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Para que as crianças saibam

Por vezes, filmes desenham mapas, riscam a silhueta de espaços inteiros, traçam a amplidão de estradas, escrevem cartas geográficas e nos convidam a deitar os olhos, os pés, a boca sob as coordenadas de um chão. Outros filmes são como partituras – mapas de música – que guardam a substância que precede a língua. Abandonam qualquer palavra e se fazem de graves e agudos, refundando o alfabeto em rumores musicais. Há ainda filmes que inventam um enlace entre partitura e mapa, de modo que já não sabemos o que veio antes: mundo ou canto, terra ou voz. Cada um à sua maneira, sinto que os seis filmes que integram a Mostra Olhos Livres são marcados de alguma forma por essa relação de entrelaçamento, por uma força que ao mesmo tempo em que cartografa, compõe uma melodia. Nũhũ yãg mũ yõg hãm: essa terra é nossa! (2020) é um desses filmes que não se ocupa em decifrar o confronto no qual se ergue, mas sim em cifra-lo, nos acordes dos timbres que o entoam.

terra, água e voz

Antes que algo nasça, a gestação. O filme de Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero rompe antes do começo. Um prólogo nos conta a história de um estrago, a chegada de uma espécie de praga. Ilustrações feitas por um desenhista estrangeiro durante a colonização e imagens de arquivo da cidade de Teófilo Otoni acompanham uma narração. A voz desse início muito se parece com as vozes que acontecerão por toda a vastidão do filme, narrando lugares, contando histórias. A voz não é como algo feito no depois, distante do calor da gravação ou apartada da força da caminhada na qual o filme se faz. É uma voz off que não ocupa o fora, se posiciona e tem sabor de dentro. Essa mesma voz nos diz que as árvores compridas acabaram, mas, pela matéria encantada de que são feitas, seu canto ainda existe. Eis aí o primeiro indicador do que será a presença da música durante os próximos 70 minutos. O canto como fóssil – vibração concreta de saudade e demarcação circunscrita de Vida continuada – abre o filme.

fim do prólogo

O filme está no meio do trieiro, caminhando junto aos corpos, daqui pra frente as imagens virão dessas câmeras que peregrinam na companhia de um grupo. O filme deixa que o capim passe pelo seu rosto na trilha estreita. Câmera feito corpo, presença tangível no pequeno bando que se move. Câmera que sente o que é pisar sua própria terra revestida por vegetação estranha. Nesse giro entre o filme-prólogo e o filme-corpo-do-trieiro, uma espécie de preparo nos abala, como um flexionar de músculos, as pernas com sede de entrar na marcha. Iluminados por lanternas de celulares, o grupo está dentro de uma caverna no Vale do Mucuri que já amoitou os Tikmũ’ũn e que hoje esconde os bichos que voam na escuridão. E isso eles cantam, o voo na escuridão. A primeira cifra do filme acontece na fala de um pajé que, enquanto o grupo canta, conta uma lembrança daquela caverna, diz de uma certa pedagogia do esconderijo, acorde que será declamado mais vezes.

O filme se assenta numa sala de aula para saber dos próximos passos. Um quadro é preenchido com nomes de parentes assassinados. São esses nomes que lançam o grupo numa peregrinação, num itinerário que finca paragens bem marcadas. Nem um resquício de esquecimento cabe na insistente tarefa de desfazer uma paisagem impostora. E os testemunhos são feitos sempre de pé, a postura de corpos que se sabem movimento.

A presença do corpo do filme junto ao corpo do grupo é notada – que filme é esse? um vaqueiro, a mando de um fazendeiro, quer saber. Ninguém responde, conversam entre si, fora do português, esconderijo. Outra vez o corpo do filme é notado, quando no meio da cidade um homem grita provocações de dentro do seu Recreio Carioca PUB (Itanhém-BA), o grupo decide se aproximar. O homem acusa Virgílio de roubar a lâmpada de seu estabelecimento – Tem que filmar isso aqui [apontando pra lâmpada] e mandar pra FUNAI. O homem mostra sinais de desconforto quando percebe a permanência do grupo, e das câmeras do grupo – tem que filmar isso aqui. [Não eu, eu não]. O homem faz seu discurso sozinho. Quem segura a câmera não fala nada, os demais do grupo emudecem – esconderijo – o constrangimento cresce. O homem tem um gestual excessivo, balançando o tronco e as pernas em desconforto, três vezes a mesma acusação é repetida, fazendo quase uma mímica. O cinema é testemunha que caminha junto, e vê, assombra, e guarda.

7 erros

[dois estranhos desenhos, jogo de 7 erros que o filme propõe]

Na entrada da cidade de Machacalis-MG, a placa informa numa caricatura tosca que até mesmo o idioma próprio é passível de dano quando a palavra é o outro. O erro na grafia é notado por uma das companheiras do grupo – escreveram errado também a palavra, tá faltando um acento aí, não tá bom assim! A falha da escrita delata a falha da imagem, a falha da cidade, a falha de um país. O ímpeto da andança nos aponta uma porção de motivos: a vigília nos pontos onde os parentes foram assassinados, a escrita numa parede da cidade com tinta vermelha, a anotação feita num caderno apoiado no colo durante a fala do pajé, a temperatura dos olhos de uma mulher maxakali devolvendo o olhar de dois homens brancos enquanto atravessa a pé a fronteira Minas-Bahia. A ponta dos olhos dessa mulher durante a travessia fronteiriça desnuda toda a história da luta fundiária brasileira.

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É como se tombassem, na fragilidade de sua ficção assassina, todos os brancos mapas e se reerguesse uma cartografia inteira desenhada pela planta dos pés que percorrem aquela terra, pela ponta dos dedos que apontam uma paisagem muito viva. A voz dessa mulher que narra o balanço de um corpo nos cipós de uma gameleira a beira do rio, sem rio, sem árvore, sem cipó para a brincadeira dos corpos. Uma voz que memorizou o mundo.

Cada passo é dado para lembrar, cada marca de pegada é feita pra chamar de volta. Um anúncio – Agora, para acabar, vamos cantar. Assistimos à combinação sendo feita, o que é que acaba? Caminhada ou filme? Sinto que nenhum dos dois. Depois da frase-título ser dita em voz alta pelo coro das vozes – Nũhũ yãg mũ yõg hãm (essa terra é nossa!), ninguém se contém e muitas falas irrompem, acontecem uma seguida da outra, ao mesmo tempo, palavras irrefreáveis, precedendo o canto, precedendo a chuva que quase vem. O grupo canta e o cinema parece existir para isso, para escutar seu canto. Na última imagem seguem caminho, contornando margens de um regresso sem medo.

[radiografia de uma sessão]


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