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Nordestes podem remontar a olhos de crianças

Realizado em Poções, município da Bahia, Rosa Tirana é roteirizado e dirigido por Rogério Sagui. Ao longo do filme, acompanhamos o percurso de Rosa, que parte de casa em busca de Nossa Senhora Imaculada. Galhos secos revelam a atmosfera da maior seca que o sertão nordestino já viveu.

As narrativas da seca povoam bastante as imagens já conhecidas sobre o Nordeste e o cinema brasileiro já as explorou bastante. Existe, desde sempre, um fetiche brasileiro acerca do sofrimento do povo nordestino. Um sofrimento carregado por mortes, canções religiosas, fome e sede, sol de rachar a pele, olhares suplicantes em reza, cristianismo exacerbado, soluções alegóricas e personagens caricaturais. O audiovisual brasileiro já explorou esses estereótipos de diversas formas e a teledramaturgia brasileira, em especial, tem uma dívida histórica com a imagem que criou do Nordeste em suas produções. Temos no imaginário coletivo uma linhagem de atores e atrizes sudestinos que construíram interpretações caricaturais e desrespeitosas acerca das existências nordestinas, com sotaques carregados e maquiagens equivocadas que, por muitas vezes, nos fazem lembrar de personagens cômicos que produziam o efeito do riso através da chacota com o que nunca fomos. As diferenças econômicas e sociais entre as regiões do Brasil são gritantes e a formação do imaginário do sertão nordestino que nos foi devolvido sobre nós mesmos através do olhar do outro (o sujeito sudestino) ainda acarreta uma série de desdobramentos poéticos e estéticos que confundem e nos impedem de nos relacionar com a nossa tradição.

Rosa Tirana não faz diferente. O filme utiliza muitos dos clichês carregados durante décadas nas nossas costas. Durante muito tempo, atores e atrizes nordestinos nunca tiveram a chance de interpretar nos grandes meios de veiculação personagens que estivessem para além do que o olhar sudestino esperava deles. É como se nós, atores e atrizes nordestinas, só pudéssemos representar dentro de aspectos únicos e limitados. Toda uma linhagem de atores e atrizes nordestinos fizeram o êxodo para o sudeste, tentando carreira em meios televisivos e nunca conseguindo um lugar ao sol. Lembro de Gero Camilo dizendo que nunca aceitou fazer um porteiro, personagem que sempre ofereciam a ele. E por que estou escrevendo tanto sobre o imaginário do sertão nordestino? Porque preciso escrever sobre o incômodo que surge em mim ao assistir a Rosa Tirana.

A narrativa é permeada por muitos desses clichês já mencionados e corrobora com a construção de um imaginário do sertão nordestino já bastante explorado. Em diversos momentos vemos Rosa acuada, com medo, com semblantes de dor e sofrimento. Em poucos momentos vemos Rosa tomando as rédeas do próprio destino e optando por reinventar sua condição de existência. Confesso que quando Rosa foge de casa, torci desesperadamente para que a garota trilhasse caminhos fantásticos que a lançassem para longe das condições iniciais que o filme apresenta. Torci para que o fantástico adentrasse a narrativa como agência de invenção de caminhos outros para a protagonista, mas aqui, ao contrário do que vibrei em sonho, o fantástico entra para adensar as vias de exaustão da condição de vulnerabilidade. Com exceção do encontro de Rosa com a chuva, que só acontece ao final de tudo.

Os seres terrenos que surgem no filme caminham na direção de uma investigação bastante interessante, no paralelo com as rochas, mas desembocam em uma espécie de terror de Rosa no contato com as rachaduras e fantasmas de (mais uma vez) um nordeste ferido pela dor e pela seca. Aqui pergunto: por que Rosa não poderia dançar com as pedras? Por que Rosa não pode intervir em seu destino reinventando-o?

Olho para o filme buscando me aproximar da chuva, do calor, da religiosidade dos seres fantásticos que habitam a caatinga, dos galhos secos, do sotaque carregado. Sim, Nordeste também é isso. E não precisamos deixar de ser para que o sudeste entenda que sempre fomos além disso. A reparação histórica deve ser feita a partir da possibilidade de vermos cada vez mais nordestes, múltiplos nordestes. Nordestes a torto e a direito. Nordeste sempre foi aqui. A dívida histórica gritante irrompe na veia do sertão nordestino. Sorrio com Rosa (Kiarah Rocha), comemoro a chuva e desejo que as gotas de suor de cada nordestino que foi tentar a vida em São Paulo se converta em abundância de produções nordestinas povoadas por imaginários inimagináveis. Que possamos reinventar o Brasil.


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