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Vulnerável ao imprevisível

Do lado esquerdo, um jovem olha fixamente para baixo enquanto um boné do Flamengo cobre seu rosto. Ele abre a jaqueta escura, como quem sabe que a partir daquele momento as coisas ficarão acaloradas. Do lado direito, outro jovem escuta atentamente a voz do mestre de cerimônias fazendo os preparativos. Seu corpo está mais agitado, transparecendo a ansiedade. Ao fundo da imagem, uma multidão de outros jovens, tal como nós, acompanha atentamente. Estamos em um duelo de rima no Espírito Santo em 2017.

Durante toda a batalha entre os MCs César e Noventa, a câmera permanece praticamente estática, sendo deslocada apenas em alguns momentos, numa discreta panorâmica. Não há preocupação em responder ao que ocorre ao redor, tornando essa imobilidade da câmera um elemento díspar em relação àquele ambiente tão caótico. A natureza do filme gira muito ao redor desse aspecto contraditório: na impossibilidade da câmera reagir às punchlines como aqueles que estão testemunhando a batalha ao vivo, ela se mantém parada. Um lembrete de que o filme não é o duelo de rimas, no fim das contas.

Mas desses registros estáticos surgem novas possibilidades que uma câmera mais propositiva talvez não desse conta de enquadrar. Se, por um lado, o enquadramento fixo sugere uma aposta mais segura, é nele que a imagem fica mais vulnerável ao inesperado, sobretudo em um ambiente em que o improviso é a lei. A presença de figurantes que pouco a pouco passam a dividir o protagonismo da imagem, como as duas crianças que acompanham, reagem e a certa altura até são mencionadas nas rimas, é inevitável.

É na filmagem desses deslizes que o filme se aproxima do que está sendo filmado. Se a câmera não improvisa, ela se coloca à disposição para as improvisações e performances alheias. O público do duelo se torna personagem para o público do filme, construindo não somente a vibração e os gritos que respondem às rimas, mas também a atmosfera imagética do duelo. Nesse sentido, há um deslocamento de perspectiva que chama a atenção. Se como público eles estão acostumados a observar sem contrapartida, considerando que os olhares estão todos voltados para os rappers, a imagem os coloca de frente para câmera, resultando em uma mudança na relação de quem vê e quem é visto.

Dessa forma, o filme propõe uma experiência que vai além de uma tentativa de mimetizar a sensação de estar naquela praça ouvindo César e Noventa rimarem. A imagem que se apaga no clímax do evento, quando o anúncio do vencedor é feito, exemplifica isso: como se não desse conta de registrar o momento, propõe algo diferente. Se as imagens não são capazes de partilhar o sentimento, talvez a ausência delas estimule algo que se assemelhe em termos da sensação.


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