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Refundar esta terra

Luz nos Trópicos é feito de imagens das mais variadas feições, escalas, texturas e tons. Um motivo visual, no entanto, salta aos olhos por sua recorrência. Um rio estreito e curvo, cercado de mato e encimado pelo céu espelhado na água, é adentrado por uma câmera serpenteante e calma, cuja marcha adiante encampa um movimento de descoberta. Seu oposto simétrico também retorna uma e outra vez: um rio turvo é percorrido por um barco que recua rapidamente, deixando para trás a água tumultuosa e a silhueta cada vez mais distante de uma cidade. De um lado, um Pantanal imenso em sua verdura, ao qual o filme chega de mansinho, flutuando no ritmo das pequenas embarcações. Do outro, uma Nova Iorque invernal, que o filme habita para deixar para trás. De um lado, uma imagem composta segundo um princípio da multiplicação dos estímulos: o céu sobre a água distorce e redobra as matérias celestes, e a cada curva vamos descobrindo um mundo mais e mais vasto. Do outro, uma cidade tantas vezes narrada, que vemos cada vez menos, como se a paisagem urbana fosse, no decorrer do plano, se transformando em esboço.

Esses motivos complementares talvez traduzam o movimento duplo do filme. Por um lado, um filme da descoberta incessante, tomado por um frescor inaugural de primeiro contato com as coisas. Por outro, um filme denso de fábula, povoado por camadas e camadas de ressonâncias míticas e históricas. Após o prólogo, que condensa ambos os gestos, a feição inicial de Luz nos Trópicos se assemelha à de blocos narrativos: o retorno de um jovem indígena contemporâneo à sua aldeia natal no Xingu, com a retomada de um cotidiano esquecido na distância, é secundado por um longo entrecho de época, em que um grupo de europeus em expedição novecentista se aventura pelas paisagens imemoriais dos trópicos. À medida em que adentramos a duração do filme, no entanto, essa impressão primeira logo se desfaz, para dar lugar a um incessante trânsito entre tempos e espaços. Os personagens que pareciam habitar épocas distintas passam a conviver no mesmo tempo-espaço, seja em território brasileiro, seja em Nova Iorque. A construção meticulosa da cena dá lugar a um amálgama dissonante de performances, derivas pela epiderme das coisas, inventários de objetos, variações experimentais abstratas.

Não que não houvesse já, desde o princípio, um vai e vem: estão lá os momentos interiores aos blocos em que a delimitação temporal falha, como quando Arrigo Barnabé – com seu figurino de época – arma uma performance contemporânea no interior de uma gruta. As fronteiras entre ator e personagem, entre passado e presente são, desde sempre, porosas. Os raccords de olhar fazem o filme saltar de Nova Iorque à Chapada dos Guimarães num corte. As vozes lusitanas, francesas e espanholas ressoam nas montanhas dos trópicos, assim como a voz Kamayurá interpela a grande metrópole norte-americana. Nada mais oportuno, uma vez que, ao menos desde Twenty-Four-Dollar-Island (Robert Flaherty, 1927), a história do cinema já nos ensinou que Nova Iorque é terra indígena. E se a câmera de Gaitán se dispõe a escavar tanto a paisagem pantaneira quanto a novaiorquina, é porque elas são feitas, também, de história.

Mas há esse desejo inicial de instaurar um mundo ficcional, construir um edifício narrativo para depois dinamitá-lo. O filme ergue-se inteiriço, para depois se esfacelar em mil pedaços. No fim das contas, é como se todo o repertório de formas elaborado pelo cinema de Paula Gaitán ao longo do tempo, de Uaká (1988) a É Rocha e Rio, Negro Léo (2020), fosse convocado a comparecer em Luz nos Trópicos. Aqui estão o trabalho sobre as texturas de Diário de Sintra (2007) e o labirinto narrativo de Exilados do Vulcão (2013); o furor performático de Vida (2008) e a atenção à paisagem de Agreste (2010); as coreografias de Noite (2014) e o trabalho de escuta do filme com Negro Léo. Se Exilados do Vulcão era um filme igualmente fragmentário e cheio de derivas, mas cuja montagem imperiosa dava a impressão de um fluxo narrativo íntegro, sempre relançado na sequência seguinte, Luz nos Trópicos tem a fisionomia de um ateliê aberto, em que cabem os mais variados gestos: do diálogo em campo-contracampo à performance, da contemplação da paisagem ao mergulho na desfiguração, da duração estendida do plano à dissolução veloz dos fotogramas, das melodias do corpo às coreografias da luz. Diante do filme, os modos de engajamento também variam, e cabe tanto a contemplação serena – a “mornice propícia às lentas maturações” de que nos fala uma voz lusitana – quanto o assombro súbito de um raccord improvável; tanto o maravilhamento da descoberta quanto o mergulho opaco numa jornada rumo ao desconhecido.

Isso não significa, contudo, que estamos diante de um filme indeciso. Se Paula Gaitán implode de um golpe o mundo ficcional que construiu na primeira metade do filme, é porque sempre praticou um cinema que eleva o esboço à mais alta densidade artística. Porque, para manter o vigor da descoberta, é preciso se desvencilhar de qualquer pretensão de totalidade. Ao mesmo tempo, embora seja um filme muito pouco verbal – seu convite sempre refeito é para uma deriva nas matérias e nas sensações –, há textos que retornam uma e outra vez, e permanecem como refrões que iluminam o conjunto. A voz Kamayurá que nos conta da criação do mundo, a frase recorrente de Arrigo Barnabé (“Ah! Les bruits de la nature!”), a canção de Chavela Vargas entoada por Clara Choveaux (“Voy hacia la vida/antes iba a la muerte”), todos esses fragmentos elaboram ecos que ressoam pelo tecido do filme, sugerem caminhos de interpretação, mas permanecem vibrantes em sua energia evocativa.

Seria possível fazer um inventário dos momentos em que a imaginação latino-americana – aqui ou no exílio – enfrentou a tarefa monumental de sonhar uma refundação desta terra, escovar seus mitos inaugurais a contrapelo no mesmo movimento em que liberava os sentidos das amarras da racionalidade colonial. Esses momentos se chamariam Org (Fernado Birri, 1979), A Idade da Terra (Glauber Rocha, 1980), O Teto da Baleia (Raúl Ruiz, 1982), Nuestra Voz de Tierra, Memoria y Futuro (Marta Rodríguez e Jorge Silva, 1982), Zama (Lucrecia Martel, 2017) e Luz nos Trópicos.

No interior desse breve inventário, talvez o esforço cinematográfico mais próximo de Luz nos Trópicos seja a realização no exílio, durante mais de uma década, da obra-prima Org, de Fernando Birri, terminada em 1979. Como Org, Luz nos Trópicos também pode saltar, de um momento a outro, da narrativa alegórica à experimentação veloz com as texturas; da imersão sensorial no plano ao distanciamento reflexivo; do mais absoluto delírio poético à mais contundente intervenção política. Segundo uma anedota reveladora, diante da pergunta de Julio García Espinosa em visita à moviola na Itália (“Por que você está demorando tanto tempo para fazer esse filme?”), Birri teria respondido: “Não é que eu esteja demorando tanto tempo para fazê-lo, e sim para desfazê-lo”. Luz nos Trópicos também embarca numa jornada de desintegração. A impressão mais marcante é a de um filme altivamente estraçalhado por dentro, cujas entranhas somos convidados a habitar.

A certa altura – este é um dos refrões que comparecem mais de uma vez –, uma voz lusitana compara os primeiros raios de sol aos últimos do dia, concluindo que não é por outro motivo que a humanidade sempre prestou mais atenção ao pôr-do-sol que ao seu nascer: enquanto a aurora apenas anuncia o dia que virá, o crepúsculo é uma espécie de retrospectiva luminosa de seus conflitos, que retornam na enérgica luta final encenada a cada fim de dia. Se pudéssemos reivindicar essa metáfora para o cinema, diríamos que o autor dessas linhas preferiria sempre as virtudes narrativas àquelas da experimentação. A tarefa de Luz nos Trópicos talvez consista em estremecer esses pressupostos: no travelling que percorre o rio pantaneiro uma vez mais, cada personagem comparece com sua indumentária para instaurar novamente, no intervalo entre um arbusto e outro dessa terra tantas vezes figurada em sua virgindade, uma pujança de evocação alegórica infinita. Na sequência complementar de travellings ao som da canção Winter in America de Gil Scott-Heron, as vidraças novaiorquinas reluzem em sua palidez invernal, e a câmera redescobre ali, por baixo dos sedimentos de tantas histórias mil vezes narradas, um insuspeitado furor de inauguração.

É então que a face do rio serpenteante, pleno de desejo, se torna indissociável daquele outro rio turvo, que nos deixa entrever a metrópole no horizonte. Se o cinema pode ser lúcido o suficiente para remover a poeira do tempo e escavar uma vez mais este mundo caquético e em vias de desaparecer, ele ainda é capaz de nos fazer experimentar, aqui e agora, a exuberância febril de um mundo novo, que acabou de nascer.


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