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(Im)possibilidades de amizades interraciais num mundo colonialista

 

Parece tarefa desmedida e desleal propor uma análise crítica sobre um filme como Kevin (Joana Oliveira, 2020), que estreou na Mostra Aurora da 24ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes e aborda, entre outras coisas, a relação de amizade, afeto, amor e máxima cumplicidade entre duas mulheres adultas, a professora de alemão Kevin Adweko, mulher negra africana de Uganda, e a cineasta e professora universitária Joana Oliveira, justamente diretora do filme, uma mulher branca brasileira que vai à África visitar a amiga conhecida durante a juventude na Alemanha. Porém, quem decidiu fazer da intimidade filme e representação foram justamente as duas amigas. Então, são elas também as responsáveis pelas leituras possíveis que seguem e que podem escapar e transcender os desejos da autoria e as nuances ainda mais complexas que relações afetivas têm na realidade.

É lembrando do que propõe o cineasta Jean Rouch na abertura de seu filme A Pirâmide Humana (1961) que nos damos ainda mais conta de que Kevin não é apenas um filme sobre a amizade entre duas mulheres, como a sinopse oficial do longa-metragem destaca. É também um filme sobre os limites e superações das diferenças em relações afetivas interculturas e interraciais, um filme sobre as possibilidades e os desafios para o alcance da alteridade e do reconhecimento plenos nessas relações.

Em A Pirâmide Humana, que podemos chamar de uma das etnoficções de Jean Rouch, o cineasta e antropólogo francês propõe como experiência que um grupo composto por jovens estudantes negros africanos da Costa do Marfim, ex-colônia francesa que conquista independência em 1960, e brancos franceses que vivem nesse país façam um filme sobre o que poderia ser uma amizade entre brancos e negros “sem nenhum complexo racial”, nas palavras de Rouch. Exatos 60 anos depois do lançamento desse filme, Kevin parece responder à proposta de Rouch expondo justamente os desafios de uma grande amizade intercultural e interracial num contexto de reatualização das relações coloniais, considerando o imperialismo entre países do sul do mundo, como é o caso do Brasil e de suas políticas econômicas com países africanos lusófonos nas últimas décadas.

Por mais que o “documentário” Kevin – as aspas são porque, como as etnoficções de Rouch, Kevin tem cenas assumidamente ficcionalizadas que tentam recriar a naturalidade das relações e diálogos cotidianos – se passe em Uganda, país de colonização britânica, essa percepção do imperialismo sul-sul como atualização e complexificação das relações coloniais no contexto capitalista contemporâneo nos permite evidenciar que, bem como a personagem Kevin, Joana também está racial e culturalmente situada quando colocada frente ao contexto do país africano onde sua grande amiga vive.

Joana corre atrás de Kevin (e Kevin corre atrás de quem?)

Como constataram outros críticos e também assumiu a diretora Joana Oliveira em debate do qual fez parte a autora deste texto, o filme Kevin, na verdade, tem Joana como protagonista, ou seja, em termos narrativos, preocupa-se mesmo com as transformações de Joana e não de Kevin – e obviamente isso não é sinônimo do que pode ser ou deve ser a amizade dessas duas mulheres na realidade.

As cenas em que Kevin e Joana estão praticando corrida juntas como atividade física em Uganda parecem ser emblemáticas desse movimento narrativo do filme – movimento que sintomaticamente nos leva a escrever mais sobre a personagem Joana neste texto. Como Kevin pratica corrida há alguns anos, ela está sempre correndo à frente de Joana nas imagens. Assim, Joana literalmente corre atrás de Kevin, seja por necessidade emocional ao atravessar o Atlântico para encontrar a amiga, seja para tentar dar conta de entender (e representar em filme) o que é ser Kevin no mundo, na África.

Porém, ficam as perguntas: e as Kevins correm atrás de quem, ao terem de aprender a correr tanto na vida e, assim, estar em primeiro lugar na percepção das realidades de mundo? Quem cuida de Kevins em termos emocionais e políticos? E, especificamente neste filme, como podemos perceber momentos de amor de Joana como forma de cuidado de Kevin, uma personagem super inteligente, independente, aparentemente autossuficiente e desconstruída quanto às performances de gênero, sobretudo na África?

Ir até Kevin e fazer um filme intitulado com seu nome obviamente é um gesto de amor. Possivelmente, esse amor mediou os perceptíveis cuidados que o filme tem em não exotizar nem Kevin e nem seu ambiente de vida, a Uganda, a África, nas imagens. Talvez sejam o amor, o respeito e a responsabilidade de Joana por Kevin o que torna possível mobilizar no filme uma alteridade e reconhecimento que conseguem fazer com que, pela direção das atuações, pela filmagem e pelas assumidas pesquisas da equipe para a realização da montagem, uma cineasta branca ocidental supere, por muitos momentos, isso de fetichizar a “outra cultura africana e negra” e permitir-se ela mesma como diretora ser “outricizada” por essa cultura, algo raro entre realizadores brancos e ocidentais que escolhem e insistem em experiências semelhantes.

O que está em jogo no protagonismo de Joana

O “documentário” deixa evidente que, ao viajar do Brasil à África para visitar a amiga (ou a si mesma?) em meio a dificuldades emocionais devido a uma gravidez interrompida e ao adoecimento do pai, Joana coloca e mostra Kevin no lugar de esteio emocional para transformações e superações em sua própria vida.

A percepção, inclusive pela inegável brancura e negrura dos corpos de Joana e Kevin – estamos falando de cor de pele e fenótipos mesmo, conforme escreve Frantz Fanon – respectivamente nas imagens, de que Joana é uma mulher branca e de que Kevin é uma mulher negra em um país africano de descolonização recente, remete muito diretamente à constância com que na história dos colonialismos nas Américas e em África, e também nas históricas representações cinematográficas sobre relações de amizade interraciais, pessoas e personagens negros foram sistematicamente construídas como apoio e escada para a transformação e o desenvolvimento emocional e físico de pessoas brancas.

Nesse sentido, em termos histórico-sociais, temos os exemplos das amas-de-leite e das chamadas mucamas que alimentaram as crianças brancas e cuidaram da casa das mães brancas dessas crianças. Já em termos cinematográficos, para além do estereótipo da “mammy negra”, temos as figuras, também estereotipadas, dos amigos negros super-fiéis (a despeito do racismo) de personagens protagonistas brancos. Exemplos disso são as amizades interraciais representadas em filmes como Green Book (Peter Farrelly, 2018), Histórias Cruzadas (Tate Taylor, 2011) e Amistad (Steven Spielberg, 1997) – pensando em exemplos palpáveis e famosos sintomática e justamente porque hollywoodianos –, e também as relações mostradas no filme A Pirâmide Humana. Neste último, Denise, estudante africana negra, é uma das lideranças do grupo interracial de amigos na Costa do Marfim e especialmente próxima de Nadine, estudante francesa branca que, a certa altura da narrativa, torna-se foco do desejo de praticamente todos os garotos brancos e negros do grupo de amigos e, consequentemente, foco do desejo da câmera e da trama.

Ainda num âmbito histórico-social, que possivelmente é refletido/vazado para o âmbito diegético das representações cinematográficas, essa dinâmica do “cuidado-amor-desejo” entre brancos e negros também pode ser explicada conforme escreve bell hooks especificamente sobre a consumação do desejo de homens brancos por mulheres negras quando eles passam a ter uma relação afetiva-sexual. Escreve a autora no texto “Comendo o outro: desejo e resistência”: “Uma crítica similar pode ser feita em relação a tendências contemporâneas de desejo e contatos sexuais interraciais iniciados por homens brancos. Eles tratam os corpos do Outro não-branco como instrumentos, como terrenos inexplorados, como fronteiras simbólicas que serão solo fértil para sua reconstituição da norma masculina, para se afirmarem como sujeitos desejantes transgressores. Eles decidem usar o Outro como testemunha e participante dessa transformação (…). Eles veem sua disposição em nomear abertamente seu desejo pelo Outro como uma afirmação de pluralidade cultural (…)”.

O que percebemos a partir de hooks é que, ao explicitar publicamente a consumação de desejo e intimidade com uma pessoa negra, o homem branco está, em verdade, procurando a superação do preconceito racial que pode ser associado à sua imagem, está procurando transgredir essa possibilidade de ser visto como não plural, preconceituoso e racista sendo branco. Em outras palavras, a pessoa negra desejada se torna escada e, ao mesmo tempo, testemunha perfeita para a redimissão emocional do branco em uma sociedade racista contra negros.

É preciso destacar que, ao nosso ver, o filme Kevin tem muito de uma “humanização” de vivências de mulheres negras africanas aos mostrar que, guardadas as devidas proporções culturais e raciais, seus cotidianos são tão comuns e banais quanto os de quaisquer outras mulheres de classe média nos “suls” mundo. Além disso, obviamente, a amizade de Kevin e Joana é diferente de uma relação interracial afetivo-sexual. Porém, a percepção de bell hooks mencionada acima parece interessante como forma de entendermos o que no âmbito da vida vivida está psicossocialmente em jogo nas relações interraciais entre brancos e negros. Jogo esse que, inclusive, pode refletir e explicar a repetição de personagens negras escadas-testemunhas em filmes com histórias sobre racismo e amizades interraciais nos quais o protagonismo necessariamente se volta para a personagem branca e não racista ou que está em uma jornada que implica, entre outras coisas, a superação de seu racismo.

Fora das confortáveis redomas

Poderíamos dizer que, para além da questão racial, o nosso desejo-procura por outras pessoas em geral diz sempre mais sobre nós mesmos do que sobre quem se deseja. De modo que talvez tudo nas nossas relações interpessoais e afetivas, inclusive nossos processos de cura e cuidado que se voltam para pessoas amadas e queridas para se dar, sempre estão relacionados a uma busca egóica (e legítima?!) por nós mesmos. Nesse sentido, pensamos que relações afetivas de amor-apoio entre pessoas do mesmo grupo racial e social que refletem essa dinâmica egóica (o voltar-se para si ao procurar pelo outro) não geram tanto ruído, são mais tranquilamente naturalizáveis.

A questão é que, no caso do filme Kevin, quando Joana mostra Kevin como amiga-amor-desejada para ou como parte de seu próprio autocuidado, superação, transformação, a irreversibilidade racial de seus corpos expõe uma assimetria nessa dinâmica. Afinal, ao tornar Kevin, uma mulher negra, africana e mãe solo, em um mundo patriarcal, sexista, machista, racista, colonialista, imperialista, a coadjuvante de um filme que leva o seu nome, uma fonte de seu cuidado e ancoramento no mundo e uma testemunha íntima e amorosa de suas transformações e superações, Joana pode ser vista, em termos políticos dentro e fora do filme, mais do que como uma pessoa egóica, como uma mulher-amiga branca alienada em demasia frente ao gesto de amor que quer que seu filme cumpra.

Mais do que criticar negativamente a Joana do filme e/ou “da vida real” essa constatação evidencia o peso que o racismo contra negros e não-brancos tem para todas as pessoas que foram racializadas no mundo, as pessoas brancas entre elas. Em alguma medida, é como se, ao mesmo tempo que são extremamente beneficiados pelo sistema racista, pessoas brancas que são íntimas de pessoas negras tivessem que passar a questionar o individualismo de suas dores humanas e ações de autocuidado quando isso implica a ajuda emocional e material de pessoas negras em um mundo racista especificamente contra negros e não-brancos.

Enquanto os vários e singelos momentos de silêncio em cenas nas quais as amigas Kevin e Joana estão fazendo algo juntas mostram lindamente o “tempo morto” que só a intimidade e a confiança extremas conseguem naturalizar na realidade das relações, outros momentos-cenas mostram justamente a vulnerabilidade desse amor-amizade. É como se a redoma de amor, afeto e cuidado genuinamente horizontais que amizades sólidas como a de Joana e Kevin pudessem estabelecer fosse, especificamente nesse caso devido à racialidade dessas amigas, frágil frente à aspereza, à violência e à complexidade do racismo fora dessa redoma, ou seja, frente a todo um cotidiano social.

Ao mesmo tempo que a redoma afetiva garante trocas identitárias um tanto mais universais entre Kevin e Joana ao serem, por exemplo, mulheres adultas com útero que podem engravidar e ainda assim continuar a ser filhas capazes de ter e demonstrar rusgas e dores relacionadas à presença finita de seus pais e mães no mundo, quando Joana está sem Kevin pelas ruas de Uganda, é a sua incontornável, estigmatizada e específica brancura que fala sem falar e fura a suspensão das diferenças raciais e culturais que a redoma do amor-amizade consegue instaurar.

Isso é registrado no filme em uma cena na qual Joana desiste de fazer um passeio de rafting em Uganda, porque, como descobrimos com o avançar da história, se dá conta de que todos os turistas que irão fazer o passeio são brancos enquanto os trabalhadores que promovem tal lazer são os moradores de Uganda negros. Essa cena e a expressão perplexa do rosto de Joana, que não vemos em imagem, mas sim por meio da descrição que faz Kevin faz da amiga durante uma conversa, ao escutar e ver diretamente o racismo contra negros (um racismo de “chicote fino”, como diz Kevin no filme) que sua amiga-amor sofre e ela não, é, para nós, um dos destaques e pilares do filme e das intenções da diretora com ele. Quem ainda se espanta extremamente com o racismo é Joana, e não Kevin. Novamente, é sobre as transformações e percepções inclusive raciais de Joana que o longa-metragem fala mais.

Assim, para nós, Kevin é também um filme sobre a (sempre egóica?!) percepção do paradoxal peso da leveza da brancura e da branquitude em um mundo racista contra negros e de relações contemporâneas ainda colonialistas. Um filme sobre alguma alteridade plena também quanto aos desgostos da hierarquização racial, alguma partilha do ônus do racismo mesmo para brancos que dele se beneficiam histórica, sistemática e cotidianamente.

Estamos todos protegidos ou nos protegendo?

Aqui, pedimos licença para uma reflexão em primeira pessoa: uma vez que as representações, as identidades e as recepções de gênero, raça e classe no cinema são o foco de minhas pesquisas, por muitos momentos, fico na dúvida se tudo o que enxergo e escuto nos filmes que assisto tem mais a ver com o eu quero enxergar nesses filmes a partir dos debates sociais e políticos que estão nos filmes e também para além deles e com os quais me importo em termos de pesquisa e ideologias político-sociais, do que com o que de fato eu enxergo ou os filmes realmente mostram, também mostram ou querem/tentam mostrar.

Sendo assim, tenho me perguntado: o que de fato eu enxergo nos filmes? Enxergo e escuto o que eu quero que eles digam, o que percebo que eles dizem ou o que eles dizem e/ou querem dizer? Afinal, haveria mesmo alguma pureza ou verdade imanente e tão somente artística dos filmes possível de ser alcançada por receptores (e) críticos? E uma vez que sempre considero a estética e as artes como políticas, como não me render – ou vacilar frente – às historicamente hegemônicas afirmações contrárias a isso? Haveria forma de me despir (nos despirmos) dos lugares, atravessamentos, identidades, preocupações, experiências necessária e especificamente sociais, raciais de gênero para ver e criticar um filme?

Conseguimos, como receptores (e) críticos, aproximarmo-nos dos filmes de modo que não seja partindo do que acrescentamos neles – necessária e especificamente – devido aos nossos lugares, posições, identidades, experiencias, vivências sociais, raciais e de gênero historicamente construídas e situadas? A quem interessa dizer que nós, receptores (e) críticos, deveríamos conseguir fazer isso ou que esses posicionamentos historicamente situados, muitas vezes à revelia de nossas identificações e vontades, não importam de fato durante, para e nas recepções (e) críticas? Ou seja, como e porque não ignorarmos a inevitabilidade da consideração dessas específicas construções e posições nos estudos de recepção e crítica cinematográfica?

Ao mesmo tempo, como não nos limitarmos à consideração dessas perspectivas situadas para falar de cinema? Afinal, como pessoas, receptores (e) críticos, somos “só” nossas construções de raça, classe e gênero? Até que ponto pessoas de cinema (da realização à recepção crítica) atentas, comprometidas e preocupadas com as representações raciais, sociais e de gênero nessa arte e na realidade social da qual ela parte, reflete e para qual volta no momento de exibição, têm de fato deixado os filmes e as imagens que eles ordenam dentro dos recortes narrativos e artísticos que propõem de fato falarem, para além de toda a realidade social que obviamente fala junto com eles? Como posso eu, como pesquisadora negra sobre representações raciais, sociais e de gênero no cinema e em obras audiovisuais em geral, reconhecer ao mesmo tempo as sensibilidades, potencialidades e fragilidades artístico-político-discursivo-sociais de um filme como Kevin, sem trair a mim academicamente, ideologicamente, criticamente e nem ao filme artisticamente? Escutar, olhar, escrever e perguntar são tentativas de entender e responder a tudo isso.

Por fim, mas não menos importante, uma justificativa: mais do que um apreço acadêmico ou às normas de escrita de redações, escrevemos nos valendo da terceira pessoa do plural na maioria de nossos textos, este entre eles, porque acreditarmos que muitas vozes (no mínimo, as de nossas ancestrais) falam junto conosco em todas as linhas que tecemos. Ou seja, acreditamos que o que escrevemos não tem a ver apenas com o que sai de nossa cabeça, mas sim com vários textos, enunciados, pensamentos e autorias com as quais conversamos cotidianamente, direta e indiretamente. Dialogismo e intertexto explicitamente reconhecidos e valorizados, inevitáveis, inescapáveis.


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