Amador (2020) compartilha de um dos esforços mais belos do cinema documentário: como fazer do filme a companhia de uma vida. O tempo da relação aparece no tempo das filmagens, uma amiga filma um amigo. Por meio de planos que se demoram em conversas íntimas e uma câmera que acompanha e refaz movimentações humanas, somos apresentadas a Jônatas Amador, artista plural que se criou em casas e praças e ruas de Belo Horizonte. O material bruto do filme ficará sempre inacabado, enquanto a montagem precisa lidar com a brutalidade mesma de uma vida, que findou cedo demais.
Junto das longas conversas a dois, Amador se faz pela escuta de depoimentos de pessoas que conviveram com Jônatas durante a infância, adolescência e juventude. Rente às vozes, assistimos a aparição de vídeos e fotos antigas, ora manuseadas pelas mãos de um amigo, ora surgindo feito mosaico dum álbum de Orkut. Grande parte das falas narra com amor um corpo-festa, desde menino encantado com a música, e aponta uma relação marcada entre a formação de Amador – e a criação da personagem-pseudônimo Vidigal – com sua circulação pela cidade. Há ainda a presença de duas performances de Vidigal. Frente a um espelho no banheiro da faculdade, assistimos a preparação do corpo para a cena. Enquanto ele declama descalço um longo texto, assistimos a preparação do corpo para a vida. A câmera guarda a performance inteira, numa aproximação profunda, vigiando os pés, as mão, a voz que segura os versos.
A escolha de palavras da sinopse de Amador causa algum estranhamento, “As filmagens interrompidas pela distância geográfica, pretendiam retratá-lo apenas em condições de sobriedade, valorizando sua inteligência criativa.” e logo na primeira sequência Cris Ventura, insiste no termo quando em uma voz off diz “a condição para fazer o filme era apenas mostrá-lo em seu estado de sobriedade”. O contorno dessa voz parece transitar entre dois desejos: evidenciar o combinado firmado entre os amigos; e o segundo talvez seja o de responder previamente a questões que poderiam aparecer nas exibições do filme, caso o pacto não estivesse explícito. A insistência em certa ideia de “sobriedade” enquanto centro acaba planando como um peso ao longo do filme.
O que nos chega da rua acontece de três maneiras diferentes, as três um pouco enviesadas, se aproximando mais de um fantasma da rua do que da rua mesmo. O primeiro contato acontece via cenas noturnas de uma BH esvaziada. Uma imagem que balança com o caminhar de um corpo é acompanhada pela segunda aparição da voz de Cris, lendo em off um fragmento de texto poético que versa sobre flanagem. A rua também nos aparece numa espécie de performance feita pelo filme, uma flor é posta em frente à câmera em lugares marcados da cidade, Centro Cultural da UFMG, Praça da Liberdade… É como se a câmera mesmo empunhasse a flor. Talvez velando a presença de Jônatas pelos espaços, ou colocando a flor para bater perna, rodando pelo centro como uma adolescente, permanecendo em acordo com ele, sujeito caminhante. Por último, a rua aparece nas falas, tanto de Amador, que diz um pouco de sua ligação com ela, quanto no testemunho de amigas que contam dos trajetos que percorriam juntos, alimentando suas juventudes. Instaura-se, então, um certo descompasso entre Amador e Amador. Ainda que as menções à rua tragam alguma força e exponham uma relação, há um certo tangenciamento, o filme parece temer a rua.
A grande força de Amador se ergue mesmo é nas conversas, que acontecem na dimensão da carne e no interior da casa. Existem segredos entre eles dois, escutamos as histórias de Jônatas que são acompanhadas por jogos de olhares e gestos direcionados ora ao filme, ora a Cris. Quando topamos com um nome que não pode ser dito — Eu acho que eu sei quem é — Sabe. Em outro momento, Cris sussurra atrás da câmera para ele seguir cantando — Canta mais, tá ótimo, ele segue a melodia num compasso cúmplice. Há ainda instantes em que, no meio de uma frase, Jônatas interrompe a si próprio e diz “mentira”, refazendo toda sua linha de raciocínio. Estamos nessa instância de intimidade em que se permite tropeçar. Algo que faz lembrar um tipo raro de entrega à conversa, como a de Alessandra em Edifício Master (Eduardo Coutinho, 2002), essa força que é assistir ao pensamento no momento do seu acontecimento.
Dentro de casa, Jônatas nos convida a um passeio. Um tour pela exposição que se constrói pelas paredes de todos os cômodos, os pisos que sobraram da reforma no banheiro viram tela, fotos e colagens se amontoam harmoniosamente nos espelhos e janelas. A câmera é atenta, acompanha os olhos de Amador e aponta junto dele para os detalhes e palavras escondidas atrás das portas.
Na penúltima cena do filme, a marcação explicitada da presença da diretora se manifesta uma última vez. A voz que abriu o documentário retorna para fechá-lo, artifício que acaba por formar uma espécie de moldura descrente, alheia à força da relação que se estabeleceu e que se fez mostrar. Sobre o modo de vida não-convencional de Amador, escutamos um off de Cris que diz: “não cabe a mim julgar”. A frase soa desatenta, contrariando a atenção que o filme dedicou ao encontro. É evidente que Amador não se presta ao papel de juiz em seu miolo, e a opção por sanar essa questão nesse invólucro no início e no fim é um embaraço que o filme padece.
Leia também: