mariana e MAIOR mais claro irmã

Liquefazer a pedra, experimentar o fóssil

Anúncios feitos no escuro, nascenças que se dão no deslocamento, o canto inaugurando estradas, elementos que se fizeram pulsantes nos cinco outros filmes da Mostra Olhos Livres, despontam com roupagem muito própria em Irmã (2020). O filme de Luciana Mazeto, Vinícius Lopes começa dentro do olho, para logo em seguida fazer a pele virar tela. Ana (Maria Galant) e Júlia (Anaïs Wagner) estão de costas, e o contorno das duas se torna suporte para uma imagem projetada, prenúncio de uma viagem que está para começar. Pontes e estradas incidem no torso das meninas, e sabemos: a jornada vai exigir que o corpo se faça esteio do movimento. Dentro do ônibus, a câmera treme com o balanço das rodas, assim como treme o mundo, a antecipação do fim se ameaça por um corpo celeste em vias de colidir com a Terra.

A aproximação desse asteroide, adivinhado por Julia em sonho durante um cochilo na viagem, é o cenário que nos apresenta às irmãs. A pedido da mãe, que padece de uma severa enfermidade, as duas rumam de Porto Alegre a uma cidade no interior do Rio Grande do Sul para acertar as contas com o pai (Felipe Kannenberg). O ritmo do filme se mostra desde o início preocupado em dedicar um tempo às canções. Ana e Júlia dividem um fone de ouvido e cantam juntas num plano que persiste, a música reincidirá como marcadora de uma ternura fina que atravessa a relação das duas.

Chegando à cidade, a ânsia das meninas é antes a de mapear árvores fossilizadas, conhecer rios e saltar em cachoeiras do que a de se encontrar com o pai. Ana por trás da cortina de água, tomando coragem para pular sem que a gente veja seu salto, e depois a imagem dela já dentro do rio, submersa. Julia, sorrindo, mergulha junto. O aparato do cinema se prepara para transpor esse convívio numa série de artifícios, experimentos desavisados na forma do filme. Em certo ponto, num sobressalto, o diálogo das duas salta da boca e da dimensão audível para palavras grafadas na tela. A conversa segue pela escrita – fóssil da voz – e a paisagem inteira se põe a falar por elas. A comunicação sem som, silêncio legendado, versa sobre a existência de árvores petrificadas pelo tempo, numa espécie de vida em morte ou morte em vida.

Findo o dia, as irmãs vivem a noite na cidade. O costumaz medo que acompanha a imagem de duas meninas andando sozinhas por ruas noturnas e mal iluminadas, aqui se dissipa rapidamente, Julia grita e a ventania acontece. A decisão da rota do asteroide está guardada na barriga da criança. Qualquer ameaça que poderia significar a presença de um homem adulto se esfacela frente à força dessa fantasia. Numa performance de karaokê, o filme para mais uma vez para deixar que a música aconteça. A diversão da rua continua quando voltam para o hotel onde estão hospedadas, e os fósseis, no seu enigma de morte-vida-continuação, seguem aparecendo e disparando confabulações. Um aparelho de louça é descoberto pelas irmãs no breu do corredor, enquanto apontam com uma lanterna para xícaras e taças e pratos quebrados, inventam histórias. Os utensílios como ossadas de festas que já foram, de encontros inventados, as irmãs fazem ficção no escuro.

Quando enfim se reúnem com Carlos, o pai, não parece nem de longe o ponto culminante do filme, nem mesmo o motivo da viagem. O encontro aconteceu bem antes, entre elas. E é preciso mais um truque para que a postura masculina caiba no filme: a conversa que Ana vai ter com o pai é assistida feito cena novelesca, enquadrada pela televisão. Carlos dispara uma série de chavões autoritários e paternalistas, acompanhados de uma trilha sonora emocionada e excessiva, o reenquadramento, a dramaticidade derramando, tornam seu discurso ainda mais frágil, meloso, patético. E Julia nem assiste ao canal sintonizado na TV, a menina cochila no sofá, o sonho vale mais que o drama.

Ainda que não existisse nenhum real interesse no encontro com o pai, era preciso a viagem, sempre o deslocamento no coração desse romance de formação. Era preciso ir a um outro lugar para que a história acontecesse. Era preciso ver de perto o asteroide refletido dentro da água do rio, fazer o ritmo de uma melodia com os pés na poltrona da frente do ônibus, a mão amparando a vista da janela, as árvores feito borrões verdes e depois tornadas pedra. Era preciso tudo isso para o nada sutil desfecho, num ímpeto de fúria frente ao autoritarismo de Carlos, Julia chama o asteroide e tudo queima, o pai desaparece e as duas fazem um dueto. Por mais que o desenho de Irmã se mostre contrário ao apaziguamento, não há necessariamente uma conduta combativa. A saída pelo fantástico sobrenatural é antes fuga que enfrentamento. O embate mais frontal se dá mesmo via cinema, aquele reenquadro do discurso do pai pela moldura televisiva. E por mais que pareça que o filme se erga em escala planetária – um meteoro restaura o padecimento da Terra – a grandiosidade chega é pela filigrana, a beleza das canções existe, o abraço das irmãs acontece.


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