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Ritornelo

Com um exercício de construção de imagens cuja tarefa é encontrar beleza na dissonância rítmica, Ostinato (Paula Gaitán, 2021), filme de abertura da 24ª Mostra de Tiradentes, sobre o músico Arrigo Barnabé, transcreve a fluidez do processo criativo para as fronteiras movediças que existem entre a criação no cinema e na música. Uma melodia, memorável ainda que difícil de ser reproduzida pelo ouvinte, conduz os primeiros minutos do filme, quando o piano de Arrigo é colocado no ponto de maior evidência da mise-en-scène. A montagem expressiva, como consequência da fragmentação dos registros feitos pela realizadora, opera no filme como o processo de escuta. Procurar com o ouvido significa sentir para além do nível dos olhos. A performance musical é interrompida por uma frase de Arnold Schönberg, compositor austríaco, que tensiona o processo de execução da composição musical, o que dá espaço para que Arrigo antecipe a proposta do filme. “Posso falar?”, ele diz.

Assim, o filme começa a desenvolver os relatos de Arrigo sobre o processo de criação e execução de suas músicas, transcrevendo o discurso – que, ainda que fragmentado em tempo e espaço, se completa na montagem para conduzir a narrativa – para a forma do filme, utilizando a repetição obsessiva para construir fluxos visuais e sonoros. Através de uma inventividade notável na criação de ostinatos – repetições em um padrão rítmico para a construção de uma melodia –, começamos a compreender a genialidade de Arrigo na experimentação e a de Paula, que consegue trazer para a imagem a força metamorfoseante do som pelas variações de uma mesma cena ou performance. A partir de uma ruptura do tradicionalismo da teoria musical, Arrigo cria novas possibilidades para pensar o processo – como resistência e renovação estética – da composição. De música erudita popular ao sertanejo lisérgico, a criação de termos para tentar contemplar em palavras um texto musical fundamentado pelo amplo diálogo entre gêneros e poéticas musicais é feito com bom humor. “É como se o sertanejo tivesse tomado um ácido e fosse compor”.

No espaço onde o músico apresenta as suas composições, há uma janela que o conecta com o mundo lá fora. As páginas de um livro, posicionado no parapeito da janela, são movimentadas pelo vento e chamam a atenção do espectador por alguns segundos. O som do piano clássico flerta com os ouvidos de quem passa por ali, mas ainda que possamos ver o que há para além da janela, o piano não nos permite ouvir o fluxo dinâmico dos sons produzidos pelo ambiente. A desconexão que existe entre o artista, que rememora um passado adormecido, e a população que caminha nas ruas, é representada quando Arrigo sai para visitar uma loja de instrumentos musicais e, depois, caminha entre a multidão, mas logo se mostra resistente em seguir a direção proposta, parando no meio do caminho como um corpo desarticulado em uma relação peculiar com a cidade. Essas imagens intencionalmente conceituais, ambíguas e paradoxais, funcionam da mesma maneira que os processos composicionais. Aqui, entendemos a função da janela, que opera como uma espécie de véu, uma vez que dá a ver, mas cria uma barreira que coloca o espaço – revisitado muitas vezes pela montagem e onde a maioria das cenas se desenvolvem – como um lugar seguro, onde a potência de enunciação individual é mais valorada que a coletiva.

Quando finalmente chega a noite, após repetições arraigadas em um mesmo dia, Arrigo olha pela janela e depois para a câmera, indicando uma suspensão que transcende a própria narrativa, instaurando na relação músico-ambiente o ritornelo, o ritmo que delimita o território, o centro do caos. O ritornelo construído pela suspensão diegética se materializa como improvisação em uma performance que tensiona a potência da primeira experiência para a construção do pensamento, se relacionando diretamente com as repetições construídas por Gaitán – que não dá lugar para a distração, tensiona as variações de ritmo e perpetua a experiência do espectador – e com as falas de Arrigo. A tendência da sociedade contemporânea em relacionar-se superficialmente com a música é questionada nos dois processos de criação, a do músico e a do próprio filme.

Ainda que o filme se sustente na montagem e articulação das repetições das falas e performances de Arrigo Barnabé, Paula Gaitán também é questionada em alguns momentos e se posiciona. “Paula, você sente isso? Que a música tem essa potência ainda?”, pergunta Arrigo. Com o uso de novas experimentações estéticas, como um texto narrado em voice-over – que coloca o corpo como vetor da dor e do pensamento –, Paula cria um jogo utilizando a montagem como ferramenta-chave para quebrar o fluxo narrativo e trazer, para a imagem, a ressonância rítmica própria ao pensamento musical. Nessa cena, ela fala sobre o escatológico destino das rupturas e, mesmo após a inserção do texto, que atrapalha a compreensão do espectador, continua falando, aspecto que se relaciona ao estilo de Arrigo, que canta rouco e rasgado, e cria novas possibilidades para pensar uma estrutura rítmica para a montagem que articule a relação indissociável entre o som, o ruído e o silêncio. A cena final, de outra repetição da música tocada no início, estabelece um ciclo narrativo que coloca a ideia de composição enquanto delineamento de um plano vivo, estético e permanente. Assim como o cinema.


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