipos como Palestrina.

Esses lumiares de representação vistos em Inferno Carnal e Perversão aparecem em todo o cinema de Mojica, com mais ou menos intensidade, sempre na chave da brutalidade e do feio/grotesco, na consciência de um cinema subdesenvolvido produzido num país colonizado à base de muito sangue derramado. Sob esse aspecto, Mojica só via sentido em ser o mais honesto possível. Ou, como ele próprio diz, em depoimento registrado em Audácia! (Carlos Reichenbach e Antonio Lima, 1970), o artista brasileiro, para ser autêntico, deve “afastar o manto nojento da demagogia” e procurar ser o que realmente é no intuito de “dar mais expressão ao nosso eu”.

José Mojica Marins não fazia cinema “bonito”. Fazia, isso sim, um dos cinemas mais brasileiros que se pode pensar. E o Brasil nunca foi para amadores.


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