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Joana

Kevin começa pelas beiradas. Enquanto reúne fatias de espaços cotidianos – o apartamento, o trabalho, lampejos de Belo Horizonte –, começa a nos oferecer rastros do drama de Joana. Aos pouquinhos, ficamos sabendo que o pai está no hospital e que algo lhe aconteceu na altura da barriga. Uma tristeza doída impregna tudo. Joana está tão alheia que a câmera esquece dela por um momento para se debruçar sobre os outros professores na reunião da universidade. Quando sua amiga Kevin envia mensagens em inglês na madrugada, convidando-a para se juntar a ela alhures, a voz que responde custa a sair da boca.

Mas Joana vai. Findo o prólogo, começa a viagem a Uganda de que se ocupará o filme. Agora Kevin não está mais interessado pelos cantos das coisas. Joana e Kevin, amigas que se conheceram décadas atrás na Alemanha, ocupam os dois lados do quadro, como se não fosse possível separar uma da outra. O reencontro dispara memórias partilhadas, conselhos, trocas íntimas entre essas duas tão diferentes: uma mulher negra ugandense, uma mulher branca brasileira; uma mãe de três filhos pequenos, a outra ainda se recuperando emocionalmente de um aborto espontâneo; uma que tem sempre as respostas na ponta da língua, a outra que é pura dúvida e insegurança.

Mueda, Memória e Massacre [Ruy Guerra, 1979]2021-01-29-14h49m16s367

O plano de conjunto insistente é a forma da relação: sempre que Kevin estiver em quadro, Joana estará a seu lado. Os melhores momentos do filme são fruto dessa atenção detida no pormenor, que deixa que os problemas se instalem sem o afã de resolvê-los; que deixa que os sentimentos fluam entre uma e outra sem isolá-los; e que recusa o grande painel sociológico das relações entre Brasil e África para permitir que elas se insinuem ali, terra-a-terra, mana-a-mana, onde tudo é um pouco – ou muito – mais que sociologia.

Sempre que Kevin estiver em quadro, Joana estará a seu lado. Mas a recíproca não é verdadeira: quando Joana sair de casa para comprar lembrancinhas ou fazer um passeio de rafting, o filme seguirá com ela – como em todo o prólogo –, e Kevin deixará de importar para Kevin. Tudo o que há para Joana – curva dramática, olhares reflexivos, voz over epistolar, trajetória de aprendizado, imagens de arquivo do casamento – não há para Kevin. Salvo alguns poucos planos de passagem, tudo o que nos é oferecido de sua vida só existe porque há uma mediadora em função da qual ela existe no filme, e porque foi mobilizado pela trajetória de Joana.

Mueda, Memória e Massacre [Ruy Guerra, 1979]2021-01-29-14h49m30s594

Há muitos filmes em Kevin – inclusive uma comédia de erros –, mas nenhum deles é um retrato dessa mulher que empresta o nome próprio ao filme. Não há modulação alguma para Kevin: ela não hesita, não vai de um lugar dramático a outro, não se transforma. Já entra no filme como uma sábia disponível para Joana, e permanecerá assim até o final. A personagem-título é, no fundo, uma ponte para o percurso de aprendizado da protagonista. Sua extrema sabedoria, sua força inquebrantável, sua extraordinária visão de mundo que vaza por todos os lados, só são ativadas em função de Joana. Até mesmo o monólogo final de Kevin, seu único voo solo e seu momento de brilho mais intenso – ao ponto de obrigar o filme a abandonar momentaneamente o plano de conjunto e se concentrar, enfim, nela –, só existe porque a decisão de Joana de abandonar o rafting por se incomodar com o racismo da cena requisita a lição generosa e o comentário mordaz.

O monólogo de Kevin é a ocasião perfeita para colocar em perspectiva o extrativismo sutil que está em jogo em Kevin. Quando ela diz que Joana não vai mudar o mundo porque decidiu não participar do rafting no White Nilo – e emenda com uma enumeração dos episódios sutis de racismo que viveu na Alemanha –, a montagem torna inevitável que lembremos novamente da cena anterior: se a decisão de abandonar a descida do rio é insuficiente e, no limite, pueril, é porque o rafting só existe para nós porque ali existiu uma câmera para filmá-lo em plano geral. Kevin nos ensina que essa câmera que filma o rafting não está apartada do dispositivo extrativista que faz com que o turismo branco exista. E a evidência decisiva de que o impacto do monólogo não foi completo é que essa mesma câmera, essa mesma montagem, é capaz de nos oferecer ainda mais um plano em que Kevin atua em função de Joana: é ela quem lhe corta o cabelo para fazer culminar a trajetória de transformação da protagonista.

Se Kevin se chamasse Joana, seria um remendo, não seria uma solução. Mas talvez esse outro título possível abrigasse uma explicitação justa dos motivos que animam o filme por dentro, na estrutura e na forma. No entanto, sabemos bem que a mais-valia contemporânea de Kevin é retirada de Kevin – eis aí uma outra dobra extrativista – e que, se o filme se chamasse Joana, estaria muito mais à deriva diante do mundo que o abriga agora. Mas ainda é possível imaginar um filme em que Joana seguisse o conselho de Kevin e se jogasse de corpo inteiro no rafting, ou derrubasse de fato todos os souvenirs e se estatelasse no chão da loja. Um filme que embarcasse numa viagem um tanto mais desprotegida da redoma retórica que o envelopa. Talvez então fosse possível encará-lo de frente, e não de soslaio.


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