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Bernardet na Berlinda

. 49 Festival de Brasília . 

Num texto para a cobertura do Festival de Brasília de 2015 sobre Fome, de Cristiano Burlan, escrevi aqui mesmo na Cinética: “A armadilha (do filme) começa na escolha do próprio Jean-Claude Bernardet para o papel principal de um mendigo. Como fica cada vez mais evidente a cada novo filme protagonizado pelo crítico – entre eles, Filmefobia (2008) e Periscópio (2014), de Kiko Goifman; Pingo D’água (2014), de Taciano Valério; e o citado Hamlet, de Burlan –, nunca um trabalho com Bernardet no elenco central deixa de ser, antes de tudo, um filme sobre e para Bernardet. Seja pela persona bastante reconhecida no meio audiovisual, pelo sotaque afrancesado, pela presença física (entre a fragilidade da magreza e a força da expressão), pela exposição de sua intimidade e história de vida em livros e reportagens, ou mesmo pela conceituação algo analítica de sua presença na fatura dos filmes desde os projetos originais, é impossível desvincular aquilo que se vê daquilo que se sabe”.

O crítico franco-belga-brasileiro voltou a Brasília em 2016 como presença fílmica em A Destruição de Bernardet, dirigido por Cláudia Priscila e Pedro Marques. Desta vez, a abordagem é explícita, já de princípio, no título: é um filme efetivamente realizado sobre e para Bernardet. É também uma espécie de ápice das recentes participações do ator-personagem em filmes, sendo tanto homenagem (“um filme de amor”, como dito em debate realizado durante o festival) quanto também um reconhecimento (na chave do deboche) da onipresença de Bernardet em projetos vários de cineastas em São Paulo. A cena inicial deixa evidente a autoconsciência: num áudio em off, o cineasta e produtor Francisco César Filho (não identificado diretamente, mas cuja voz é facilmente reconhecível por quem o conhece) aponta a importância e relevância de Bernardet no pensamento sobre o cinema brasileiro nas últimas cinco décadas para, logo em seguida, questionar o porquê de ele, desde 2009 e próximo dos 80 anos de idade, se submeter a aparecer como ator em tantos filmes.

É um chiste que diverte aos conhecedores de Bernardet, além de porta de entrada a um filme que será, sempre, muito mais tributo do que qualquer outra coisa. Mas é também um chiste que explicita algo curioso em relação às presenças do crítico como ator nos filmes: todos exaltam e reconhecem Bernardet como interlocutor, sempre há uma ou outra referência a seus trabalhos intelectuais (ainda que jamais nomeados) e quase nunca (ou nunca mesmo?) os motivadores do tributo são, de fato, trazidos à tona pelos filmes. Jean-Claude Bernardet se aproximou de vários realizadores (em especial Kiko Goifman, Cláudia Priscila e Cristiano Burlan), motivados por simpatias e questões explicitadas num blog que ele mantém na internet, e esses realizadores se apropriaram essencialmente do corpo e do carisma de Bernardet, mas quase nunca de suas ideias pregressas (pelo menos não na articulação interna dos filmes), muito citadas abstratamente para o reconhecimento de sua importância. Em alguma medida, será que essas ideias interessam aos cineastas (e aos filmes que fazem)? Elas lhes servem ou lhes fazem algum sentido?

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O pensador e o pensamento foram tornados fetiche; seu histórico e sua presença e importância, inegáveis e incontornáveis nas discussões do audiovisual, passaram a servir de legitimação intelectual a seu uso como ator. Aponta-se, aqui, mais a constatação do que o problema. A questão é o quanto o imaginário sobre Bernardet tem superado em muito sua presença. São raros os filmes com o crítico no elenco que não o transformam numa questão a ser detidamente explorada na dramaturgia ou na encenação. Talvez apenas o longa O Homem das Multidões (Cao Guimarães e Marcelo Gomes, 2014), no qual é o pai da protagonista vivida por Silvia Lourenço, e o curta A Navalha do Avô (Pedro Jorge, 2013) desvinculem-no da persona. No geral, Bernardet entra nos filmes para ser variações de um Bernardet-base, mesmo que o personagem, de início, afaste-se completamente da sua realidade como indivíduo (como o morador de rua em Fome, logo revelado um ex-professor de cinema na USP). O fascínio e respeito chega a tanto que os cineastas aparentemente são incapazes de driblar o fetiche. Há de se pensar, é claro, o quanto disso é estimulado pelo próprio Bernardet, sempre repetindo em debates que não lhe interessa entrar num filme para fazer dramaturgia ou construção de personagens, e sim em ter seu corpo transfigurado numa performance. Seria um posicionamento forte e compreensível. Porém, quando confrontado com a realidade dos filmes, não é exatamente assim (Bernardet faz dramaturgia, encenação e personagens em Fome, O Homem das Multidões, Pingo D’água…).

Resta, então, pensar que a Bernardet só interessa o envolvimento onde lhe querem como performer de si mesmo, e aí começamos a entrar num terreno mais palpável. Por esse caminho, A Destruição de Bernardet se apresenta como espaço para que isso aconteça com a honestidade devida. É um filme-brincadeira que leva o crítico a zonas de conforto com alguma leveza. As piadas internas se acumulam (as entradas e saídas de gente muito familiar do cinema paulista), e o face a face do próprio Bernardet com uma genealogia de suas imagens potencializa o desejo do filme pela autorreferência (sempre piadista, nunca conflituosa, porque não se quer um filme de confrontos, e sim de afetos). Ensaiam-se aqui e ali alegorias e simbolismos sobre vida e morte, juventude e envelhecimento, perdas e memórias, mas tudo isso – apesar da evidente relação com a longevidade e lucidez de Bernardet – só existem como ponto de partida de dramaturgia.

Num determinado diálogo, Bernardet assiste ao depoimento de um antigo aluno que narra os motivos que levavam diversos realizadores a chamarem o professor para pequenas aparições nos filmes, ainda nos anos 1970. “Ele era muito ruim, então servia como uma vingança pelo que ele fazia com a gente na sala de aula”, diz, mais ou menos com essas palavras. Bernardet se diverte. Inventada ou autêntica, a cena explicita uma percepção alterada do que era ter o crítico dentro dos filmes. Se antes ele era chamado como uma presença espirituosa (fosse ou não por motivos de “vingança”), em tempos recentes ele tem sido tratado como a centralidade de cada escolha, como o protagonista dentro e fora da tela, numa dissecação à câmera aberta de suas questões pessoais (a Aids, a progressiva cegueira, o cotidiano no apartamento, as tiradas impagáveis nos amigos) transfiguradas num tipo de franquia que ganha em A Destruição de Bernardet o que poderia ser o episódio final da hiperpresença performática desse ator-personagem. Assim como Bernardet se reinventou tantas vezes na sua obra escrita, talvez seja hora de os cineastas admiradores fazerem movimento similar ao ídolo e reinventarem-no também na tela.


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