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Da urgência

. 49o Festival de Brasília .   

Parte importante do cinema brasileiro da última década foi feita sob o signo da urgência. A principal delas foi durante muito tempo a urgência da encenação, a necessidade de expressão que, de modos diferentes, movimentou boa parte dos filmes e a sede pelo cinema de uma gama de realizadores. Essa urgência aparecia de modo muito cristalino em Conceição – Autor Bom É Autor Morto (2007), filme coletivo que discute a feitura da própria obra e os modos de encenação das histórias de personagens anônimas, contando suas vidas, ou a ficcionalização dos interesses individuais dos personagens-cineastas ao redor da mesa de bar num “filme de todos e de ninguém”. Ou ainda no projeto de espontaneidade de uma série de filmes realizados pela necessidade expressiva, como Meu Nome é Dindi (2008), de Bruno Safadi, buscando pôr em cena esse “desejo de cinema” – desejo de filmar o mundo, a vida e se colocar neste tal de cinema brasileiro;

Nos últimos anos, a nova realidade histórica e social do país parece demandar outro tipo de risco, e a urgência se encaminha para um olhar político, do gesto imediato de colocar a câmera no centro da ação e o discurso explícito sobre uma realidade em crise.. Logo no início de Precisamos Falar do Assédio, de Paula Sacchetta, duas cartelas apresentam o dispositivo que em seguida se fará na tela: uma van-estúdio percorre a cidade colhendo depoimentos de mulheres assediadas com liberdade para cobrir o rosto e ter sua voz distorcida caso não desejem identificar-se. A diretora interage com a primeira personagem, retirando-se antes de fechar a porta de correr da van, cujo som marca diversas das transições entre depoimentos, deixando-a a sós com a câmera. O gesto da encenação é retirar os elementos de mediação entre cineasta e personagem – numa rima evidente com as instituições mediadoras de proteção das vítimas que serão problematizadas nos depoimentos de muitas delas – para ater-se ao narrado por elas: num cenário preto, sentada em plano próximo, cada uma das vinte e seis personagens conta diretamente para a câmera sua história de assédio ou abuso. Cria-se uma caixa preta de ressonância dessas narrativas, na qual a força e conteúdo das histórias rasga o ar como uma flecha. O dispositivo é similar com as caixas de ressonância de Pacific (2009), de Marcelo Pedroso, e Doméstica (2012), de Gabriel Mascaro, com a diferença aqui dos elementos de cenário em relação à mobilidade da câmera e o salto do real que o dispositivo nos dois filmes procurava tornar imediatamente palpável.

Precisamos Falar do Assédio (2016), Paula Sacchetta
Precisamos Falar do Assédio (2016), Paula Sacchetta

“Precisamos falar”: a palavra está no centro. O desejo é o de liberar aquilo que, não sendo mais visível, só pode ser contado. A caixa-preta onde o filme se passa puxa toda a experiência sensível para o imaginário em torno das histórias de opressão, silêncio e dor. Retiradas do desejo de encenação, as histórias marcam a urgência do tema que ultrapassa o ofício dos cineastas de pôr em cena. O tema precisa propriamente existir antes de ser encenado. E se a força da palavra conduz o filme, reside nesse contato direto com a lente a potência das pequenas evidências: respirações mais fortes, pausas, choros, olhares das mulheres que evitam o olho da câmera.

Contudo, “não encenar” é, em si, uma escolha de encenação que traz consequências. O não-cenário cria um não-lugar que pode ser qualquer ou nenhum lugar, e esta caixa-preta, se fala do passado, também fala do presente e amplifica a potência das histórias ali recolhidas. São potências perturbadoras, pois o grau de intensidade de cada história começa já elevado a um estágio ensurdecedor pela “não-encenação” do filme. Mesmo as máscaras, utilizadas por algumas personagens para esconder a identidade, ganham outros contornos de sentido, pois, ao evitar o pouco de composição espontânea das narradoras na imagem, criam uma opacidade dolorosa. A cineasta não se retira do filme, por mais que sua presença não se dê no espaço da entrevista, pois se a ressonância do tema é maior que qualquer desejo estético, sua amplitude só se faz na forma, e quanto mais suas escolhas vão no sentido de retirar camadas entre quem conta e quem ouve/vê, mais elementos se colocam nessa experiência, pelo acúmulo de tudo aquilo com o qual é preciso lidar de forma tão direta. Precisamos Falar… é um filme desconfortante tanto pelo que expressa quanto pelo que nega: essa dialética nem sempre harmoniosa é o que chamamos propriamente de encenar. Então, o filme de Paula Sacchetta, em sua recusa da encenação da entrevista – cujo ápice se dá nos cortes secos dentro do mesmo relato, coberto por uma pequena tela preta, negando até mesmo o jumpcut – encena uma potente caixa de ressonância de sua urgência política.

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Esta tensão é encontrada no espaço da cena em Quando os Dias Eram Eternos, de Marcus Vinícius Vasconcelos. É curioso pensar em espaço cênico numa animação organizada em torno dos elementos mais básicos do desenho (o papel e a linha). Num dos primeiros momentos do filme, um garoto anda em direção a uma porta solitária no espaço. O local é marcado, assim como o da porta, pelo branco do papel, revelado por um facho de luz que acompanha o andar difícil do menino. Ao redor dos dois pontos brancos iluminados, um negrume formado por rabiscos, uma massa de linhas que ameaça consumir o espaço da ação. O branco não é também alívio: as linhas do desenho estão prestes a se desfazer no papel.

A encenação de Quando os Dias… se faz deste balanço desregulado entre a linha aberta e seu peso sobre a folha, numa tensão que organiza o ritmo melancólico do filme. Sua história de perda da mãe doente de câncer remete aos fios de cabelos e às marcas da enfermidade que dominam o corpo, ao mesmo tempo que retiram sua presença. O desenho aqui segue a lógica de algo que se alastra e não se completa, pois fechar-se é a morte. O filme purga o desaparecimento, ao mesmo tempo que está consciente de sua inevitabilidade, já que a imagem, se resiste a tornar-se toda branca ou toda preta, em certo momento deixará de existir – o fim do filme. O som constante do lápis riscando o papel é um choro ruidoso do gesto cênico de encenar o impossível: a pausa da morte inevitável. A cena incompleta, ameaçada de se desfazer a qualquer momento, coloca-se num meio termo entre ser encenação e só desenho que faz a verdadeira força expressiva do filme.

Quando os Dias Eram Eternos (2016), Marcus Vinícius Vasconcelos
Quando os Dias Eram Eternos (2016), Marcus Vinícius Vasconcelos

A força expressiva do plano é o grande trunfo de Rifle, de Davi Pretto, em sua elaboração minuciosa do ritmo plástico das imagens a partir da paisagem e do tempo vagaroso entre os cortes. Sua elaboração extremamente expressiva se sustenta na ameaça mesma de desequilíbrio ou de ordenação total, dialética esta que concretiza a encenação. Os principais filmes de Pretto até aqui parecem dessincronizados com o passo geral de seus contemporâneos, o que, a rigor, não depõe a favor ou contra de nada. Enquanto o jovem cinema brasileiro buscava um projeto espontâneo de encenação com poucos recursos aliado a uma plenitude da vida a partir do contato afetivo com suas “coisas miúdas”, Quarto de Espera (2009, em co-direção com Bruno Carboni, montador aqui) trazia uma encenação controlada, quase espetacular, de mobilidade pesarosa da câmera por um cenário desolado, frio, abandonado. Com uma iconografia surreal, o curta apresentava um personagem isolado por uma máscara de gás que criava um ruído imagético na realidade urbana desfigurada. Lembro de ter visto Quarto de Espera na mesma sessão que Chapa (2009), de Thiago Ricarte, filme que, naquele momento, parecia sintetizar algumas estratégias do curta-metragem de uma nova geração empenhada no descontrole, na simplicidade, nas pontas soltas; o curta de Pretto e Carboni tensionava as incertezas, buscando uma costura impossível que a própria iconografia do personagem rebatia a todo instante. Já Castanha (2014), seu primeiro longa-metragem, apostava em estratégias similares desse mesmo cinema a que o curta se contrapunha: uma encenação mais espontânea, com certa simplicidade de meios, e a composição de uma personagem que parte da própria vivência de seu ator – numa interessante metalinguagem, um ator na vida real e no filme – para retratar um universo de submundo e anonimato que pode transbordar a forma. Castanha é como um resquício do processo gerador de Girimunho (2011), de Helvécio Marins e Clarissa Campolina, e O Céu Sobre os Ombros (2010), de Sérgio Borges.

Rifle também parece um corpo estranho num conjunto de filmes cada vez mais agressivamente políticos, com questões de identidade e crise social que gritam alto na atualidade. Não que esse conflito não esteja aqui: a trama se desenvolve em torno da questão latifundiária no interior do Rio Grande do Sul, com um jovem, Dione, residente em uma pequena propriedade rural, que teme a venda do terreno para um latifundiário. Esta desconfiança se estende, em determinado momento, para todo corpo estranho à vida daquele pedaço de terra, confundindo-se com o mistério interior que o protagonista esconde. O olhar profundo e a expressãocerrada de Dione escondem um passado pouco claro e suas intenções ao se opor de forma veemente à venda da fazenda de seu patrão são um mistério.

Rifle (2016), Davi Pretto
Rifle (2016), Davi Pretto

Contudo, essa trama política envolvendo a terra é apenas um fiapo de história diluída pela paisagem, filmada em grandes planos espetaculares que aproveitam a profundidade de campo para afirmar a imensidão visual das locações. Intercalando grandes planos gerais com planos próximos detidos na opacidade de Dione, Rifle vai da paisagem a perder de vista para a atenção aos pequenos gestos e reflexos de atuação do elenco, composto por moradores da região. A expressividade dessa paisagem e o movimento interno das cenas, numa vagarosa rotina cíclica da vida campesina, vai consumindo a trama da disputa da terra que aos poucos se perde na opacidade de Dione. Atento às aflições do protagonista, o filme acompanha o personagem em um desvio, disposto a não retornar a esse passado que pouco conhecemos. Rifle tensiona o contraponto entre afirmar e abandonar a trama sobre a terra com a narrativa existencial de Dione. Presente e passado, confronto e agonia, paisagem e personagem se contrapõem, chocam-se, negam-se. Os lentos movimentos laterais do filme simbolizam o andar vagaroso entre o narrativo e a indeterminação. Esta é a força do filme, potente em conduzir o espectador pela simples contemplação das cenas e seus pequenos arroubos de explosão; mas também sua fraqueza, pois não consegue esconder a difícil conciliação desses dois modos. A questão é mais sensível no contorno geral da estrutura, intercalando momentos mais fluidos e enigmáticos com tempos alongados e ações pouco motivadas (especialmente a brilhante sequência de Dione atirando em diversos carros que passam pela região), feitos de espera, observação, como a respiração profunda de uma alma conturbada, com “paradas” mais explicativas, diálogos que esclarecem certos movimentos da trama e atam as pontas soltas. Por sua vez, os momentos mais enigmáticos se esforçam na composição detida das formas do cenário, nos enquadramentos equilibrados na perspectiva e presença do corpo no quadro, enquanto suas “paradas” são mais diretas, de corpos mais próximos da câmera, com baixa luz e maior espontaneidade nas falas e interações entre as personagens, apropriando-se da prosódia e expressões típicas da região.

Essa tensão, contudo, é de difícil solução. Entre se perder no sujeito e apontar as questões políticas, Rifle cria uma armadilha conciliatória na composição de dois modos que não habitam, em nenhum momento, o mesmo espaço cênico. É questão similar à enfrentada por O Som ao Redor (2013) na tentativa de arranjar a estrutura arcaica do latifúndio à crônica social urbana sob a forma do filme de gangster. A polifonia do filme de Kleber Mendonça permitia, por sua vez, a catarse violenta desse encontro no corte para um outro espaço que, deixando o conflito político do latifúndio fora de quadro, mantinha a crônica urbana como solução imagética final. Em Rifle, centrado numa única figura, numa inquietude entre a concentração e a distensão, a catarse final não tem espaço cênico para se ancorar e torna-se pura expressão sonora, sob os créditos finais, nem tão irresolutamente vaga tampouco explosiva.


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