Castanha, de Davi Pretto (Brasil, 2014)
março 16, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo
A face obscura de um ator
por Pablo Gonçalo
Embora seja o primeiro longa-metragem de Davi Pretto, Castanha dialoga com uma linhagem consistente de uma nova geração de cineastas brasileiros que, nos últimos anos, estão ocupando uma cena de destaque. Pode-se, numa síntese ansiosa, encadear uma série de elementos (um tanto) exteriores ao filme, como o formato vinculado ao documentário, o modo de trabalho coletivo e colaborativo ou, ainda, produções de baixo custo. É, contudo, pelo aspecto sensível, pelo resultado, que percebe-se uma singularidade – e uma tônica contínua – nessa obra exibida no Forum da Berlinale. Castanha é um filme que compartilha mais dúvidas do que perguntas bem formuladas; mais inquietações do que teses; mais incômodos do que sensações pontuais. Estamos diante de uma dramaturgia centrífuga, que desmorona como uma brisa (porque assim, corajosamente, quer), e são esses vetores de desmanche que mais chamam a atenção no longa de estréia de Davi Pretto.
Se escolhêssemos um enredo, caminharíamos pelo documentário biográfico de João Carlos Castanha, um ator e performer de Porto Alegre que transita por uma cena e um submundo um tanto underground dessa capital. Há, contudo, já nessa primeira sinopse dois elementos que desarticulam uma coerência afirmativa. O primeiro é o foco na atuação e na interpretação como um modo de vida. Talvez Jogo de Cena (2007), de Eduardo Coutinho, tenha aberto uma trilha mais clara aos cineastas jovens, uma trilha que delineou documentários “de”, “sobre” e “com” atores. Nesse diapasão, câmera, cena e atuação ganham mais do que uma combustão química; criam, juntos, um jogo de máscaras e de espelhos que captam, principalmente, o rosto do performer, em vez das máscaras vestidas. O espaço da performance seria, por natureza, o local de onde a mise en scène também brotaria, de forma cristalina e evidente. João Castanha – seja o personagem, seja o sujeito documentado – é também um performer que se veste de mulher e anima um público gay de casas noturnas, convivendo, assim, ao longo dos anos, com um ambiente de prostituição. Filma-se seu cotidiano diurno, sempre meio lento e tedioso, alternando-se com seu convívio na noite, como um ator que trabalha, que vende suas piadas, seu ultraje, sua voz, a presença do seu corpo e da sua imagem.
Paralelamente, João Carlos Castanha assina junto com Davi Pretto o roteiro do filme. Essa colaboração entre diretor e ator, entre documentarista e documentado, engendra uma importante diferença no tom geral do filme. Há mais do que uma cumplicidade e a procura por um pacto ou equilíbrio ético, mas uma confiança no estilo do filme que foi feito, e, durante a filmagem, a partilha dos mesmos valores, das mesmas perguntas dramáticas. Em Castanha, ética e estética estão mais do que entrelaçados; eles complementam-se. O filme também possui um roteiro que delineia bem os personagens, o ambiente, os pequenos conflitos. O plot concentra-se entre tensões interiores da família e nos (des)prazeres de fuga que a noite de Porto Alegre desperta no ator.
Assim, o filme interage com o círculo imediato de indivíduos que estão ao redor da vida real do ator e personagem: sua mãe, Celina, que visita o pai, Jairo, no asilo, de quem Castanha deliberadamente não gosta (e só visita em uma sequência); os amigos da noite, um pai de santo do candomblé, o sobrinho viciado em crack. Parte-se desse ambiente, muito próximo a um retrato biográfico, para suscitar uma mise em scène com uma tônica fortemente observacional: são instantes de interação, diálogo, em que a dramaturgia é apenas um sopro de sugestão e a câmera capta o que dali sair.
Castanha é um filme que ressalta escolhas – e, claro, suas consequências, às vezes trágicas. Há, primeiro, a opção, insistente, apaixonada, pela profissão de ator. Numa determinada cena, João Castanha vai ver um filme e comenta, em over, seus sonhos, seus reclames: tem certeza que se tivesse nascido em outro país, que não no Brasil e com uma produção cinematográfica consistente, teria sido um grande ator, uma ‘estrela’, obteria reconhecimento. Apesar desse sonho, e dessa frustração, o filme do qual ele é o protagonista mostra a atuação de João Castanha em curtas universitários, em comerciais locais, em peças, em gravações musicais, além, claro, de sua performance nos clubes noturnos masculinos. Junto ao retrato e às atuações de João Castanha, retrata-se o ambiente gay e a cena artística undergournd de Porto Alegre, bem enviesado por um contexto de inferninho dos anos 1980 e da geração que vivenciou (e sobreviveu) à Aids.
Como elemento importante, a morte figura como a outra face, oculta, que perambula entre as escolhas, biográficas e cênicas, de João Castanha. Dramaticamente, esse enfrentamento com a morte ganha a cena metafórica da abertura do filme, quando João Castanha caminha nu, à noite, ensangüentado, como se flertasse com sua própria morte. No filme, o outro elemento mais evidente de morte revela-se nas sequências referentes ao sobrinho viciado em crack. Ali, a morte é encarada tanto como um dilema ético, como uma violência latente que atravessa a realidade e o dia a dia de João Castanha. No entanto, num passo mais interpretativo, pode-se ler a morte como um elemento intrínseco ao ofício do ator. No seu ensaio sobre O Mito de Sísifo, Albert Camus chama a atenção para o ator como uma força estética que enfrenta, a cada dia, o absurdo da vida, o absurdo, fugidio, de forjar um sentido, de criar um personagem, de acreditar nele, para, em seguida, voltar a viver um cotidiano nulo de qualquer significado. Essa nulidade pode ser a própria morte e é o que, no filme, retrata o dia a dia de Castanha. São gestos constantes de vestir e retirar máscaras, gestos de reinvenção, de respiros profundos numa respiração já trôpega e que precisa renovar uma fôlego que, aos poucos, se esvai.
Roteiro e filme enfrentam esses lados obscuros, num retrato que não é heróico e nem vacila no seu oposto pessimista; mas, ao contrário, tenta encarar um lado sem lume, difícil, que cada sujeito carrega consigo. É nesse sentido que o tempo e a mise em scène enfatizam tanto o enfrentamento direto com essa face obscura como uma vontade de fuga, já impossível. Por isso, talvez, que a marcante edição de som acabe propondo escapes espaciais, paisagens imaginárias, mas sempre constrangidas pelo quadro fixo. O som, ali, atua como vetor de desmanche, como elemento dispersivo, como se Sísifo uivasse por uma fuga vã enquanto carrega seu fardo montanha acima. Ouve-se, canta-se, e até espanta-se alguns males, mas, ao final, volta-se ao quadro, fixo e inerte, de um cotidiano áspero. A pedra rola abaixo – e é preciso recomeçar, recomeçar, recomeçar.
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