Mostra Minas 01cinética

Minha vontade mesmo é tacar fogo em tudo

Ocupar terras, largar o emprego e permanecer vivo são algumas das escapatórias possíveis apresentadas no primeiro certame de filmes da Mostra Foco Minas. Os curtas exteriorizam fissuras de um modelo social em crise e provocam, a partir de suas formas e narrativas, tensões nessa estrutura que esmaga existências pessoais e coletivas. As imagens elaboradas pelas obras batem de frente com este mundo que se desmorona e leva consigo aqueles que o sustentam.

Videomemoria (Aiano Bemfica e Pedro Maia de Brito, 2020) abre a sessão narrando a trajetória da ocupação Eliana Silva (Belo Horizonte, MG) ao longo dos anos, sem apresentar uma personagem singular, mas organizando a partir das moradoras e moradores uma figura coletiva. Movimento reiterado em outros filmes da mostra que, em sua maioria, têm personagens sem nome. Esses retratos impulsionam sua força em narrativas comunitárias, que não centralizam personalidades singulares: a eles interessam as multidões. No documentário de Maia e Benfica se intercalam de modo não linear o relato de uma moradora e alguns acontecimentos marcantes da ocupação. Essa mulher é filmada de costas enquanto caminha no escuro – não nos é introduzido seu nome ou seu rosto. Assim como nos registros de cenas de resistência e embate com a polícia, a câmera não localiza lideranças. Filme e comunidade demarcam seu território nesse movimento constante. Há um recorrente gesto de sacudir dentro da obra. A montagem, assim como a ocupação, não é contínua: ela se desloca um passo para trás, para poder dar dois à frente. As imagens se balançam e o som se distorce, estão em comunhão com as moradoras e moradores que se batem contra a violência da polícia. Gritam, correm e denunciam. A linguagem do filme não é meramente documental: ela é registro e denúncia, por vezes até mesmo um mecanismo de defesa, em que filmar é um modo de estabelecer sua permanência.

23 Minutos (Rodrigo Beetz e Wesley Figueiredo, 2020) também manifesta o desejo de lembrar: o curta traz o rap como seu instrumento de se manter vivo. Sua operação de câmera é diametralmente oposta à do filme anterior: observa e acompanha estática o cotidiano de três amigos. Dentro do cosmo fílmico eles estão sempre trabalhando, ou no corre de achar um trampo. A câmera imóvel assiste à estagnação da vida de seus personagens dentro de seus empregos. Seu primeiro movimento acontece em uma fuga, quando, junto com um dos meninos, corre da morte pela polícia. Em seu momento final, o distanciamento imagético se quebra, vacila, são filmados pedaços dos rostos de seus personagens,  mutilados e impotentes pela perda de seu amigo. Sentados dentro de um carro os meninos desabafam: “Eu não suporto viver a vida como eles nos condicionam para viver, irmão”. Em sua conversa os dois refletem que suas dores não estão apenas ligadas a essa fatalidade em particular, mas a uma morte coletiva, que se repete a cada 23 minutos. A obra opera na lógica mais transparente dos cinco curtas, não só por ser a única ficção, mas talvez por sua força estar mais na mensagem do que no exercício fílmico. Nesse sentido, é justamente em sua cena final que ela melhor atua, quando oferece a música como estratégia de recusa de viver certo em uma vida feita para dar errado.

Se 23 Minutos observa e dialoga acerca dessas fissuras, SAPATÃO: Uma Racha/Dura no Sistema (dévora mc, 2020) desdobra e se diverte com elas. O curta acompanha o cotidiano de uma entregadora de aplicativo que filma seus dias desatados de uma ordem cronológica: de 35 de dezembro a 56 de janeiro de 2071, ela está trabalhando. Mas para quê? O questionamento do que seria “vencer na vida” se repete nas duas obras. Para aquelas que conseguem o emprego e sobrevivem aos anos de trabalho, ficam as dívidas. A desconexão temporal elaborada na montagem do filme propõe que marcações temporais como segunda e sexta-feira são meras sugestões fabricadas pela semana de trabalho. O filme se interrompe e se mutila, mimetizando a vida de quem tem como patrão um aplicativo de celular. Não por acaso toda a obra é capturada por esse mesmo dispositivo. Em muitos momentos é a própria personagem vivida por Letícia Ângelo que se registra no modo selfie. De cima da bike, correndo ou performando, ela está em constante deslocamento. Enquanto se filma, ela olha para a lente, para si mesma e para a espectadora. Ela afirma que tem que ser doido para pular o córrego, mas ao fim conclui que tem que ser mais doido para aceitar essa vida. Em uma imagem contemplativa da personagem em frente a um rio, o filme termina com Letícia despida de seu emprego, de seu dinheiro e de suas roupas, enfim livre das interrupções e sufocamentos. Agora ela finalmente pausa e respira.

Pietá (Pink Molotov, 2020) também opera dentro da lógica de performances registradas através de rupturas visuais e sonoras. A melodia de um choro metálico é interceptada pelo grave de um funk; texturas de pelos, purpurina e água dividem a tela; o vídeo também é personagem da trama – os pixels enormes se tornam parte da composição da imagem. O filme adorna Marília (Darlene Valentim) com iconografias cristãs. Batizada em água santa, ela agora se prepara para trocar o Brasil por Wakanda. O delírio e o deboche são talvez as escapatórias sugeridas pelo filme – sua câmera inquieta se aproxima e se afasta da Nossa Senhora Padroeira do Brasil, que usa como véu a bandeira nacional. Ela grita “Mostra tua cara, Brasil!” e sintetiza um retrato que aparece recorrente em curtas metragens realizados dentro do Brasil bolsonarista e pandêmico, colocando na mesma imagem simbolismos opostos: a bíblia, a arma, o presidente, a travesti, o brilho e a reencenação de Pietá.

A sessão se encerra com O Mundo Mineral (Guerreiro do Divino Amor, 2020), que se organiza a partir de colagens digitais de céu azul, pasto verde, cidades históricas, Paula Fernandes e Xuxa Meneguel, um deboche do imaginário cultural mineiro exportado para o restante do Brasil. “O mundo mineral é uma fantasia de harmonia e perdão”. Há um desconforto familiar na voz da apresentadora (Júlia Mesquita), que flutua dentro dos recortes de arquitetura barroca, bolos e minério. No seio das colagens é possível identificar elementos de desacordo: é goiabada ou lama que escorre de dentro do queijo? A partir de um zoom in, a lambança de barro e comida se converte na bandeira do Brasil, hasteada na feira agropecuária “Megaleite”. O filme entra de penetra no evento, passeia por um stand de tiros e faz uma tour pela empresa de mineração da Vale. Em seu caminho a câmera se espreita, há permissão dela para entrar nesses espaços, mas a intenção de seus movimentos confessa um segredo: essa é a cara do Brasil?

Se as filmagens de Videomemoria se impõem na cara da polícia, essa câmera infiltrada tensiona e desequilibra a estrutura por dentro. Há uma tensão iminente por trás das colagens de céu azul e da voz açucarada da apresentadora. Os cinco filmes remontam alicerces sociais em colapso, filmam sem paz um mundo em guerra. São filmes de esgotamento, no limite e à beira de um abismo. Localizados em um lugar de não passividade, se recusam a padecer diante do fim do mundo. Eles fazem parte da destruição.


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