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Mergulhar nas brechas da opacidade

A cartela que inicia o filme termina com a seguinte frase: “A tarefa do político é precisamente permitir a essa voz de ressoar no espaço público”. As palavras são de La Convocation, de Federico Nicolao, Federico Ferrari e Tomás Maia. Findo o texto, ouvimos uma voz do que parece uma funcionária de aeroporto dando um comunicado; uma canção em inglês sobre tristeza; uma mulher praguejando a palavra “cachorro”. Sons urbanos e humanos se agitam no interior do filme enquanto tento tatear alguma cartografia que me permita passear por cada som, recriar cada situação, ambiente e corpos de quem fala e canta. Tal dissecação é impossível, pois alguns sons podem ser ouvidos mais nitidamente, enquanto outros são ruídos indecifráveis diluídos no conjunto. Abdico da ideia de buscar um caminho único e adentro na espiralidade de ser levado pelas vozes.

A oralidade, em suas infinitas possibilidades de criar, destruir e refundar mundos, para fazer ressoar seus signos nos sujeitos e nos tempos, precisa ser ouvida, internalizada e refletida pelos que ouvem – não passivamente, pois ouvir também é confronto. A voz é política e quem fala (e pode ser ouvido) conjura implicações sociais que constroem narrativas sobre os “outros”, sujeitos que constantemente são impossibilitados de serem ouvidos. Subtraindo a imagem física – o quê e quem se filma – para mergulhar no universo político das vozes que ecoam ruidosas e múltiplas, Ópera dos Cachorros (2020) de Paula Gaitán reúne um amontoado de sons que se atritam em uma narrativa experimental, que conduz a instauração de uma ópera cacofônica de vozes e ruídos.

A experiência se articula enquanto uma ópera que remonta ruídos e cantos como instrumentos musicais que interagem pela dissonância, como um embate pelo anseio de serem ouvidos. Diversos idiomas – português, francês, espanhol, idiomas inventados para o filme… -, são emaranhados numa cadeia que desmaterializa o corpo. Quem canta e por que canta não é o interesse do filme, mas sim criar um espaço fílmico onde essas vozes possam ressoar. Tal ato político – possibilitar um lugar de escuta – é (também) um ato estético que elabora um lugar possível de experimentação em que vozes dissonantes interajam em seu interior, em diálogos amistosos ou combativos.

Com exceção dos planos iniciais que contêm citações de “La Convocation” sobre a importância da voz enquanto ato político, o filme se desfaz da imagem experimentando o som como potência que instaura um mundo caótico, povoado de vozes e discursos. A costura da montagem articula a sensorialidade dos fragmentos como construção estética invocada pelos sentidos auditivos. Uma voz anuncia o apocalipse enquanto canta palavras não compreendidas por mim. Palavras são recortadas e se misturam com outras frases, línguas e cantos formando densas camadas sonoras em que percorremos os fragmentos sem cartografia, um mergulho na opacidade. O embate entre as vozes se anuncia desde o título. Ópera dos Cachorros, de antemão, propicia a visualidade de um confronto sonoro em que sons tentam se sobrepor uns sobre os outros, criando uma melodia cacofônica que não permite a distinção entre seus elementos.

Sabotando a possibilidade de síntese, Paula Gaitán é provocativa no procedimento que cria, costurando uma experiência fílmica que é elaborada pela opacidade, pela porosidade que desarticula a lógica da compreensão para nos fazer imergir no estado de fruição ao ouvir essas vozes como um conjunto, uma ópera dissonante. A opacidade, contrariando a lógica da transparência, não possibilita uma redutibilidade para a compreensão e se abre para uma fruição pelas brechas da materialidade fílmica. O choque dos fragmentos sonoros nos conduz por um caos de reverberações sensoriais, como uma música em que podemos reparar em cada instrumento e, simultaneamente, no conjunto.

A experimentação fílmica constrói momentos de uma poética musical preciosa, como quando uma voz canta lindamente enquanto uma mulher profere frases políticas densas (em francês), formando uma camada melódica em que a leveza da canção e a densidade do discurso coabitam o mesmo cosmos. O embate entre as texturas sonoras – vozes, timbres, tons, idiomas – nem sempre é, em si, conflituoso, sendo por vezes um diálogo que se dá pelo desarranjo, uma criação harmônica pela diferença.

Ópera dos Cachorros é uma experimentação instigante sobre construção sonora – os diversos sons foram criados por Paula Gaitán com participação especial de Maíra Senise – e as possibilidades infinitas de construção estética e política através do som. As texturas sonoras reverberam como uma música em que não entendemos a letra, mas a sonoridade nos provoca a imersão.


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