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Ser pedra é fácil, difícil é ser vidraça

#eagoraoque é um filme-estudo – experimental e análitico ao mesmo tempo – sobre a figura do intelectual, ali representado pelo professor e filósofo Vladimir Safatle, que interpreta a si mesmo em cenas que oscilam entre o documentário direto e os momentos ficcionais mais claramente roteirizados. Atrás das câmeras, por sua vez, está Jean-Claude Bernardet, codiretor do filme ao lado de Rubens Rewald. Bernardet é crítico de cinema e autor, entre muitos outros, do seminal Cineastas e Imagens do Povo, obra em que problematizou as totalizações e as grandes teses sobre a Nação realizadas pelos cineastas brasileiros dos anos 60/70. Desta vez, será o caso de Bernardet, junto a Rewald, tomarem Safatle como objeto de estudo com o fito de responder à pergunta que surge ao longo do filme: o “intelectual” fala a língua do povo?

Daí em diante, acompanhamos Safatle numa série de atividades que vão desde aulas e conferências ministradas pelo filósofo até encontros e discussões com outros militantes políticos. Essas atividades, a grosso modo, dividem-se em dois grupos: a) nos vários momentos em que leciona ou discursa para uma platéia ou sala de aula, Safatle fala com propriedade e engaja o público em seus enunciados políticos e mais ou menos abstratos; b) nas demais vezes em que dialoga diretamente com os militantes para programar a ação política propriamente dita, as posições do professor se revelam distanciadas e aquém dos desafios concretos em questão. #eagoraoque está interessado em filmar o impasse – entre o intelectual e os demais agentes políticos – sem jamais dissolvê-lo, pois disposto a escutar os ruídos dessa incomunicabilidade até o fim.

Se Bernardet e Rewald fazem isso bem – sem apelar à mera distinção “teoria” e “prática” – é porque se preocupam em traduzir o impasse em durações, cortes e posições da câmera, só em função dos quais o filme cria uma experiência instável e confrontadora que reproduz o conflito em sua própria carne. Especialmente através da montagem, #eagoraoque modifica continuamente o ponto de vista entre a proximidade e a distância, cavando profundezas e abrindo derivações na relação espectador-intelectual, sem abrir mão da violência cognitiva e do choque entre registros que instauram a crise do personagem em todos os níveis da obra. Em um momento em que “o documentário tornou-se (mais uma vez) um espaço para a pureza das boas intenções”, como afirmou Cezar Migliorin, a montagem lança mão da “ironia, a manipulação explícita e a distância ao bom mocismo” para caracterizar o intelectual sem a falsa modéstia de quem prefere ser “justo” do que forjar os meios necessários de representar o absurdo das situações em que o personagem está inserido. Não estamos diante da montagem cínica do autor que estabelece uma relação de confiança com o personagem para ao final sabotá-lo, mas do raro filme em que a relação entre autores e personagens é levada ao limite da distribuição dos papéis, dos territórios e das linguagens.

Ao passo que boa parte dos momentos envolve Safatle em atuações públicas e não roteirizadas, as cenas que recebem tratamento dramático mais evidente apresentam o filósofo em diálogo com sua família – a filha e o “pai”, representado pelo próprio Bernardet. Essas cenas amainam, em alguma medida, o ímpeto disruptivo e interrogativo do filme à medida que não se limitam a insinuar leituras possíveis, mas as entregam de bandeja e sem paradoxo ao espectador como quem desconfia desse, e assim dissuadem a estranheza do todo. Sua filha (Valentina Ghiorzi), por exemplo, critica a pouca disposição do pai em realmente escutar outrem, enquanto Bernardet afirma que lhe falta uma verdadeira sensibilidade aos problemas mundanos, em relação aos quais Safatle escreveria como quem está “dois metros acima da realidade”. Tratando-se de um filme em que as cenas se sucedem como um reajuste contínuo do campo de experiência, essa perda de potencial inquisitivo e especulativo é fatalmente sentida. São momentos em que os juízos são peremptórios e encarnam o ponto de vista do filme, ao contrário de outros momentos em que a duração da cena – e não raro o desconforto do próprio Safatle – é que sugerem as linhas de sentido.

É certo que as discussões entre Safatle e os agentes políticos jamais resultam em diálogos propriamente ditos, seja porque o filósofo propõe coisas pouco factíveis, seja porque os militantes recusam conscientemente a relação entre intelectual e “massa” que pressupõe, de um lado, o poder da palavra e, do outro, a escuta passiva. Não é menos certo, no entanto, que alguma comunicação é produzida pelo contato entre as cenas, seus intervalos, suas oposições e o conjunto que as totaliza como uma contradição ambulante e organizada que não teme dizer seu nome. A suspeita dos sujeitos quanto a representatividade do intelectual é o que opõem #eagoraoque aos filmes criticados por Bernardet (em Cineastas e Imagens do Povo) que reproduziam, contra as próprias intenções, “a imagem de um povo sofredor, passivo, injustiçado, que não consegue agir em seu interesse e aguarda soluções de outras áreas da sociedade”. Ao mesmo tempo, a despeito da autoconsciência hipertrofiada própria ao intelectual, Safatle não está fechado em si mesmo, afinal o filme existe, mas, é claro, poderia não existir. A disposição de Safatle em protagonizá-lo o torna alvo de si mesmo e principalmente do cinema.

Se não há diálogo entre os personagens, há mediação, pois o filme é a reflexão desassombrada a respeito dessa falta. #eagoraoque extrapola a mera busca do intelectual pelo seu lugar de fala, para, em seu lugar, fixar o imperativo de criar uma nova língua. O fracasso, assim, emerge como a possibilidade de outra coisa; o dissenso como a condição primeira de um diálogo; e o cinema, ainda, como a pulsação originária de um porvir.


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