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A dura língua do todo

Subterrânea (2020) parte de um estilhaço. Uma única fotografia emerge silenciosa: oito homens e duas bandeiras hasteadas posam ao redor de uma pedra. A ideia de fragmento – corporificada primeiro pela própria foto que paira desamparada – se estende para o motivo da pose, quando percebemos que a pedra se trata de um meteorito encontrado no interior da Bahia. “Um pedaço de outro mundo”, resto de alguma coisa desmembrada que fez viagem até aqui. Uma voz off nos revela que a foto flagra o momento da remoção do meteorito, que seria transportado do Rio Bendegó ao Rio de Janeiro, para ser guardado no Palácio Imperial, na Quinta da Boa Vista. O preâmbulo do filme prossegue, imagens do Museu Nacional em chamas tomam a tela. No incêndio de 2018, o meteorito de Bendegó permaneceu incólume, impossível de ser ferido, pois ele próprio é a manifestação de uma ferida, pedaço de um mundo que já acabou e anúncio do fim de outros. Essa crença inicial na força do fragmento vai ser deixada para trás pelo filme, o que virá em seguida soa como uma tentativa derrapante de todo.

Ainda sem conhecer o rosto de quem nos narra, o texto lido em off continua junto à imagem aérea de uma floresta de onde avistamos, ao longe, uma pequena aldeia. “Se a gente for falar do fim do mundo temos que perguntar aos índios como é, porque eles sabem, eles viveram isso. A América acabou em 1500”, a escolha de palavras do trecho narrado, e a opção pela cena de um sobrevoo distante, confessa uma postura um pouco confusa, ou um tanto desatenta. Em alguns filmes, o excesso parece compor um movimento crucial, o acúmulo como fundamento basilar, um corpo que se faz sentido junto a uma multidão de substâncias. O filme de Pedro Urano, ao contrário, parece se desfazer na medida em que chama para si uma overdose de matérias. Colonização, crimes ambientais, remoção da população pobre dos grandes centros, especulação imobiliária, avanço do neopentecostalismo, entreguismo de recursos naturais são algumas das questões que o filme sobrevoa. E América é algo que começou em 1500.

Conhecemos, enfim, os protagonistas do filme, Leo (Negro Leo) e sua tia, Professora Stein (Silvana Stein), geóloga e pesquisadora. Um chamado da prefeitura ocasiona a primeira movimentação dos dois, que saem para examinar um bueiro supitando água salgada no centro da cidade, o que chama a atenção da dupla, e do filme, para o subsolo. O desenho das personagens se dá de modo bastante caricato, e não há nada de ingênuo aqui, Subterrânea se sabe caricatura. A trilha sonora e tantos outros códigos de pontuação exageram na expressão do filme, e o duo de detetives logo se prontifica a gastar variados símbolos reconhecidos do cinemão de gênero em sua aventura investigativa. Isso poderia se mostrar como uma divertida jornada, não fossem um comichão explicativo e outras redundâncias que o filme nos submete. “Às vezes eu acho ela mais dura do que qualquer pedra” diz Leo em off num plano onde vemos Stein em seu laboratório, olhando pela janela, cercada por pedras.

A investigação sob a qual o filme se lança diz respeito aos abismos em torno do arrasamento do Morro do Castelo, extenso acidente geográfico que situava-se no centro do Rio de Janeiro e foi destruído em nome de uma ideia de progresso e higienismo urbano. A cidade foi se posicionando a partir dos cortes feitos na terra. Do Morro, resta um fantasma pesado na superfície e o mito de um tesouro guardado nas galerias misteriosas de seu subterrâneo. Essas informações são todas entregues pelo filme, nos diálogos entre sobrinho e tia, numa entrevista com um funcionário de uma construtora, numa conversa com outra professora, na leitura de trechos de documentos encontrados na biblioteca nacional, ou mesmo em monólogos extensos e utilitários. Subterrânea abre pouca margem, tudo é bem preenchido por um roteiro que parece não querer abrir mão de nada. É como se uma porção de notas de rodapé fossem, de súbito, sendo incorporadas ao corpo do texto, que vai se avolumando verborragicamente.

 

A literatura e o retrato de Lima Barreto, com sua aposta de que o Morro do Castelo era o topo de um vulcão, entram em jogo. Clara (Clara Choveaux), surge para ensinar que observar o céu é também olhar para o chão. Helena Ignez faz uma aparição fugaz para dizer as horas e revelar uma dobra no tempo. Enquanto escutamos uma porção de frases que miram o lirismo e acertam o sermão, Leo e Stein mergulham nas entranhas do Castelo, sublinhando todas as pistas que encontram para a resolução do enigma. No momento mais desprendido do filme, a viagem ao centro da Terra culmina numa performance musical. Stein escuta um grupo de homens que cantam e tocam tambores no núcleo do mundo. A luz do capacete da Professora aponta a percussão submersa. Mesmo depois desse momento-mistério, Subterrânea não abandona a ânsia de desvelamento, e quando avistam um líquido escuro ao final da caminhada é preciso dizer em voz alta “O tesouro!”, “É petróleo!”, “O petróleo do Morro do Castelo”, “O petróleo é nosso”.

O filme começa na superfície e finda a uma profundidade de dois mil e cem metros. Numa ponta, um monumento celeste, na outra, um monolito subaquático, a coisa que se mantém é uma pátria trêmula, hasteada ao lado deles. Subterrânea parece se interessar por esse tremor, ao passo que não parece disposto a encarar essa natureza bamba, se firmando em paralelismos um tanto endurecidos.


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