(Im)possibilidades de amizades interraciais num mundo colonialista

  Parece tarefa desmedida e desleal propor uma análise crítica sobre um filme como Kevin (Joana Oliveira, 2020), que estreou na Mostra Aurora da 24ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes e aborda, entre outras coisas, a relação de amizade, afeto, amor e máxima cumplicidade entre duas mulheres adultas, a professora de alemão Kevin Adweko, mulher negra africana de Uganda, e a cineasta e professora universitária Joana Oliveira, justamente diretora do filme, uma mulher branca brasileira que vai à África visitar a amiga conhecida… CONTINUA

O deboche contido de uma alma piedosa

Eu, Empresa (2021) é o filme do fracasso da autogestão. Inscrito no universo autocentrado criado por Curvelo a partir da figura de Joder, seu personagem que encarna a figura do derrotado, o filme realiza a fusão da persona com seu criador. Como se víssemos o backstage da produção de Joder, somos apresentados a um Marcus debilitado em relação à vida. O filme tem como horizonte a construção cínica da falência múltipla da vida do protagonista-diretor, mas esta recrudesce, contida, ao não se devotar completamente ao… CONTINUA

O tempo em volta

Os créditos finais de O Cerco (Aurélio Aragão, Gustavo Bragança, Rafael Spínola, 2020) terminam com uma legenda informando o local e o período de realização do filme: “Rio de Janeiro, 2013 – 2020”. A escolha pouco usual dos três diretores de declarar o período completo de quase uma década entre a concepção e a finalização expressa um certo desejo de vincular a obra e o tempo. Adotando um método de escrita de roteiro e encenação procedural, que era conduzido em grande medida pelo trabalho de… CONTINUA

A rústica tensão do jogo

A Mesma Parte de Um Homem (2021), terceiro longa-metragem de Ana Johann, é um filme que aposta na pujança dramatúrgica que cada cena é capaz de oferecer. Como se estivéssemos assistindo a micropeças, as cenas são costuradas pelos arroubos e pelas tensões que atravessam as relações entre os personagens que transitam entre o espaço recluso da casa e da amplidão da serra. A mise-en-scène lateja entre a constrição, as breves amenidades e os rompantes de raiva e, conjugada a um enredo que escala nos diálogos,… CONTINUA

Joana

Kevin começa pelas beiradas. Enquanto reúne fatias de espaços cotidianos – o apartamento, o trabalho, lampejos de Belo Horizonte –, começa a nos oferecer rastros do drama de Joana. Aos pouquinhos, ficamos sabendo que o pai está no hospital e que algo lhe aconteceu na altura da barriga. Uma tristeza doída impregna tudo. Joana está tão alheia que a câmera esquece dela por um momento para se debruçar sobre os outros professores na reunião da universidade. Quando sua amiga Kevin envia mensagens em inglês na… CONTINUA

Nordestes podem remontar a olhos de crianças

Realizado em Poções, município da Bahia, Rosa Tirana é roteirizado e dirigido por Rogério Sagui. Ao longo do filme, acompanhamos o percurso de Rosa, que parte de casa em busca de Nossa Senhora Imaculada. Galhos secos revelam a atmosfera da maior seca que o sertão nordestino já viveu. As narrativas da seca povoam bastante as imagens já conhecidas sobre o Nordeste e o cinema brasileiro já as explorou bastante. Existe, desde sempre, um fetiche brasileiro acerca do sofrimento do povo nordestino. Um sofrimento carregado por… CONTINUA

Refúgio ao revés

Dotado de uma languidez perversa, Oráculo (2021) jamais produz vidências e respostas. Sob a égide da textura da película, material familiar à dupla de diretores Melissa Dullius e Gustavo Jahn, o filme revira a intimidade da matéria bruta e a transforma em olhar estrangeiro que se volta às paisagens humanas e minerais. Em poucos e longos planos-sequências, evidenciam-se caminhos sem início nem fim de três personagens absortos e longínquos. A figura do oráculo é aquela vinculada às artes divinatórias, que a tudo conhece – o… CONTINUA

Às que veem sem mapas

O plano geral de uma casa que emana, da pequena janela lateral, uma luz vermelha, abre o longa de Isaac Donato, Açucena. Como se fossemos observadores ocultos na penumbra que acomete o mundo na virada do dia para noite, gravitando em direção à luz rosácea, consolida-se, já na primeira cena, o ambiente enigmático e lúdico que habitaremos a partir daí. O filme se passa no tempo de preparação do aniversário de sete anos de Açucena – que se cumprem há mais de vinte anos –… CONTINUA